A CIDADE AO MEU REDOR - Crônicas d'Anteontem
De repente paro no canteiro central da avenida e me sinto rodeado pela cidade. Como se desperto de um sono conturbado, deixo de seguir o fluxo que me impelia a seguir em frente. Paro e observo. Rostos desconhecidos passam por onde também eu acabei de passar: "Eu fora mais um" -- pensei comigo -- enquanto lidava confuso com meu súbito despertar. Carros vêm e vão pelo asfalto sinalizado enquanto a sombra dos edifícios se projeta sobre os largos. Escurecia aos poucos e havia pressa, muita pressa, em tudo e todos que passavam por ali. Apenas eu estava parado.
Embora não fizesse sentido minha hesitação -- se é que se podia chamar de hesitação àquela actitude -- decidi não retornar ao caminho imediatamente. Ao contrário, deixei que o bulício da cidade me envolvesse n'um estranho abandono contemplativo. Era interessante ver a pressa dos outros em contraste com minha apatia, como se eu tivesse conseguido me colocar à parte d'aquela realidade e fosse capaz de percebê-la sem a sentir em mim. Eu era um observador, mas o que observava? Fosse outra a situação, decerto projetaria sobre a cidade em movimento novos espledores e peculiaridades. Mas, não. Tampouco me coloquei ali como cientista social a descrever conflitos urbanos ou como publicitário de agências de viagens para apregoar as excelências do lugar. Humildemente, estava ali com minhas inquietudes e misérias a reconhecer-me no anonimato de cada pessoa que passava, de cada auto que trafegava. Distinguia-me apenas por não ter pressa de sair d'ali. Há quem defenda que o ser humano tenha aversão ao vazio e, por isso, se ocupe em inventar adornos de bom gosto ou histórias tranquilizantes para cada vão percebido no espaço que habita. A cidade ao meu redor, porém -- cenário de existências comuns -- talvez escape d'essa avidez em dar sentido a tudo que caracteriza a existência humana. Ao contrário, tudo o que vejo é a lento decantar de ações humanas n'um lugar que é antes resultado que intenção. É como a poeira que o movimento constante agita indefinidamente por quilômetros até pousar sobre o concreto e encardi-lo, pintando de cinza escuro todas as superfícies aparentes e apagando todas as marcas individuais capazes de indicar pessoalidade: Monumentos, publicidades, pichações, ornamentos, sinalizações, paisagismos... Qualquer esboço de assinatura de pessoal que tente se impor ao olhar coletivo é continuamente coberto e recoberto pela pátina acinzentada de minúsculos sólidos em suspensão.
Percebo que a cidade resiste a ser obra de indivíduos, apagando nervosa os traços d'este ou d'aquele em sua tecitura. E toda arquitetura e todo urbanismo e todo paisagismo são, no fundo, tentativas meios desesperadas de criar o extraordinário da arte dentro do ordinário da vida metropolitana. O espalhafatoso, o confortável, o dispendioso e o elegante são jogados no espaço urbano no afã de fazer com que o citadino abra seus olhos diante da paisagem quotidiana, mas, sobretudo, são jogados ali para se fazerem assinatura d'um indivíduo cercado por oceano de anônimos. Debalde: Assim como a poeira homogeniza a cidade com seu cinza-carvão, também o olhar cansado do cidadão apressado em deixar a metrópole ruidosa o faz insensível ao diferente. Ninguém enxerga nada.
Essa incapacidade de beleza, essa estoica afirmação do funcional e essa negação contínua do individual me exasperavam às vezes: A cidade ao meu redor não é bela senão enquanto paisagem vista de longe. Não é bela aqui n'essa esquina escura cercada de prédios altos e cinzentos. Sem embargo, dou-me conta que essa impessoalidade é mais justa e realista que a assinatura de algum mestre do desenho. Sim, a cidade ao meu redor é matéria modelada por milhões de pés e mãos, não pelo gênio de um só. Quem quiser ver a arte do indivíduo, não será aqui. Ei-lo: O prédio colorido e ousado que causou espécie em minha juventude hoje passa quase desapercebido após envelhecer como eu... Mal se distingue dos demais para evocar qualquer lembrança de seus ideadores. Está ali, mas não estava até eu parar para vê-lo coberto pela mesma poeira cinza que o fez semelhante ao cubo de concreto armado que lhe ladeia.
