domingo, 24 de outubro de 2021

UMA DE JOÃO-SEM-BRAÇO

UMA DE JOÃO SEM BRAÇO


Aqueles que fingem ser quem não são,

acabam se tornando o que nunca foram.


Dei uma de João-sem-braço.

Arracaram-m’o! 


Ou melhor, tal como o famoso João, eu o escondi sob farrapos e me expus à piedade alheia. Poeta, luto o vão combate da Poesia.


Pessoa lhe fez um poema “O braço sem corpo brandindo um gládio”. E seu braço arrancado e heroico, com armadura e tudo, lhe atravessou os sonho…


Fingidor que sou, tornei-me eu um joão, isto é, algum; qualquer um.

Despersonalizei-me na persona do pedinte falso-aleijado. 


Uma personagem da tacanha capital colonial. De janeiro a janeiro, um rio de ruas onde ninguém é o que é: Cariocas do caos!

 

Afinal, n’uma Cidade Maravilhosa não posso ser, também eu, uma maravilha?


Talvez andasse pelos arcos da Lapa declamando poemas ininteligíveis. O décimo bêbado equilibrista de hoje…


Talvez convencesse, actor sem palco, que minhas misérias merecem atenção do respeitável público…


Talvez bebesse até cair e acordasse sem calças com a cabeça na guia da calçada com o sol d’um sábado de praia m’estraçalhando as ideias com sua realidade extrema.


Não passo d'um merda. Vivo de linguiça frita e fardos de cerveja barata. Moro n'um barracão de dois cômodos, meu existensminimum… Rodo de cêgê-zinha varando a Metrópole de ponta a ponta atrás de freelas de fome! No mais, escrever feito um louco e pagar para ser lido em antologias aleatórias. Quando dá na telha, eu m'embriago e saio madrugada afora como fosse um profeta do nada: outra personagem da noite do Rio de Janeiro.


Sou

 desleixado demais para ter uma mulher;

 distraído demais para ter um filho;

 alternativo demais para ter uma carreira.


Fui desleixado demais para ter uma mulher, 

distraído demais para ter um filho,

alternativo demais para ter uma carreira.


Vivo tomando porrada na cara e me levantando para tomar mais. Sou patético.


Vou te mandar a real. Sou de Minas. Jamais estive no Rio de Janeiro em minha vida. 

Tenho esposa, filhas e carreira e moro n’uma casa até boa. 

Mas, na minha fantasia, 

eu queria ser o merda que descrevi no poema, ou seja, 

uma pessoa preocupada em viver, não em ter ou ser,

uma pessoa livre que se dedica unicamente à poesia. 


Dar uma de joão-sem-braço, como se sabe é dar um golpe. 


É fingir ser um aleijado para compadecer o outro e receber d’ele uma esmola. 

No fundo, é isso que faço: visto-me de poeta para receber um aplauso aqui e outro ali. 

Proponho-me uma autocrítica mordaz e negativa que descreve exatamente a minha fantasia: ser uma poeta que vaga pelos arcos da Lapa, embriagado e livre. 


Talvez eu ame demais essa minha vida desgraçada, pedinte de aplausos por versos vãos nas madrugadas cariocas.


Mas, dou uma de João-sem-braço e faço alguém acreditar que poeto… E toda minha insignificante e solitária existência na verdade são desconfortos necessários para trazer às letras uma frase autêntica de humanidade.


Pedinte falso-aleijado sim. Mas poeta!


Betim - 23 10 2021



quarta-feira, 20 de outubro de 2021

DAS AVES

DAS AVES (haicais)


1.

Sobre o espelho d'água

súbito alça voo a garça --

Leque d'alvas penas.


2.

Em berro de cores,

A canindé mais s'ecoa:

-- Urgh… Arara! Arara!


3.

Em preto e tons laranjas,

Olha o bico de tucano!

Palheta de cores.


4.

Voam ao pôr-do-sol 

Mil andorinhas em nuvem --

Uma boa viagem.


5.

Martela na tarde

O trinca-ferro harmonioso...

Bigorna e marreta!


Belo Horizonte - 15 10 2021

terça-feira, 19 de outubro de 2021

CORAÇÃO DOS OUTROS

CORAÇÃO DOS OUTROS

Nunca sabemos tudo sobre todos,
Ou melhor, não sabemos quase nada...
Mesmo uma companheira de jornada
Tem-nos tantos segredos quanto engodos.

Por se decepcionar de muitos modos,
Cada um tem sua vida tão guardada,
Que ninguém vai aonde sua estrada
Começa entre fontes ou entre lodos.

Como se n'um palheiro um alfinete,
A gente em vão procura a verdadeira
Verdade a revelar a pessoa inteira.

Mas é por seu amor que se compete,
Até seu ser-no-mundo ter com o Olvido:
Amamos sempre alguém desconhecido.

Belo Horizonte - 15 10 2021

sábado, 16 de outubro de 2021

POR QUEM SOIS, MINHA SENHORA

POR QUEM SOIS, MINHA SENHORA


Por quem sois, minha Senhora,

Vinde-me agora à janela!

Quem tão boa quanto bela

A este que tão-só vos adora

Dai a mercê mais singela…


Dai-me outr’hora como aquela

Que à vossa face ‘inda cora

Quando adentrei sem demora

E às matinas na capela

Vos vi orar logo à aurora...


Dai-me como aquela outr’hora,

Por quem sois, ó minha bela!

Deixai de qualquer querela

Havida entre nós vida afora.

E vinde ouvir-me à janela.


Há-que escutar o que vela

E mais de vós s’enamora...

E mais e mais vos adora...

Seja altar vossa janela

À minha nossa senhora…!


………………………………..


sábado, 9 de outubro de 2021

MÚSICA ANTIGA A CANTIGA

MÚSICA ANTIGA A CANTIGA


Música antiga a cantiga,

Embora de letra nova...

Minha amada, minha trova

Ouvi, pois, se se bendiga

Ou se há-que volver à cova!...


A verdade a ver se prova

Quando a arte ao nada periga.

Haverá quem não consiga

Ver d'arte antiga a arte nova

Ou algo da nova na antiga.


Haverá quem não persiga

O encanto do que se trova:

Cantiga d'Amor em prova

De meus ais, amada e amiga,

Que em vossos ós me renova!


Minha amada, minha trova

Ouvi, pois, se se bendiga:

Cantar-vos-á nova e antiga

Em cantiga antiga e nova…

Nova poesia a cantiga. 

....................

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

MINHA SENHORA, EM GRÃ COITA

MINHA SENHORA, EM GRÃ COITA


Minha Senhora, em grã coita

Me veem vossos olhos verdes.

Lembrai, tão-logo me verdes:

Um que ao sereno pernoita 

Na esperança de o quererdes.


Vistos mais verdes os verdes,

O vosso olhar mais me açoita

Quando o sereno na moita

M’enregela sem me verdes, 

Minha Senhora, em grã coita.


O vosso olhar mais me açoita

Quando vós sem me saberdes

À espera... Sem me verdes

No amor de vós em mi' coita

Junto à moita de valverdes…


E se acaso não quiserdes,

Um que ao sereno pernoita

Esp’rançoso, junto à moita,

Lembrai verdes ao me verdes

Vossos olhos em mi' coita.


…………………………


domingo, 3 de outubro de 2021

COITA D’AMOR, TAMBÉM EU

COITA D’AMOR, TAMBÉM EU

Coita d’amor, também eu

Tenho vivido a morrer...

Na angústia de não saber

Por quem, sozinha no breu,

Tendes mais pálido o ser.

Vós, Senhora, um bem-querer

Deixastes p’lo peito meu.

Mas que de vós se perdeu,

Quando ao vosso bel-prazer

Outro ardor vos aqueceu.

Desde então, ai! Que faço eu,

Senão penar meu sofrer?

Aonde eu irei sem ver

Vossa face, se no breu

Tendes mais pálido o ser?

Que faço senão sofrer?

Que faço do peito meu

Que por vós já se perdeu?

Se por mau ou bom prazer,

Outro ardor vos aqueceu?…

…………………………...