domingo, 31 de março de 2019

DIDASCÁLIA

DIDASCÁLIA

Do poeta para o actor, certa emoção
Com a qual dramatize cada fala.
Assim, à parte o texto, lhe intercala
Dos versos o gestual e a entonação.

Nas entrelinhas dá a direcção
Àqueles que revivem toda a gala
De deuses, reis e heróis por ampla sala,
Encenando à plateia outra ilusão.

A palavra escrita outra vez falada…
Após séculos vendo-se escondida,
De língua morta em viva voz entoada.

Ei-la no exacto tom reconhecida!
Ao palco, a personagem malfadada
Sai das páginas para entrar na vida.

Betim - 29 03 2019

sexta-feira, 22 de março de 2019

MALFERIDO

MALFERIDO

Não te conheço, Amor, senão o engano,
Onde tu, por gracioso e destemido,
Com flechas de tocaia me hás ferido
A levar-me captivo não sem dano.

Eu sigo preso a ferros em teu plano,
Que, embora com sentido ou sem sentido,
Faz submisso quem antes aguerrido
Conforme seus caprichos de tirano.

Tu te ris das angústias que atravesso
Como se n'algum teatro, em distração,
Divertido me assistes o insucesso.

Há tempos um joguete em tua mão,
Piedade, Amor -- a ti tão-só te peço --
Cessa tu de ferir-me o coração!...

Betim - 25 05 1995

segunda-feira, 18 de março de 2019

ENLOUQUECIDO

ENLOUQUECIDO

De ter enlouquecido a ser enlouquecido
A subtil distinção do agente da loucura.
Quando quem m'enlouquece antes se transfigura
N'aquilo que não é, mas podia ter sido:

O amor não consumado; o ódio não consumido...
Uma voz que se sabe e se deseja impura!
Inaudível, porém, dentro de mim murmura
Toda uma algaravia ao meu débil gemido.

Entrementes a vejo aonde quer qu'eu vá
E a figuro, confuso, onde ela não está,
De modo que suspeite, a sós, da realidade:

Ao mesmíssimo sonho; ao mesmíssimo vício...
D'haver outro final para esse mesmo início.
Enquanto louca a mente enfim de si evade.

Betim - 16 03 2019

sábado, 16 de março de 2019

E DEUS DEIXOU DE SER BRASILEIRO…

E DEUS DEIXOU DE SER BRASILEIRO…
Parafraseando o ex-presidente - aquele que hoje se encontra preso na cela d'uma cadeia - pode-se se afirmar: - "Nunca antes na História d'este país… (pausa dramática) … houve uma sucessão tão infeliz de grandes tragédias, massacres, desastres, acidentes, atentados, cataclismos, azares, equívocos, injustiças e insanidades em tão curto espaço de tempo. Tudo isso em meio a uma crise econômica que parece não ter fim. As más notícias parecem se suceder n'uma ânsia sádica de nos retirar toda esperança enquanto colectividade que compartilha um território ensolarado na América do Sul e a língua portuguesa.
Eu, sinceramente, não me permito listar n'este texto as minhas tristezas, mas tenho a suspeita de que o leitor tenha uma lista semelhante em mente. Tenho andado tão triste, como brasileiro, que me vi tomado pela constatação insofismável: Deus mudou de nacionalidade. Alguns podem argumentar que Deus nunca foi exclusivamente brasileiro, mas gostávamos de acreditá-Lo mais nosso diante do milagre de nossa sociedade multiétnica, cordial e, sobretudo, avessa a conflitos.
O Brasil, depois de ter sido Pindorama, a idílica terra das mil palmeiras, chega a uma espécie de vértice onde tudo - nossa natureza, nossa juventude, nossa alegria… - parecem se tornar uma antítese do que nos acostumamos a ver. Até o jeito relaxado com que encaramos a existência, de chinelo e bermudas n'um boteco de copo sujo, parece não ter mais lugar. Afinal, como celebrar a vida de cerveja em punho quando o ódio anda à espreita e desfere facadas em quem pensa diferente? Como mandar nossos filhos para a escola quando se teme psicopatias e sociopatias em corações adolescentes? Confesso que não tenho encontrado respostas.
Mesmo nossa vizinha Venezuela, que também se referia a si mesma como nacionalidade do Criador, parece disputar conosco essa triste condição de terra abandonada nos trópicos. Se Deus não é mais brasileiro, venezuelano tampouco. Aliás, Deus parece ter se desterrado de vez da América do Sul. Fôssemos místicos como nossos avôs, evocaríamos provavelmente os Sinais dos Tempos diante do fim próximo e, penitentes, rogaríamos o retorno da misericórdia divina.
Debalde, pois, Deus se foi para muito longe. A julgar pelos indicadores econômicos e de desenvolvimento humano, Deus tem preferido ajudar àqueles que mais cedo madrugam, a saber, os orientais. De maneira especial, o Todo-Poderoso tem derramado suas graças sobre o chineses, a despeito de serem ateus e comunistas… Na China, as colheitas têm sido abençoadas e a riqueza, sem precedentes. Enquanto os latino-americanos continuam embasbacados pela "decadence avec elegance" do Ocidente anglo-saxão, a China lança as bases da nova ordem econômica que terá a África como fiel da balança. 
Hoje em dia, mais do que qualquer outra nação, é a China que tem investido e concorrido para promover estabilidade política e desenvolvimento econômico nos países africanos. A Europa e seu colonialismo civilizatório ficaram no passado, mas o brasileiro, em seu complexo de vira-latas, continua se inferiorizando diante dos presunçosos "machos-adultos-brancos-sempre-no-comando", como diria Caetano.
Se Deus é chinês, eu não sei. O que sei é que brasileiro ele não tem sido.
Betim - 16 03 2019

