terça-feira, 27 de dezembro de 2016

O MONGE E A SERPENTE

O MONGE E A SERPENTE

prólogo

Contam que quando andava pela Terra
O iluminado espírito de Buda
Vivia em penitência surda e muda
Um monge seu ferido pela guerra.

Acolhido por Buda, mais se aferra
À sã meditação, com que se escuda
A alma necessitada mais de ajuda,
Visto que grande angústia em si encerra.

Aquele monge à paz se disciplina,
De sorte que mais nada o encoleriza,
Mesmo se tudo em volta desatina.

Assim, quer na tormenta; quer na brisa,
Segue impassível sua dura sina,
Que a entonação de mantras ameniza.

*  *  *

o carma

Na guerra, conduzira ele elefantes
Contra inimigos vindos de bem longe.
Nada, porém, de que ele se lisonje,
Atormentando-o em todos os instantes.

Ferido após barbáries excruciantes,
Decide, mudo e só, fazer-se monge...
A fim-de que da guerra mais se alonje
E o coração da sua vida d'antes.

À espera da impossível redenção,
Procura compensar sua violência
Com uma radical resolução:

— "Enquanto eu respirar n'essa existência,
Nada mais morrerá por minha mão
A ter de novo limpa a consciência."

*  *  *
o encontro

'Pós anos de silêncio e solidão,
Aquela alma culpada e penitente
Eis que encontra uma filha de serpente
Totalmente indefesa pelo chão.

De tão fraca, ele a pega com a mão
Quedando quase inerte simplesmente. 
Co'os olhos em seus olhos, frente a frente,
Sem esboçar a mínima reacção.

O monge a colocou em sua cesta
E a carregou consigo para fora
Da sempre tão quente e úmida floresta.

Já no mosteiro, a todos apavora
Como se enfim tivesse má a testa,
Tal risco que corriam àquela hora.

*  *  *
o concílio 

Buda, que às boas almas conhecia,
Pede a palavra ao povo alvoraçado:
— "Amigos, escutai cá do meu lado!
É necessário mais sabedoria..."

"Deixai-o co'a serpente noite e dia
Até que por fim todo o seu cuidado
Mostre-nos a que fora destinado
Isto o que só loucura parecia."

— "Ouço e obedeço." — disse-lhe um por um.
Assim o monge pôde co'a serpente
Viver este viver tão incomum.

De resto, vivia ele tão-somente
Como se fosse sem perigo algum
Aquela realidade surpreendente. 

*  *  *
a ophiophagus

Pelas selvas dos Gates Orientais
Já na estação das chuvas das monções,
Cobras que comem cobras são vilões
D'estas tórridas terras tropicais.

Deveras, as imensas cobras reais
S'elevam tão ferozes quanto leões
E inoculam peçonha aos borbotões
Sobre maiores e mais fortes rivais.

Espécie tão feroz, antes que nasça,
Seja logo da mãe abandonada 
A não fazer dos filhos sua caça.

Serpente... Mesmo assim fora adoptada
Pelo silente monge cuja graça
Acreditara ser por ela dada...

* * *
a iluminação

Dia após dia, o monge em seu cuidado
Alimentava a cobra presa ao cesto,
Trazendo camundongos que, de resto,
Ninguém mais parecia achar errado.

Tinha fé que co'o tempo do seu lado
Perderia ela instinto tão molesto
A ponto de entender do monge o gesto
E ter o seu furor pacificado.

Julgava que seria agradecida
Ao ser tratada com suma bondade
Ao longo já de toda a sua vida.

Porém, se aproximava da verdade,
Por uma estrada então desconhecida,
Cercado de total perplexidade...

*  *  *
o nirvana

Grande demais p'ro cesto onde vivia,
A serpente s'eleva toda ereta.
Bem diante d'ela o monge jaz, asceta,
A lhe encarar nos olhos todavia.

Ameaçadoramente bela e esguia,
Eis que prepara o bote por repleta
D'uma violência própria já inquieta,
A contrastar co'a paz que oferecia:

N'um átimo, ela voa em seu pescoço...
E crava as suas presas já tristonha
Por aquele que mata 'inda tão moço.

Após, ela inocula-lhe a peçonha,
Que súbito da morte lhe abre o fosso,
Adormecendo feito alguém que sonha.

*  *  *
o darma

Procuraram o Buda entristecidos
Seus discípulos mais a má serpente.
E pretendiam matá-la simplesmente 
Depois dos factos já acontecidos.

Que, embora fossem bem esclarecidos
Sobre o valor de todo ser senciente,
Bradavam por justiça, mas somente
Buscavam a vingança dos perdidos.

E Buda disse: — "Leva para a mata
A cobra ainda viva, com certeza!"
Mas os monges: — "Jamais! É uma ingrata!!!"

Pagou tanta bondade com torpeza..."
E Buda: "Só segue ela a Lei inata:
Agiu conforme sua natureza. 

*  *  *
epílogo

"Estamos todos — Buda diz — sujeitos
À lei do Darma — isto é, Lei Natural. 
Tanto um humano quanto um animal
Vive segundo seus sábios preceitos."

"E ainda que dotados de direitos,
Seres sencientes somos afinal.
A luz está em ver o próprio mal
Para então renunciar a seus malfeitos."

"Pois, mais que da serpente essa maldade
— Na qual vedes traiçoeira ingratidão —
Havia sim desejo à liberdade!"

"Aos olhos da serpente, era prisão
E os cuidados no monge — a tal bondade —
A mais só e absoluta reclusão."

Betim - 20 02 2002 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

NO DIA DE SÃO NUNCA

NO DIA DE SÃO NUNCA

Ausente do corrente calendário,
Eis o dia que não há-de chegar!
Embora sem qualquer tempo ou lugar,
Ao findar todo extremo temerário.

Jogava para o Olvido incerto e vário
A obrigação difícil de se honrar,
Bem como a meta inviável de alcançar
E ainda assim nos ronda o imaginário.

São Nunca -- bom padroeiro dos tardios --
Postergai nossas dívidas e dúvidas
Diante de carrancudos tão sombrios.

Indefinidamente, o vosso dia
Seque as lagrimas sobre as íris úvidas
D’aquele que não nega, só adia...

Betim - 01 11 2003

A MALTA

A MALTA

Homens de meia idade, solitários,
Bebendo n'uma sórdida espelunca...
Divertem-se co'a tal polaca adunca,
Cujos culotes são extraordinários!...

Não têm mais ilusões, pelo contrário:
"Em canoa furada não se junca..."
Pois, livres -- antes tarde do que nunca! --
Se entregam ao instinto  perdulário.

Por álcool, fumo, drogas e mulheres
Descem a este inferninho de prazeres
Como lobos famintos rumo à caça.

Visto o cinismo qu'eles têm por guia,
Em meio a mais patética alegria,
Lhes faz rir de qualquer outra desgraça.

Belo Horizonte - 08 09 2004

LACÔNICO

LACÔNICO

Se mais tenho a dizer, menos eu falo,
Respondo tudo assim monossilábico...
E perco longe os olhos qual estrábico
Para não te encarar quando me calo.

Baixo a cabeça feito algum vassalo,
Cuja rainha, em olhar febril e rábico,
Me transporta do céu sétimo arábico
A este lugar de limbo; de intervalo...

Mas o pouco que falo, muito diz
E o silêncio que faço me é gritante
Do que cá me faria mais feliz.

Falo e calo d'amor quando bem diante
Dos olhos que nem sei se vãos ou vis
Me veem falar calado a cada instante.

Belo Horizonte - 18 12 2005

domingo, 25 de dezembro de 2016

NATAL DE JESUS

NATAL DE JESUS

Três sábios seguem uma estrela nova...
Vêm d'Oriente e atravessam o deserto.
Chegam a Belém  co'o designo certo
De ver o filho de Davi: --“Boa Nova!

“Nasceu Jesus, o ungido!!! Deus renova
Sua aliança... Eis a nós o céu aberto!
Jaz o menino entre as palhas desperto...
Acalme-se o mar! Um monte se mova!...”

Há dois mil anos contam essa história,
No regozijo d’uma Humanidade
Que o divino reveste então de glória.

Pois celebram os homens, em verdade,
No solstício com seu mistério antigo,
A alegria de ter Jesus consigo.

Betim - 24 12 2008

O FIM DOS TEMPOS

O FIM DOS TEMPOS

Andando taciturno pela rua,
Passou despercebido dos demais.
Talvez as vozes nem fossem reais
Tanto quanto a visão da última lua.

Sem embargo, para o alto continua
E, em face do que chama de sinais
Do avanço das potências infernais,
Proclama a profecia extrema sua:

-- "É hora: O fim dos tempos se aproxima...
Uma a uma já se cumprem as
promessas!
Volvei os vossos olhos para cima!..."

"Obscurecido por nuvens espessas, 
O sol agora dança logo acima
Até o céu nos cair sobre as cabeças."

Belo Horizonte - 09 09 1999

sábado, 24 de dezembro de 2016

MNEMÔNICA

MNEMÔNICA

De aliterações, rimas e assonâncias
A mente liga pontos e faz pontes,
Que há séculos e séculos são fontes
Para poetas contarem suas ânsias.

Assim, as milimétricas distâncias
Que por entre neurônios alguém conte
Nos têm a imensidão d'um horizonte
Após nos registrar tantas errâncias...

Espaço-tempo em si, nossas memórias
Parecem nos contar outras histórias
À medida que os anos têm passado.

Sem embargo, há-de ser a oralidade
Capaz de nos dizer toda a verdade
N'um verso febrilmente declamado.

Belo Horizonte - 25 01 2002

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

ORÁCULOS

ORÁCULOS

Segreda às pedras tuas sós verdades,
Enquanto a lua apenas acontece...
Ou senão a poesia -- oferta e prece --
Revelará dos deuses as vontades.

Não obstante, entre enigmas e obviedades,
Hás-de contar somente algo que expresse
O destino que todo homem padece
Iludido com suas liberdades.

Tu, sacerdotisa do profundo,
Assentada no umbigo d'este mundo
Poetizas os  desastres do porvir.

De vapores por fim entorpecida,
Teus versos profetizam morte e vida
Dos quais tantos em vão tentam fugir...

Belo Horizonte - 06 07 2002

A MANHÃ DE AMANHÃ

A MANHÃ DE AMANHÃ

Em meio às sombras de hoje eu me deito
À espera já das luzes de amanhã.
Sono e sonho engano por mal-sã
A angústia que ora agita cá meu peito.

Eu passo a noite em claro d'esse jeito,
Co'as horas indo ao encontro da manhã...
Embora saiba ser tamanho afã
De novo pelo amor mais-que-perfeito...

Não que me negue um só conhecedor
Da noite mais escura, todavia,
Vigílio a surpreender mais cedo o dia.

E tudo na esperança d'este amor,
Que a noite me proíbe -- longa já... --
E a manhã de amanhã enfim trará.

