domingo, 27 de setembro de 2020

REPERTÓRIO

 REPERTÓRIO

Mas eu, que apenas quis cantar o amor,
Há muito já não sei sequer amar...
Tenho as ideias tão fora do lugar
Que esquecer minhas letras é favor.

Se canto, é a embalar alheio ardor
E rasgo o peito para outrem folgar.
Pois sem amor (e até mesmo sem par!...)
Sentimentalidades sei supor:

Eu subo uma outra vez para a berlinda
Somente repetindo que ela é linda
N'algum refrão que não me diz mais nada.

Mas eu, que tenho apenas desencanto,
Do repertório (ainda amando tanto!...)
Eu solto a minha voz emocionada.

Betim - 26 09 2020

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

FLORES ESTÚPIDAS

FLORES ESTÚPIDAS

As flores que espalhaste pelo chão,
Depois de tu me haveres dado as costas
Deixaram mais perguntas que respostas,
Enquanto se partia o coração.

Se flores tão-somente flores são,
Aquelas eram frescas como gostas.
Trazendo em boa-fé minhas propostas 
Renitentes de amor e de paixão.

Tu, entanto, não vês senão os cardos
No ramalhete a ti oferecido,
E desdenhas de mim os versos tardos...

-- "Estúpidas!" -- Disseste em meu ouvido.
Deixando-me a catar feito petardos
A flor que despetalas para o Olvido.

Betim - 18 09 2020




quarta-feira, 16 de setembro de 2020

SEM RAÇA DEFINIDA

SEM RAÇA DEFINIDA 

Malu era, provavelmente, o ser vivo mais saudável que já existiu. Desde que entrou em nossas vidas, trazida por um carpinteiro que trabalhava nas obras de nossa casa, ela jamais adoeceu. Isso já faz uns oito anos. A casa ficou pronta, os operários foram embora e Malu ficou. Em tempo, tratava-se d’uma cadela vira-latas castrada depois de três ou quatro prenhezes. Tinha pelagem branca malhada de castanho e preto, olhos claros e orelhas bem erectas de loba.  


Entrava e saia livremente, jamais se demorando na rua mais que um dia inteiro, de modo que era conhecida de todos na vizinhança. De manhã cedo, passava na padaria e ganhava um pão fresco da mão do padeiro, além de correr na pista de caminhada da avenida, sozinha, junto com os outros cachorros encoleirados. Malu, aliás, usava coleira, mas apenas. Jamais passeava amarrada junto de qualquer um de nós. Malu não era uma cadela doméstica, sim mais uma moradora de nossa casa, absolutamente independente de nós. Jamais precisou ir ao veterinário, excepto quando da castração. Não tomara vacinas e tampouco necessitava de medicações. Vez em quando passávamos remédio para pulgas e tentávamos lhe dar banho. Invariavelmente, porém, tão logo se livrava de nós, molhada ainda, Malu rolava na poeira... 

 

Muito dócil, Malu só latia para andarilhos que mexiam no nosso lixo. Jamais tivemos receio de receber visitas. Nem cheirar os estranhos vinha. Ela reinava, livre e solta, em nosso jardim e na rua defronte a nossa casa. Pouco se importava com conosco, a não ser quando deitava de bruços pedindo carinho na barriga. Fazia cara de pedinte e se refestelava com carinhos do pé da gente... Acho que ela nos manipulava: Mantínhamos o cocho de ração e a vasilha d’água cheios e a acarinhávamos, mas praticamente não a víamos. 

 

Todavia, quando veio a pandemia da Covid19 (e o consequente isolamento social), Malu teve de ficar acorrentada... Havia muita discussão se cachorros poderiam ou não pegar a doença ou mesmo serem vector para transmitir o vírus a humanos. Na dúvida, nada de passeios. Como bastava abrir o portão para ela azular na rua, não tinha como ficar solta mesmo no jardim. Visivelmente entediada, restava a Malu ficar nos observando. Penso que ela descobriu muito sobre nós, tão entediados quanto ela. O confinamento tem sido um período muito difícil. Acredito que Malu percebeu que algo estava diferente. Ela já não me acompanhava até o ponto de ônibus na Avenida ou nossas filhas até a escola do bairro (minha caçula tinha muita vergonha d’ela...).  O padeiro sentiu sua falta e me abordou n’uma manhã para saber d’ela. Contei que estava acorrentada, por isso não vinha mais. Ele sorriu e não disse nada. Era interessante que Malu sempre inspirasse um sorriso; um comentário jocoso. Todos se admiravam d’ela.  

A pandemia se prolongou e a situação de Malu se agravava. Ela perdia peso e vitalidade a olhos vistos, muito embora tivesse ração e água ao alcance. Tínhamos de fazer alguma coisa, mas o quê? Após alguma hesitação, mandamos Malu para vigiar o canteiro de obras d’um parente, n’um bairro d’outro lado da cidade. Pusemos Malu no carro e a levamos. Tivemos-de prendê-la para irmos embora. Coração pesado, vivíamos pedindo notícias d’ela. Tudo normal, diziam. Lá no bairro, porém, todos sentiam que faltava algo no quotidiano. As carreiras de Malu rua afora pareciam estar firmes na memória de todos. Todos estávamos meio órfãos sem Malu. 

De repente, no meio noite, ouvimos latidos: Era Malu! Ela andara de volta mais de vinte quilômetros e voltara para casa. Reunimo-nos ao redor d’ela, assombrados, enquanto ela bebia sua água em sua vasilha.  

 

Betim – 16 09 2020 

  

 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

A MÚSICA QUE TOCA

A MÚSICA QUE TOCA

Atravessa a noite uma música que não escutava há muitos anos. Vem da escuridão, longe. Talvez um baile em fim de festa tocando a saideira ou uma banda voltando ao palco para bisar. Não sei. A voz ecoava pela cidade e eu me lembrei do tempo em que aquela música fazia parte de minha vida.

Estremeci. Olhei pela janela tentando localizar d'onde vinha o som. Distinguia vozes e guitarras. Havia acordado d'um sono pesado, no meio da noite, e mal conseguia entender aquele transporte para um passado tão distante. N'uma vida passada, dir-se-ia. Súbito, rostos de amigos surgiam na memória. Nomes e lugares perdidos puxados feito um fio de lembranças encadeadas. Enquanto isso, a melodia se desenrolava a ponto d'eu lhe acompanhar o refrão como se guardado n'algum recôndito da mente. Eu cantei e percebi o passado tão presente como se não houvesse passado. Eram duas da manhã e eu tinha vinte anos novamente.

Olhei para a cama e estava vazia. Não havia ninguém que pudesse me dissuadir d'aquele encantamento que a música impunha. D'algum modo misterioso, eu me sentia jovem e crédulo como fora um dia, ou melhor, n'uma noite como aquela. As ruas vazias e escuras da cidade tinham o cheiro d'antanho e eu olhava sozinho pela janela vendo as sombras quietas das casas escuras. A música vinha do Centro, onde a cidade permanecia iluminada em contraste com a periferia silenciosa. Eu me lembrava de como eu era e cantava a música que eu cantava então. Era bom voltar a ser esperançoso e tranquilo diante da vida. "Por que não?"-- eu repetia repetindo a música que terminava interrogando-me. Logo, tudo era silêncio e noite. Eu voltei a ter a idade que tinha. 

Eu me senti ainda mais sozinho lembrando do rapaz que escutava aquela música e tinha tanta esperança. "Por que não"  eu repetia tentando evocar a fé que perdera na vida. "Por que não" -- respondia o eco. Olhei para as minhas mãos. Eram mãos de velho.

Rejeição. Eu não sou tão amável. Eu não sou tão interessante. Eu não sou tão bonito. Eu não sou insubstituível. Eu não sou mais o seu amor. O amor d'ela, obviamente. Tudo isso, no final das contas, é sobre rejeição. Estou ficando velho e isso me assusta. Meu cabelo raleia em minha testa enquanto espero mensagens que não vêm. Sim, estou no quarto sozinho e não há música mais. Todavia, o verso continua em mim, vibrando: "Por que não?". Olho para a noite e tento encontrar o lugar d'onde a música vinha há pouco, mas nada... As luzes da cidade pulsavam em meus olhos míopes dando a todas as coisas um contorno vago. Meus lábios balbuciavam "Por que não?" ...  "Por que não?" ...

Eu preciso dormir. Eu preciso voltar para a cama e tentar dormir. No entanto, do silêncio da noite o refrão parecia continuar sem fim, vibrando nas luzes dos postes e prédios distantes. A frase deveria me animar, eu acho. Mas, não. Na verdade, ALEGRIA, ALEGRIA parecia vir d'um tempo, não d'um lugar. Estava feliz e confuso por aquele refrão me transportar para alguém que fui. Ao menos a memória se impunha e eu entendia a força d'aquela música tocando, física, como se meu peito fosse uma caixa de ressonância onde ela continuasse a vibrar, silenciosa.  "Por que não?" ...  já não era algo verbal. Era uma vibração em meu peito.

Eu voltei para cama e tentei dormir. Eu precisava. 

Betim - 06 09 2020

sábado, 5 de setembro de 2020

JEJUANTE

JEJUANTE

A fome que me come p'las entranhas
Quer, senão me matar, mortificar.
Ou pôr as emoções em seu lugar
E retomar com Deus velhas barganhas.

De barriga vazia, horas estranhas
Eu passo sem que possa nem pensar:
Talvez deixe de ser só para estar
E negar à carne fraca novas sanhas.

Decerto, há-que se ter todo o desejo
Para além das vidas que cotejo
Paralelas ao tempo e à eternidade.

Mas quem controla quem? Vai se saber...
Sigo jejuante para não querer:
Nego à carne qualquer necessidade.

Betim - 05 07 2020


quinta-feira, 3 de setembro de 2020

AO PÉ DO OUVIDO

AO PÉ DO OUVIDO


Ao sussurrar um verso em teus ouvidos
Para após me beijares com ternura, 
Faço às rimas valer sua procura 
Onde no peito os sonhos são vividos.

A língua rebuscasse entre gemidos
A harmonia dos sons co'a formosura...
Logo eu cederia a esta loucura
De m'entregar ao gozo dos sentidos!

Então -- somente então -- tudo o que sinto
Arrancará do idioma uma grandeza
Capaz de enaltecer tua beleza.

Muito embora ao final seja indistinto
Falar ou acarinhar com minha boca
Enquanto a tua orelha me provoca.

Belo Horizonte - 12 08 1996

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

SERENANDO

SERENANDO  

Diante de tua casa, minha amada,  

No sereno da noite vi ensejos...  

Às estrelas cadentes fiz desejos  

E a lua derramou-se enamorada.  

  

Quis anjos a rodear tua mirada, 

Ecoando em serenata seus arpejos.  

E te acordar na alcova entre beijos  

Para em teus olhos ver a madrugada. 

  

No entretanto, passo horas tão sozinhas 

Que ora a lua e as estrelas tão-somente 

Vêm m'escutar a balda serenata.  

  

Mas, se sob a janela me adivinhas, 

Fico a esperar que venhas de repente 

Para em teus olhos ver a lua em prata...  

  

Santa Bárbara - 05 07 1996  

PAPEL DE CARTA

PAPEL DE CARTA

Na folha perfumada, a sua escrita
Tornara-se poesia simplesmente
Pelo esmero co'a letra que, inocente,
De vermelho entendia mais bonita.

Um menino que poeta se acredita
— E todo mundo sabe diferente... —
Escreve para a bela tendo em mente,
Que a carta findará tanta desdita.

No envelope escarlate, exagerado,
Floreia o nome d'ela tão amado
Com voltas de cursivos rococós.

Mas, tímido demais para assinar,
Sem remetente deixa o seu lugar
Como secretamente amam os sós.

Belo Horizonte - 08 07 1991