quarta-feira, 13 de março de 2019

HIPÁTIA, A GRANDE

HIPÁTIA, A GRANDE

"Reservai-vos o direito de pensar. Mesmo pensar errado é melhor do que não pensar." Hipátia d'Alexandria

Opróbrio dos cristãos d'Alexandria,
Anátema a seus santos assassinos!!!
Por que Hipátia foi morta?! Bruxaria?
Monstros esses irmãos alexandrinos!...
Que n'um acto d'extrema covardia
Da igreja silenciam missas e hinos
Para a lapidação d'outra inocente...
No templo do Senhor!... Insana gente...

Malditos sejam! Corja de ignorantes!
Sequazes a serviço de tiranos!
Cristãos de Satanás que, militantes,
Cumprem de poderosos mortais planos...
Àquela que no céu via os Errantes
Indiferente aos óbices mundanos,
Vêm matar para a glória d'uma igreja
Que senhora do mundo se deseja.

Tentam calar a voz dos que, pensantes,
Evitavam das crenças os grilhões.
E, a despeito do ardor de intolerantes,
Mantêm-se fiéis a suas convicções,
Insubmissos a dogmas limitantes.
Tirando as suas próprias conclusões
Da Natura e de sua realidade,
Às voltas tão somente co'a verdade.

Ainda assim se movem as estrelas
Em órbitas que os sábios, confundidos,
Tentam fazer caber em curvas belas
Muito embora não vejam resolvidos
Os problemas do Cosmos com querelas...
Visto ideais lhes ceguem os sentidos
No afã de impôr respostas ilusórias
Que igrejas fazem crer satisfatórias.

A metrópole d'Alta Biblioteca,
Reputada por séculos guardiã
Das fontes do saber ora resseca
Feito o Saara ao redor, sem amanhã...
Quem quer conhecimento agora peca
Conforme a lei estúpida cristã,
Aniquilando em plena luz do dia
Co'a astrônoma, a própria Astronomia!

Não contentes a lançam à fogueira
E queimam com seu corpo seus escritos!
A celebrar co'a fúria costumeira
A morte de pagãos e de proscritos...
Cegos de diviníssima cegueira,
Preferem absolutos a infinitos,
Propondo Deus e a Terra bem no centro
D'olhos que apenas olhem para dentro.

Não restou nada... Rolos e mais rolos
De papiros de cálculos, teoremas,
Desenhos de astrolábios e monjolos...
Além das efemérides, sistemas
Co'o sol estacionário que esses tolos
Fizeram olvidar sem mais dilemas.
E a despeito de tudo, ao credo seu,
Condenaram de Hipátia a Galileu...

Por razões semelhantes, por mil anos
Mulheres vão morrer assassinadas...
E, bruxas, em castigos desumanos
Serão por seus saberes condenadas,
Enquanto os tribunais com mais enganos
Mantêm mesmo as mais sábias subjugadas
À autoridade d'outros patriarcados,
Que se alternam no mando dos Estados.

Maldita Alexandria, as maravilhas
Ruem uma após outra em cataclismos
Ou ainda com milícias e guerrilhas
Cuja barbárie abraça fanatismos...
Perdida a mais audaz de suas filhas
Em febres de cristãos e cristianismos,
Antes mesmo dos hunos e suas levas,
Quem primeiro chega à época das trevas...

Maldita cristandade, todo o Egito,
Além da Líbia, Núbia e Mauritânia,
Perdidos para a fé de arábio rito!
Depois de enfraquecida na cizânia,
Que da Iconoclastia fez conflito
O povo que Bizâncio leva à insânia
De mais ceder o Império dos Augustos
Em troca d'um falaz reino dos justos...

Maldito Patriarcado, p'lo poder
Que de temporal torna-se teocrata:
Um bispo que a invejar uma mulher
Inspira enfim a turba que lhe mata...
E faz o que melhor se lhe aprouver
Ao arrepio da metrópole que ingrata
Silencia em face d'este crime
Que nem a santidade lhe redime!...

Calai-vos, religiosos assassinos!
Tão confiantes em Deus e sua amizade
Que ainda a repetir tais desatinos
Denegais às mulheres liberdade,
Impondo com versículos divinos
Toda sorte de vã obscuridade...
Calai-vos de vez, cheios de vergonha,
E deixai logo em paz quem pensa e sonha.

E, mais que a Biblioteca ou que o Farol,
Alexandria lembre de seus sábios!
Reescrevam-se papiros em seu prol,
Devolvendo-lhe os muitos alfarrábios
Onde outra vez no centro esteja o sol.
E, a despeito de gregos e de arábios,
Da cátedra a filósofa comande...
Ali, eternamente: Hipátia, a grande!

Betim - 11 03 2019
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¹-Hipátia de Alexandria (c. 351/370 - Alexandria, 8 de março de 415) foi uma filósofa neoplatônica grega do Egito Romano. Foi a primeira mulher documentada como tendo sido matemática. Como chefe da escola platônica em Alexandria, também lecionou filosofia e astronomia. fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hip%C3%A1tia

²- Os Errantes: Para Pedro Nunes, a Machina do Mundo era composta de dez esferas celestes concêntricas. No centro estava a Terra, formada pelos quatro elementos: terra água, ar e fogo, e sobre ela estavam dez esferas: as das sete estrelas errantes (os planetas, o Sol e a Lua), a das estrelas fixas e ainda mais duas esferas que explicavam uma o movimento diurno das estrelas (as fixas e as errantes), e outra o movimento de precessão dos equinócios, na altura chamado movimento dos auges e estrelas fixas. fonte: http://vintage.portaldoastronomo.org/tema_pag.php?id=37&pag=1

³- Refere-se ao famoso processo movido pela Inquisição contra Galileu Galilei no séc. XVII por causa de seu livro " Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo" onde tece comparações entre a teoria geocêntrica e a heliocêntrica.
fonte: https://www.terra.com.br/noticias/educacao/voce-sabia/voce-sabia-a-igreja-reconheceu-que-errou-ao-condenar-galileu,400811f48735b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
E ainda: Galileu queixou-se de que alguns dos filósofos que se opunham às suas descobertas se recusaram até a olhar através de um telescópio:
"Meu prezado Kepler, desejo que possamos rir da estupidez notável do rebanho comum. O que você tem a dizer sobre os principais filósofos desta academia que estão cheios da teimosia de uma víbora e não querem olhar os planetas, a lua ou o telescópio, apesar de eu ter oferecido livre e deliberadamente a oportunidade mil vezes? Verdadeiramente, assim como a víbora fecha seus ouvidos, esses filósofos fecham os olhos à luz da verdade."
fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Processo_de_Galileu_Galilei











domingo, 10 de março de 2019

HIPOCONDRÍACO

HIPOCONDRÍACO

Sinto meu coração bater cansado
Como fizesse força desmedida
Mantendo involuntário a minha vida,
Depois d'eu ter amado mal e errado.

Do que não tem remédio, remediado
Eu sigo com a mente entorpecida,
Antes que a morte ou coisa parecida
Me leve d'uma vez para o seu lado.

São doses e mais doses de veneno
Que então faço correr por minhas veias,
Não para me curar, sim esquecer.

E, embora meu semblante tão sereno
Me faça desdenhar culpas alheias,
Do que me mata não hei-de morrer!

Betim - 10 03 2019

quarta-feira, 6 de março de 2019

TU CÁ, TU LÁ

TU CÁ, TU LÁ (rondel)

Se não és, não sejas quem foste
P'ra não seres quem não serias…
Foras ou eras seres em hoste:
Tu contra ti todos os dias!

Sê quem és! Mesmo em noites frias,
Não serás mais quem te desgoste.
P'ra não seres quem não serias,
Se não és, não sejas quem foste!

Sê quem és! E não algum poste,
Onde fosses em quem p'las guias
Outrem, bem folgado, s'encoste:
P'ra não seres quem não serias,
Se não és, não sejas quem foste!

Betim - 06 03 2019

IMPRESSÕES

IMPRESSÕES

Felicidade: Um lago ao entardecer,
Onde barcos ao largo da comporta...
Quis um pintor, da luz que o lago corta,
Em óleo sobre tela enternecer.

Com pinceladas fortes nos faz ver
O que decerto ideou em hora absorta:
Se há barco ao lago (ou lago!), pouco importa.
O instante mostra um pleno vir-a-ser...!

A paisagem das horas mais felizes,
E que, de tão fugaz, sequer houvera
(Ou houvera apenas pelos seus matizes...)

Oferece uma eterna primavera
E revela a meus olhos aprendizes
Toda a alegria qu'eu jamais tivera!...

Belo Horizonte - 25 05 1996