Belo Horizonte - 12 12 2005

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

QUIPROQUÓ

QUIPROQUÓ

Pois é... Há quem troque isto por aquilo,
Fazendo tempestade em copo d'água.
Turbilhão d'emoções ardem em frágua
Na vigília do espírito intranquilo!...

É fácil ver maldade n'um vacilo
Quem tem o coração já cheio de mágoa.
Após, em turvo rio ele deságua
E rompe igual barragem seu sigilo.

Ao se pressupor culpa, cai por terra
A ideia de que o inocente também erra,
Pois deve ser punido mesmo assim.

Quanto mais se defende, mais se acusa
Qualquer coitado diante da confusa,
Que julga em tudo sempre algo de ruim.

Betim – 19 12 2003

CODICILO

CODICILO

Pelo presente escrito a próprio punho
E com pleno poder das faculdades
Expresso as minhas últimas vontades
Com qu'eu, à morte, dou meu testemunho.

Deste modo, nos idos já de junho
Me vi sem esperanças nem verdades
Dispor do meu a alheias necessidades
Ao dar-me fé a tal póstumo cunho:

Minha mobília e roupas, podem doar
Meus anéis meu enterro hão-de pagar
Tão pouco me serviram quando vivo...

Meus versos, deixo a quem os souber ler
Mais os livros escritos sem saber
De vida e obra, por fim, qualquer motivo.

Contagem - 03 06 2004

DIATRIBES

DIATRIBES

Fala sem parar sem saber que diz.
Ofende, agride, grita, xinga, acusa,
Ironiza, especula, zoa, abusa...
E deita a falação com nomes vis...

Chegavam a ter dó d'este infeliz,
Apenas em silêncio face à obtusa
Pessoa que há horas se recusa
A entender os motivos do qu'eu quis.

Quando as palavras são para ferir,
Ter razão ou não muito pouco importa...
Quer-se antes fazer o outro desistir!

Amor só no papel é letra morta,
Pois, fala tudo e nada quer ouvir
Quem como o pior tirano se comporta.

Betim - 12 02 2003

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

URGÊNCIAS

URGÊNCIAS

Não tardes mais, amada, a vir me ver!
Depois de tantos anos tão ausente,
Voltaste à minha vida de repente
Para me confundir e me envolver?!

Duas vezes mais triste há-de viver
Aquele que algum dia foi contente...
Pudera eu encontrar-te novamente
Por mais felicidade e mais prazer.

Senão, todos os dias d'oravante
Serão por lamentar aquele instante
No qual me interrompeste a soledade:

Antes eu não sentia a tua falta;
Agora, teu sorriso aos olhos salta
N'um afã de esperança e de saudade.

Belo Horizonte – 30 12 2005

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

PAPO D'ALCOVA

PAPO D'ALCOVA

Vem!... Vamos fazer um amor gostoso?
Agora-aqui, juntinhos, eu e tu...
Deixa-me te admirar o corpo nu
Enquanto já me pedes outro gozo.

Mas meu corpo de ti tão desejoso
Faz te querer d'um jeito um tanto cru
Que te vira e revira igual lundu
E se derrete ao teu olhar dengoso...

Corpo de mulher; rosto de menina...
Hás-de drenar-me a seiva masculina
Até eu me perder dentro de ti.

Recebe meu prazer por teu prazer
E aceita o que melhor te parecer!
Juntinhos, eu e tu, agora-aqui.

Belo Horizonte - 12 12 2005

SUÇUARANA

SUÇUARANA

O cachorro latiu. Passou alguém?
Não vi nada e ninguém na madrugada
Andar de fronte à casa pela estrada.
Quer fosse alma d'aquém ou alma d'além.

O latido era forte e alto, porém. 
Fiquei a imaginar qualquer maçada:
Um paisano a pedir aqui pousada
Ou parente querendo algum vintém...

Lá fora estava um breu; noite sem lua.
Rebuliço de reses no curral
E algum vulto a cruzar todo o quintal.

Onça parda azulou na pedra nua,
Salpicando de sangue toda terra
Depois de molestar uma bezerra.

Sobrália - 07 07 2003

RAIO DE SOL

RAIO DE SOL

O pó que se acumula na mobília
Captura a luz na fresta da janela.
São milhões de corpúsculos aquela
Réstia a luzir tal-qual dourada trilha.

Percebo a rarefeita maravilha
Em fluidificada luz então mais bela,
Que lento movimento se revela
A olhos semicerrados em vigília.

A janela d'uma única bandeira
Deixava o sol entrar no quarto escuro
Espremido por tábuas de madeira.

Parecia o sol raiar assim mais  puro
Como quisesse já d'essa maneira
Me dar toda a alegria que procuro.

Inhapim - 12 09 2002

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

AUTÊNTICO

AUTÊNTICO

Valeu a pena ou não eu desistir?
Sou um infeliz menos infeliz...
Pois é: Já não lamento o bem que fiz
Ou tampouco o mal que me há-de vir.

Decidi de mim mesmo me despir
Para que, sem mais máscaras ou ardis,
Enfim pudesse ser tudo o que quis
Antes qu'eu acabasse de explodir.

Não quero ser melhor; quero só ser
Se a vida ao meu redor acontecer,
É qu'eu me permiti erros e acertos.

Gostem ou não de mim, sou o que sou.
A verdade é que sei aonde vou
Depois que em vão vaguei pelos desertos.

Betim - 10 12 2004



ADEUS

ADEUS

Toma a tua paixão e a tua alegria
E deixa que amanheça sobre ti.
Não há mais lugar para ira aqui
Agora que nos nasce um novo dia.

Madrugávamos sós já sem poesia...
No fim, nenhum de nós sequer sorri!
Sinto muito se em vão te aborreci:
Apenas quis uma outra fantasia.

Dúbios ou não, meus olhos trás-as-lentes
Te veem e te respeitam muito embora
A incompreensão que tens de mim agora.

Nem melhores nem piores: Diferentes.
Eu não te quero mal; não quero nada...
Segue na paz de Deus a tua estrada.

Betim - 20 03 2003

BÚSSOLAS

BÚSSOLAS 

O que norteia a agulha nos norteia 
Também a nós por essa imensa esfera,
Cujo campo magnético, a Ionosfera,
Há quem perceba como uma cadeia.

Dizem que até o sangue pela veia
Lhe sente a direção na qual impera.
Mas seja isso razão; seja quimera,
Algo que homem e Cosmo intermedeia.

Guiados por um comando bem remoto,
Tudo é executado com certa ordem,
Ainda que o motivo seja ignoto...

Assim veem superar caos e desordem
Por corações e mentes em controlo,
Qual agulha que aponta sempre o polo!

Betim – 19 12 2004

domingo, 18 de dezembro de 2016

RUA DA BAHIA

RUA DA BAHIA

De coração partido e olhar perdido,
Os solitários homens pós-modernos
Se vão ensimesmados com seus ternos
Rua acima conquanto sem sentido.

Sabem o que podia a vida ter sido
Mirando aqueles olhos verdes ternos...
Porém, nem infinitos nem eternos
Seus amores correm para o Olvido.

Pois se tempo é dinheiro bem contado,
Não deve se quedar desalinhado,
Enquanto vão seguindo rumo ao topo.

Só hão-de reparar no próprio nada
Na saideira, já alta madrugada,
Pouco antes de virar o último copo.

Belo Horizonte - 08 09 2004

sábado, 17 de dezembro de 2016

RETROGOSTO

RETROGOSTO

O gosto que me fica pela boca
Depois de te beijar perdidamente
Ainda permanece em minha mente,
Embora entorpecida e já meio oca.

Tua língua se à minha língua toca
Parece ora agridoce; ora adstringente...
O que jamais me deixa indiferente,
Antes mais me vicia e me provoca.

Beijos que como um vinho capitoso
Eu degusto com máximo prazer,
Ainda que me embriague d'esse gozo.

Quisera enfim n'um hausto te sorver
E sentir teu desejo assim gostoso
Aos poucos pela boca ir se perder.

Betim - 11 11 2006

ÊXODO RURAL

ÊXODO RURAL

Lembro que no meu tempo de menino
Uns finórios chamavam-nos de jecas.
Isso como se eles lessem bibliotecas
E tivessem de vera um gosto fino.

Bem cedo eu saí da roça... Um desatino!
Entre cabeças ocas, gentes secas...
Um lugar do qual não sabia necas
A não ser que era então o meu destino.

Cidade grande? Não... Periferias!
Em terras de demandas, carestias,
Onde de novo fui diminuído...

Tem sempre alguém achando-se melhor
Pois considera quase sem valor
Tudo o que não puder ser possuído.

Betim - 03 06 2003

SOL D'ESTIO

SOL D'ESTIO

É lindo quando o céu se abre à tarde
Após dias de chuva ininterrupta.
Parece uma alegria quase abrupta
D'esse sol que, a dourar nuvens, luz e arde.

Quiçá uma beleza assim atarde
Àquela solidão que vem inupta.
Tal como a fala estúpida e incorrupta,
Que se vê na coragem do covarde.

Ou ainda possa ter que d'esta hora
Se faça etérea e lúcida experiência
Quando a Natura em cores comemora.

Incline-se, por fim, em reverência
Minh'alma emocionada, muito embora
Acompanhe eu d'um rei a decadência.

Betim - 16 12 2016

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

PARUSIA

PARUSIA

E então quando voltar o Redentor
-- Qual fora visto há quase dois mil anos --
Há-de nos renegar os desenganos,
Para após nos julgar tão-só no amor.

Quando Jesus voltar, seja como for,
Trará luz aos espíritos humanos
Em face dos pesares quotidianos,
A saber, fome, guerra, doença, dor...

...E esse grande vazio! Venha a Glória
Ante o anúncio da sétima trombeta,
E finde enfim dos povos toda a História!

Ou não... D’entre as palavras do profeta,
Talvez promessa cuja só memória
Sempre para o porvir mais nos projeta...

Ubatuba – 24 12 1999

A CRUZ PARTIDA

A CRUZ PARTIDA

"Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado"
--  o bom ladrão.

Virá como um ladrão -- pois, escondido --
E verá confundida a humanidade.
Porque um tempo de grande obscuridade,
Em que o povo s’encontra dividido.

Então mesmo o cristão está perdido,
Ao clamar o Seu Nome em inimizade.
Porém, justo por zelo da Verdade,
Têm n’ela o coração endurecido!

Por Cristo, cristãos têm guerreado um a um:
Olho por olho e irmão contra irmão,
Mesmo sem chegar a lugar algum.

Encontrará não mais que desunião...
N’aqueles que tinham tudo em comum
E há tempos não se veem em comunhão.

Belo Horizonte – 20 11 1994                                    

DIAS DE QUARUPE

DIAS DE QUARUPE

É sol de sangue n'um pálido céu!
É tronco ornamentado preso ao chão!
É fazer memória! É celebração!...
É canto! É dança! É luta! É cor! Tropel!!!

... Há-que se nos pôr fim ao luto cruel
Em festa de reunir toda a nação.
Por deixar que nos fale ao coração
A alma que se despede do olhar fiel.

... Há-que se ter saudade sim. E, ainda,
Lembrar d’aquele a vida longa e linda
Que feito estrela pelo céu fulgura:

-- "Não lhe entristeça a nossa só tristeza,
Antes mantenha a chama sempre acesa,
A que nos seja luz na noite escura!"

Belo Horizonte – 06 05 1993

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

ASCENSÃO À ARUANDA

ASCENSÃO À ARUANDA

Na casa do Pai há muitas moradas,
E aqueles que na Glória têm vivido
Sabem que o amor impera sobre o Olvido,
Ao guiar o fiel por sete encruzilhadas.

Assim, ao se findarem as jornadas
D’este que agora cai desfalecido,
Verão o fiel, de tudo já despido,
S’elevar às alturas sublimadas!

Qualquer seja o destino dos finados,
Haverão-de deixar toda demanda,
Purgando-se do carma dos pecados.

Pois só na paz o espírito ainda anda
Até rever os Bem-aventurados
E habitar sob a luz santa de Aruanda.

Belo Horizonte – 02 11 1993

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

LUSA E BRASILEIRA

LUSA E BRASILEIRA

A lusa navega entre o tu e o você,
Cruzando todo o Atlântico: Alma e Oceano...
Mas maluca comete um ledo engano,
Pois, mameluca lá e cá se vê.

A lusa, sem que já saibam por quê,
S’enamora e amorena ano após ano.
Mestiça de ameríndio e de africano,
Eis-me a lusa cafuza n’um fuzuê!

De facto, uma mestiça mui preciosa:
Cor-de-cobre, descubro-a ainda presa
A seu jeito dengoso em tirar prosa.

Dos poetas a cantar sua beleza,
Sou mais um cuja pena caprichosa
Canta essa crioula língua portuguesa.

Belo Horizonte – 11 11 1991                

FÁTUO

FÁTUO

Para de me chamar! Não vou voltar...
Pois é: O que ficou está guardado.
Eu tão-somente não me sinto amado
E aqui nunca foi mesmo o meu lugar.

Pode até ser que tenha de passar
Como atravessa um raio de lado a lado.
Fui o que pude ser, o mais é Fado:
-- “Só lamento...” -- Mas não chego a chorar.

Deixa estar qu’eu ainda serei luz
Nas pupilas de tantos olhos nus,
Ainda que tão-só por um segundo.

Assim, revelar-se-á na escuridão
Das sombras de teu vago coração
Esse amor tão imenso e tão profundo.

Betim – 15 12 2010

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

EM BREVE

EM BREVE

Dá tempo ao tempo tu que te anseias tanto
E te angustias pelo que virá...
Seja medo d'alguma coisa má;
Seja esperança d'outro grande encanto.

Não, não te desanimes por enquanto.
Antes vê n'este instante tudo que há-
De mais emocionante a fazer já
Um verso que te sirva de acalanto.

Deixa que se esvaziem as palavras
E espalha mais sementes pelas lavras
Do desolado solo de teu peito.

Logo logo estarás de novo em paz
Apenas co'o viés que o tempo traz
De sempre mudar tudo do seu jeito.

Betim - 12 12 2008

domingo, 11 de dezembro de 2016

EM SEU NONE

EM SEU NOME

Sim, como todos sabem, Deus é UM;
Mas também evocado como Alá...
Ou Adonai, Elohim, Javé, Jeová...
Por Senhor... Coroaci...  Por Olurum...

Pois isso de crer em Deus é bem comum:
O Altíssimo Criador nos céus está
E, Omnipotente, tudo Ele nos dá
Mesmo sem termos mérito nenhum.

D'um modo ou d'outro, o mundo agora existe
E Deus, seja quem for, nos acompanha
N'essa fé a mover cada montanha...

Ignora-se se está feliz ou triste.
O facto é que em Seu Nome guerra e paz
Por séculos e séculos se faz.

Betim - 11 12 2009

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

MONUMENTÁLIA

MONUMENTÁLIA

Se os olhos viram já coisas demais,
Talvez a imensidão dos céus de Deus
Falasse um pouco mais aos olhos meus
Do que as cúpulas mais monumentais.

Ou as pedras de colunas colossais
Por onde vêm e vão os passos teus.
A balizar os mesmos pés plebeus
Distraída através de arcos triunfais...

Passo pela avenida secular
E contorno o obelisco grafitado
Enquanto assisto o tempo ali passar.

Ao largo, rememoro ‘inda o legado
D’aqueles que deixaram no lugar
Essa imensa presença do passado.

Belo Horizonte - 07 12 2008

A GENTE DA ROÇA

A GENTE DA ROÇA

Quando isso tudo aqui era sertão,
Uma cultura feita da Natura
Fazia a gente ver a vida dura
Como que a mais perfeita educação.

De facto, cá se aprende desde então
A não se carecer d'outra fartura
Que aquela que nos eitos se procura
E irrompe d'ouro verde em nosso chão.

A gente sabe que não sabe tudo...
Mas, mesmo sendo pouco o nosso estudo,
De atrevido rascunho alguns maus versos!...

Uma vez ou outra, a gente que é da roça
Se faz de cantador quase de troça
Para assuntar uns causos controversos...

Sobrália - 28 12 2009

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

GATA ANGORÁ

GATA ANGORÁ

Talvez tamborilasse uma angorá
Enquanto o sol ardia no telhado...
Imagino-a correr de lado a lado,
Mas sem saber de vera onde ela está.

Eu a escuto ora aqui; ora acolá,
Grunhir estranha e aflita o seu estado.
E ainda qu'eu me veja preocupado,
Aguardo tudo até ver no que dá.

Parece enfim que a gata se incomoda
Depois de circular a tarde toda
Bem leve e solta lá pela cumeeira.

Não tem jeito: Vou ter de pôr a escada!...
Só assim p'ra findar sua jornada
E resgatar a gata aventureira...

Betim - 07 12 2016

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

HAGIOGRAFIAS

HAGIOGRAFIAS
                               I
                                        são Francisco Xavier
Ir sempre mais além! Sempre mais longe!...
Por tocar de cada um o coração.
Que, se não faz a cruz bom o cristão,
Um hábito tampouco faz o monge.
Ide-vos! Passo a passo mais se alonje
Quem fostes n’uma antiga escuridão.
Para que, exercitados na oração,
Esta às máculas d’alma lave e esponje.
Tende por armas antes a bondade,
Onde a misericórdia vos transborde
Desde o peito uma real felicidade.
Com um júbilo uníssono de acorde,
Buscai com todos ter boa-vontade,
Fazendo-nos um mundo mais concorde.
*  *  *
                               II
                                     são Francisco de Assis
Marcaste-me, Jesus, com Tuas chagas.
Rasgas profundamente as minhas palmas
Mas mesmo assim, na dor após me acalmas,
Do que na solidão sempre me indagas.”
Bendigo o sangue, a angústia, o ardor, as pragas...
Caminho pelas trevas, mas me psalmas.
Pelas fadigas d’este mundo, às almas
Toda a luz que me deste não me apagas.
Porque ouvida a ordem Tua, a obedeci,
E visto sinal Teu, o acompanhei;
Vivendo-te a Paixão, eu renasci.
Perdido para o mundo, me ganhei;
Um trovador de Deus me conheci:
Teu amor arde em mim, e eu te sonhei.
*  *  *
                              III
                                  santo Antônio de Lisboa
Douto, tanto dos Céus quanto da Terra,
Tivera a sua língua incorrompida
Para mostrar na morte o que na vida
Fora d'hereges máquina de guerra.
Sem embargo, o carinho que 'inda encerra
Sua imagem por séculos querida
Do Menino-Jesus o fez guarida,
Como honra a quem ao lúcido se aferra.
Divina é a razão posta a serviço,
Cá dos homens que às cegas buscam Deus
E se perdem p'lo mundo com os seus.
Mais festeje este seu povo tudo isso:
Aquele que na Glória luz em feixes,
Após pregar Jesus até aos peixes.
*  *  *
        
                            IV
                                                  santa Bárbara
Há quem afinal clame pela santa
Sob o clarão dos raios de tempestade...
Quando de súbito uma claridade
Bem perto do vivente se agiganta.
Sua estupefacção então é tanta
Que mal se lembrará da autoridade
D'essa virgem e mártir que, em verdade,
Mais pelo exemplo e fé há tanto encanta.
Dos mártires é a alma iluminada.
Enquanto os olhos têm fitos em Deus,
Elevam-se, por fumo, para os céus.
Dos algozes a sorte está lançada...
Vãs as invocações feitas a Zeus:
Os raios do Tonante vingam os réus!
*  *  *
                                VI
                                                  são Sebastião
Mártir são Sebastião, crivado em setas,
Que estais atado a ramos tão agrestes
Para dar testemunho de fé a estes
Cuja violência contam os profetas,
Oh, vinde em nosso auxílio!  -- nós, os poetas --
Livrai-nos enfim d'estas negras pestes;
Seja o niilismo ou tédio... Prometestes
Iluminar às mentes sós e inquietas.
Curai o nosso escuro coração 
Sem vos curvar jamais favores, mimos...
Antes a mais perfeita contrição.
Trovadores do nada, vos pedimos:
Sede nosso advogado em intercessão
Contra o imenso vazio que sentimos.
*  *  *
                                VI
                                                    santa Cecília
Mas, entre o amor e as artes, Deus quem sabe...
Quando servi-LO é tudo o que deseja,
Oferta os seus talentos para a Igreja:
Põe música e poesia em quanto cabe.
Pouco importa que um dia o céu desabe
E leve embora amores ou o que seja,
Ela abençoa a mão que a apedreja,
Antes que a melodia à boca acabe.
Grande restauradora de canções,
Trouxera a voz dos anjos às prisões
Onde homens e mulheres esperando...
Eis a mais nobre força de tais  artes!
Não fazer esquecer de quando em quando,
Sim alumiar a dor em tantas partes.
*  *  *

VII
                                             santa Rita de Cássia
Aquela que olha pelos malcasados
Chora com eles dores também suas...
Pois têm, mesmo passadas tantas luas,
Ainda os sonhos vãos despedaçados.

Se na vida a dois tudo tem três lados,
Tanto um e outro se veem verdades cruas:
O mesmo amor que aquece as peles nuas
Depois lhes deixa os olhos marejados...

Há quem diga ser coisa do demônio
E a passionalidade igual maldade
Que lhes destrói família e patrimônio.