É esse espetáculo do indistinto que a cidade ao meu redor me oferece. Eu me sento na guia da calçada e aplaudo.
Belo Horizonte - 20 04 2018
Embora não fizesse sentido minha hesitação -- se é que se podia chamar de hesitação àquela actitude -- decidi não retornar ao caminho imediatamente. Ao contrário, deixei que o bulício da cidade me envolvesse n'um estranho abandono contemplativo. Era interessante ver a pressa dos outros em contraste com minha apatia, como se eu tivesse conseguido me colocar à parte d'aquela realidade e fosse capaz de percebê-la sem a sentir em mim. Eu era um observador, mas o que observava? Fosse outra a situação, decerto projetaria sobre a cidade em movimento novos espledores e peculiaridades. Mas, não. Tampouco me coloquei ali como cientista social a descrever conflitos urbanos ou como publicitário de agências de viagens para apregoar as excelências do lugar. Humildemente, estava ali com minhas inquietudes e misérias a reconhecer-me no anonimato de cada pessoa que passava, de cada auto que trafegava. Distinguia-me apenas por não ter pressa de sair d'ali. Há quem defenda que o ser humano tenha aversão ao vazio e, por isso, se ocupe em inventar adornos de bom gosto ou histórias tranquilizantes para cada vão percebido no espaço que habita. A cidade ao meu redor, porém -- cenário de existências comuns -- talvez escape d'essa avidez em dar sentido a tudo que caracteriza a existência humana. Ao contrário, tudo o que vejo é a lento decantar de ações humanas n'um lugar que é antes resultado que intenção. É como a poeira que o movimento constante agita indefinidamente por quilômetros até pousar sobre o concreto e encardi-lo, pintando de cinza escuro todas as superfícies aparentes e apagando todas as marcas individuais capazes de indicar pessoalidade: Monumentos, publicidades, pichações, ornamentos, sinalizações, paisagismos... Qualquer esboço de assinatura de pessoal que tente se impor ao olhar coletivo é continuamente coberto e recoberto pela pátina acinzentada de minúsculos sólidos em suspensão.
Percebo que a cidade resiste a ser obra de indivíduos, apagando nervosa os traços d'este ou d'aquele em sua tecitura. E toda arquitetura e todo urbanismo e todo paisagismo são, no fundo, tentativas meios desesperadas de criar o extraordinário da arte dentro do ordinário da vida metropolitana. O espalhafatoso, o confortável, o dispendioso e o elegante são jogados no espaço urbano no afã de fazer com que o citadino abra seus olhos diante da paisagem quotidiana, mas, sobretudo, são jogados ali para se fazerem assinatura d'um indivíduo cercado por oceano de anônimos. Debalde: Assim como a poeira homogeniza a cidade com seu cinza-carvão, também o olhar cansado do cidadão apressado em deixar a metrópole ruidosa o faz insensível ao diferente. Ninguém enxerga nada.
Essa incapacidade de beleza, essa estoica afirmação do funcional e essa negação contínua do individual me exasperavam às vezes: A cidade ao meu redor não é bela senão enquanto paisagem vista de longe. Não é bela aqui n'essa esquina escura cercada de prédios altos e cinzentos. Sem embargo, dou-me conta que essa impessoalidade é mais justa e realista que a assinatura de algum mestre do desenho. Sim, a cidade ao meu redor é matéria modelada por milhões de pés e mãos, não pelo gênio de um só. Quem quiser ver a arte do indivíduo, não será aqui. Ei-lo: O prédio colorido e ousado que causou espécie em minha juventude hoje passa quase desapercebido após envelhecer como eu... Mal se distingue dos demais para evocar qualquer lembrança de seus ideadores. Está ali, mas não estava até eu parar para vê-lo coberto pela mesma poeira cinza que o fez semelhante ao cubo de concreto armado que lhe ladeia.
É esse espetáculo do indistinto que a cidade ao meu redor me oferece. Eu me sento na guia da calçada e aplaudo.
Belo Horizonte - 20 04 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário