sábado, 30 de setembro de 2017

O DESENGANADO

O DESENGANADO

Disseram-me que não passo de amanhã;
Para eu me preparar para minha hora...
Não que se tenha escolha, muito embora
A dor que me acompanha feito irmã.

A vida por um fio jaz mal-sã,
À espera d'uma mínima melhora.
De sorte que me indago mesmo agora
Se a morte é uma amiga ou uma vilã.

As horas que me restam em meu leito
Passo silente e só do mesmo jeito,
Com um semblante imóvel, olhando a esmo.

De qualquer forma morro pouco a pouco...
Já nem de todo lúcido nem louco,
Tão-só desapareço de mim mesmo.

Betim - 30 09 2017

OSTRACISMO

OSTRACISMO

Não que temesse ainda as soledades
Ou a violência dos ventos d'estes altos...
Apenas já não tenho sobressaltos
Toda vez que me inculpam inverdades.

Venho não por avesso às más cidades,
Mas sim por de beleza os olhos faltos:
Aborrecem-me os brados dos arautos
Tanto quanto murmúrio e inimizades.

Retiro-me das vistas e das falas,
E afasto-me do teatro do poder
Dos senhores em suas antessalas

Se tudo por mais longe mais fugaz,
Só pretendo à distância melhor ver
Na esperança que aqui encontre paz.

Juatuba - 24 09 2017

DO CONTRA

DO CONTRA

Dias há em qu'eu vou além da conta
E, igual louco, interpelo tudo e todos.
Questiono das razões e dos maus modos,
Mesmo com prejuízo meu de monta...

É quando mais nada me amedronta
Nem surpreende em face dos engodos
D'aqueles que chafurdam sobre lodos,
Tentando m'enrolar com lábia pronta.

Cá reverbero os ais de mil murmúrios
Nos quais me inflamo contra despropósitos
Que vêm maldisfarçados como augúrios.

Mas desconstruo ornatos por compósitos
E faço ver algures quão espúrios
Os valores de que enchem seus depósitos!

Betim - 26 09 2017

UMA IMAGEM E MIL PALAVRAS

UMA IMAGEM E MIL PALAVRAS

O que me diz a face que olha muda
Em pleno contraluz fotografada?
Talvez uma verdade imaginada
Que em minh'alma se faça mais aguda...

Ao que no seu olhar me desiluda,
Diante da lucidez ali encontrada;
Ou que dizendo tudo diga nada
Enquanto seu segredo se desnuda.

Em mil palavras soltas se traduz
A imagem que atirei de contraluz
N'alguma luminosa fotografia.

Logo as vejo lhe vir brotando uma a uma
Até que a vã linguagem se consuma
E n'elas reste apenas a poesia.

Betim - 21 09 2017

CORPUS CHRISTI

CORPUS CHRISTI

Porque sagrado o pão que aqui se oferta
A estes que se reúnem junto à mesa,
Dando graças p'la luz eterna acesa
Que enfim a alma dos homens fez desperta.

Porque sagrada a mão que está aberta
Para a oração e a bênção; posta em reza,
Enquanto se faz memória da grandeza
D'Aquele que há-de vir em hora incerta.

Porque sagrado o amor que se alimenta,
Cada vez que se come com irmãos
E a Palavra de Cristo lhes sustenta.

Mas mais sagrada a fé nos olhos sãos,
Que só aos mais humildes se apresenta
De ver o próprio Deus em suas mãos.

Betim - 19 09 2017

sábado, 16 de setembro de 2017

QUEBRA-CABEÇA

QUEBRA-CABEÇA

Mil peças espalhadas pelo chão
Sigo juntando há dias, sem descanso.
Como quando mui só, um louco manso
Joga pedras na lua e em seu clarão.

Ignoro que figura busco em vão
Ver formada à medida qu'eu avanço.
Só sei é ver o ardor com que me lanço
Ganhar logo contornos de obsessão.

Com efeito, o problema à minha frente
É tudo o que consigo ter em mente,
Visto que não complete o quadro todo.

E mais quebro cabeça ali, de modo
Que acontece d'eu ver enquanto explodo
Mil peças espalhadas novamente...

Betim - 15 09 2017

A ENCHENTE

A ENCHENTE

Perdi tudo o qu'eu tinha em minha casa:
Inúteis os retratos, livros, discos...
Voltei assim que pude; corri riscos,
Para rever só restos n'água rasa.

Mesmo agora, o arroio ainda vaza
Pelas frestas dos pórticos mouriscos.
Enquanto apenas pássaros ariscos
Pousam sobre gradis que a chuva arrasa.

Molhadas, as lembranças e a mobília
S'entulham pelos quartos da família
Sem que nada se possa aproveitar.

Acendo no salão outra candeia
E admiro àquele caos como se alheia
A vida que vivi n'este lugar.

Betim - 15 09 2017

terça-feira, 12 de setembro de 2017

INVERÍDICO

INVERÍDICO

Tomando por verdade devaneios,
De ficções tenho dado testemunho.
Logo, o que aqui se lê desde o rascunho,
São-me mais ansiedades do que anseios...

A galope, a cabeça vai sem freios
Girogirar ideias em redemunho,
Até eu declarar de próprio punho
Como se fossem meus vícios alheios:

Para os devidos fins, venho mentindo
Acerca do que é claro e do que é lindo,
No afã de viver vidas que não minhas.

Assim, eu de inverdades tenho escrito
Sempre as falsas memórias d'um aflito
Perdidas n'essas mal traçadas linhas.

Esmeraldas - 10 11 2017

sábado, 9 de setembro de 2017

VER-O-VERSO

VER-O-VERSO

O poeta, mesmo silente, não se cala:
Ver o verso no avesso d'uma folha,
Logo transforma a frase que ali olha
Bem diversa d'aquela que se fala.

De facto, o verso às vezes intercala
Luz e sombra de cujo ritmo recolha
As palavras que tem à sua escolha,
Enquanto seu olhar mais se arregala.

E, sílaba após sílaba, confere
A verdade a que o verso se refere,
Pelo metro de tônicas e rimas.

Pois ver-o-verso é lê-lo atentamente.
Ter que a poesia n'ele se apresente,
Se sentimentos por matérias-primas.

Betim - 04 09 2017

domingo, 3 de setembro de 2017

HOMENS D'ARMAS

HOMENS D'ARMAS

Lutam por glória, terras e bandeiras
Os que fazem da guerra seu ofício.
Pela História assistindo desde o início
O bailado incessante das fronteiras.

Mas, tendo morte e dor por companheiras,
A violência se torna quase um vício...
Em seus olhos não há qualquer indício
De culpas nem esperanças verdadeiras.

Espalhados pelo campo de batalha,
Eles aguardam que a ordem seja dada
E a sorte uma outra vez seja lançada.

Têm que a vida talvez nem tanto valha,
Preferindo arder logo feito chama
A perecer aos poucos n'uma cama.

Betim - 31 08 2017

O BÍGAMO

O BÍGAMO

-- "Mas d'agora em diante há-de ser assim:
Se eu vou, tu vens; e se ela vem, tu vais!
Amor, a bem dos bens, menos é mais...
Quando amar demais pode ser o fim."

"Talvez esse amor não seja tão ruim,
Sendo o querer tão simples, ademais,
Amar aos poucos não cansa jamais,
Pois as duas terão o melhor de mim."

"Não me peças para ir quando não posso!...
O instante de nós dois será só nosso;
O mais será saudade e distração."

"Amor, não fico aqui, pois, salvo engano,
Nada mais mata o amor que o quotidiano
E é terra de ninguém o coração."

Betim - 01 09 2017