Isso faz admirável, em verdade,
Quem soubera fazer do matrimônio
Uma estrada de dor e santidade.
Betim - 10 11 1999



terça-feira, 6 de dezembro de 2016

BANHO DE BANHEIRA

BANHO DE BANHEIRA

Nua, faz que não vê meus olhos n'ela
Pois indo se banhar sem pressa alguma.
Cobre-se, do pescoço aos pés, de espuma:
Consegue d'algum modo ser mais bela...

De facto, mais esconde que revela
A neve branca que ora lhe perfuma.
Não fosse a aborrecer, uma por uma,
Eu sopraria as bolhas só por vê-la!

Em todo caso, é bom estar tão perto
E saber que seu corpo ali coberto
A mim se mostrará em esplendor.

E logo há-de ficar à flor da pele
Toda a sensualidade que a impele
A ser minha mulher e meu amor.

Betim - 02 03 2008

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

O HIPOCONDRÍACO

O HIPOCONDRÍACO

Percebo o coração quase infartado
Bater-me forte e surdo igual  parando
E o peito comprimido de já quando
A morte se insinua em meio ao Fado.

Serei tolo de não ver meu estado?
Se 'inda me consome o mal nefando,
Cujo remorso é toda uma vida... Ou ando
Negando ainda o pulso desritmado?...

É... O ser não é mais que reticente
Exame de sinais vitais que osculto:
Um corpo me sentindo tão-somente.

Por desgraça, talvez morra pouco antes
De começar a vida! E, de repente,
Sofrer de todo o mal d'alguns instantes...

Betim - 10 11 1999

IMPESSOAL

IMPESSOAL

Há tempos não se sabe ser pessoa,
Antes mais um que n’esse mundo nasce.
Quem, de automatismo, um sorriso à face,
Deixa, se muito, alguma impressão boa.

Há que existir em vão cara-coroa
A escolher-se o devir no qual se outrasse
N’alguém que só a si e por si faz-se
Mas, por duplipensar, ora impessoa...

Se a vida é movimento, há um sentido
Ou a existência seria sensação...
Chove e faz frio mas, o coração

É preciso manter entorpecido.
Já nem reconhece em meio ao olvido
A sua própria voz na multidão!...

Belo Horizonte – 10 12 1998

SILÊNCIOS

SILÊNCIOS

Não tenho olhos senão para os teus olhos...
Acredita-me, embora antigos medos:
Nossa história e seus tantos desenredos
Parecem conduzir-me sempre a escolhos...

Porém, como se espreitasse por ferrolhos,
Espio tolamente os vãos segredos,
Que guardas co'as lembranças  de anos ledos
Abandonados entre outros trambolhos.

Ou não... Silêncios só silêncios são!
Interpretá-los é, na escuridão,
Conseguir ver até o que se esconde.

Nada tem a dizer quem nada diz...
Eu só posso supor que estás feliz,
Buscando um lugar sem saberes onde.

Betim - 04 12 2016

domingo, 4 de dezembro de 2016

CONCORDES

CONCORDES

De acordo co'os acordes que te fiz,
Eu te acordo co'as cordas do violão
E te acovardo a dor do coração
N'um canto em cujo encanto és feliz.

Encorporado o ritmo, um aprendiz
Eu me faço no compasso da canção.
E, passo a passo, trago outra emoção
Tão certo quanto bem te quero e quis.

De cor o acorde, pois, acode e  acorda
Quando, a poesia e a música concordes,
Se faz canção que então o amor aborda.

Talvez assim de mim tu te recordes
Enquanto meu amor por ti transborda
Na harmonia de versos mais acordes.

Betim - 09 08 1993

BARROQUISTA

BARROQUISTA

Meus pré e pós conceitos questionados
Põem-me a nu a despeito dos costumes.
Quem, de mim contra mim, poéticos lumes:
Certos erros são mais que só errados...

Sim, se as imperfeições de tantos Fados
São matéria de poetas e outros numes,
Sobretudo aqui, face a serras, cumes...
Os olhos veem presentes os passados.

Meus gáudios pensamentos voam arcanjos
Ao espetac'lo barroco borromínico
Da mente a especular novos arranjos.

Atenho-me, no fim, ao estado anímico
Onde as pedras se põem em movimento
Nas volutas que a igrejas acrescento.

Ouro Preto - 12 10 1999

MORTAL

MORTAL

D'entre as horas da vida há a da morte
Destinada, dir-se-ia desde o gen.
Um instante que insólito nos vem
Certo apenas que nada mais importe...

Se do fio da vida faz o corte
Aquela que nos tece o mal e o bem
N'uma trama enredada vê também
Quem não escapará à adversa sorte.

O gozo dos momentos não me engana:
Apesar da quimera e da fortuna,
N'um sopro só se entrega uma alma humana!

Mas, afinal, a vida à morte se uma,
A fim-de que qualquer ser na hora dana
Saiba-se um grão de areia em meio a duna...

Betim - 07 07 1999

AMPULHETA

AMPULHETA

Não te demores, minha linda amante,
Em gozar no meu corpo os teus prazeres.
Os grãos da vida caem sobre os quereres
A ocultar-nos o amor de instante a  instante...

Não deixes de sentir no peito arfante
Um encanto maior vir sem o souberes
E aceita-me, mulher entre as mulheres,
Os meus olhos nos teus olhos bem diante.

O tempo que nos passa, todavia,
Parece correr mais rápido e em vão
Agora que te sei no coração.

Apressa-te! Ou senão nossa alegria
Permanecer-nos-á uma lembrança,
Enquanto cada grão de mim se lança...

Betim - 03 12 2016

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

FOGO MORTO

FOGO MORTO

O amor ardera até me reduzir
A cinzas de desejo ora apagado.
Qual engenho de fogo morto, o Fado
Fez-me ruína e pó sem mais porvir.

E o pouco que me resta é refletir
Sobre as contradições de meu estado...
Embora extinto o incêndio, rescaldado,
Meu corpo é calentura a ir e vir.

Levando-me a alegria e toda calma,
O amor ao me inflamar a essência d’alma
Esvaziara-me até a última gota.

Não vejo qualquer Fênix renascida
No sinistro que agora arrasa a vida.
Vejo apenas os campos da derrota...

Gov. Valadares - 31 03 1994

ATA-FINDA

ATA-FINDA

De que valeis, reveses d’amor? Brio,
Que enchendo o coração de vãos torpores,
Àquele que se busca novas dores
E sem calor de abraços, cai de frio

E somente se mente em desvario
Iludido por álcoois e vapores,
Enquanto chora triste os seus amores
Em versos transbordantes como rio...

...Ou frutas sobre a mesa maduradas
A exalar forte pela escuridão
Essências lentamente fermentadas,

Qual presença na ausência, vós em vão
Sabeis ter no presente horas passadas
Com ais que talvez nunca passarão.

Santa Bárbara - 30 09 1996

SOL E LUA

SOL E LUA

Quando n’um mesmo céu o sol e a lua
São vistos juntos pelo firmamento,
Admirado eu contemplo esse momento,
Que a minha pena agora perpetua:

O sol, cujo declínio se acentua,
Parece obscurecido e, em descontento,
Sofre da lua estranho enfrentamento
Como se a lhe depor da alteza sua.

Sombria, à Terra a lua eclipsa o sol.
Algumas horas antes do arrebol,
Vencia a lua ao sol que se desterra...

Não sei já se de noite ou se de dia,
Mais tarde um sol a lua parecia:
Sol de prata, o luar brilha sobre a Terra.

Belo Horizonte - 30 06 1992

CANTORIA

CANTORIA

— ”Apurai-vos a voz do coração
E ouvi todos vós! Vós todos ouvi!!
Até cada um ousar dar mais de si,
Cantando juntos uma só canção.”

“Seja nosso cantar celebração
De tudo o que nos trouxe até aqui.
Soe!... -- sem saber se chora ou se sorri --
E toda voz se eleve com emoção!”

“Contai, pois, cada sílaba do canto
Até que, espiritual, a melodia
Consiga s’espalhar de canto a canto...”

“Vossa expressão mais pura de alegria,
Rejubilai como anjos face ao Santo
N’um canto convertido em cantoria.”

Cap. Andrade – 04 03 1995

APALAVRADA (sic) RIQUEZA

APALAVRADA (sic) RIQUEZA

Quantas vezes, igual um avaro, eu
Contemplara poéticos tesouros?...
Em gavetas, prolíficos, meus ouros
Como as barcas do escravo do Pireu!

Eu sou alguém que a si mesmo colheu
Uma fortuna crítica sem louros
Aos versos que o Eu-Agora e os Eus-Vindouros
Têm diversos sentidos ao que é meu.

Mesmo os tendo por ouro verdadeiro,
Vos dou como alguém co'os bolsos furados
Deve andar por aí a perder dinheiro...

Se a vós ouro de tolo, validados
Foram não por quilates,  mas inteiro
O fiel onde meus eus serão pesados.

Betim - 04 07 1999

ÚLTIMA PARADA

ÚLTIMA PARADA

Estava triste sem saber por quê,
Apenas esperando o trem parar...
Um tanto distraído perco o olhar
A dizer-me ora “Não”; e ainda ”Sê!”

Algaravia dentro em mim se dê:
--“Não. Eu nunca estou onde quero estar...
Imagino e é sempre um outro lugar!...” --
Mas, desço do comboio igual clichê

Digno d’algum herói rocambolesco,
Que aos transes de ventura em vão padece,
Indo desde o sublime ao mais grotesco...

Já na estação, aos poucos escurece.
Minh’alma, n’um desgosto gigantesco,
Sequer sabe porque ora se entristece.

Belo Horizonte -15 02 1998

EM ABSTRACTO

EM ABSTRACTO

Pelo infinito pus meus pensamentos
Em cartesianos pares ordenados.
Onde inertes sistemas bem fechados
Eu os houvesse já sem incrementos.

Não me admira que em todos os momentos
Em face d’estes eus ali passados,
Reconheci-me rostos mascarados
A encenar-me d’outrem os movimentos.

-- “Meu Deus! Será que o meu eu é o meu?” --
Penso, sinceramente, se sou eu
Ou se sou de mim mesmo personagem...

Ou não... Não mais que alguém que se perdeu
Dentro de sua hermética mensagem
No espelho a refletir a própria imagem.

Belo Horizonte - 27 09 1998

PALAVREADO

PALAVREADO

Não me ponhas palavras pela boca,
Sem antes eu as ter no coração!
Tudo o que escrevo, com ou sem razão,
Eu senti... Mesmo quando em vão te choca.

Tem palavra que sempre me provoca
O afã de reviver uma emoção.
Outra, reluz em mim feito clarão
Tal a beleza qu'ela em si evoca.

Por isso tento ornar o palavreado,
Crente que na poesia cada termo
Me pareça a seu modo destacado.

Já nem reparo mais se velho e enfermo
Escrevo em linhas tortas o meu Fado...
Garimpo-me palavras n'algum ermo.

Ibirité - 27 11 2016