quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

OCTAGÉSIMA SEGUNDA

OCTAGÉSIMA SEGUNDA 

Deve estar co’a macaca hoje, 
Tanto que fala e reclama. 
Todo mundo em volta foge 
E a danada em vão nos chama...  

       *   *   * 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

HOLOGRÁFICO

HOLOGRÁFICO

A imagem que se forma no vazio
Chega a brilhar no fundo da retina...
Por arte cinemática ilumina
A mensagem enviada em desvario.

Das formas impalpáveis desconfio,
Enquanto a realidade se imagina
N'uma virtualidade que alucina,
Visto que semelhantes ao arrepio!

Eu tenho para mim que a projeção,
Pretendendo falar ao coração,
Me fez mais triste o meu olhar tristonho.

De maneira que aquele sentimento
Tornasse o audiovisual em movimento
Como a mulher amada em meio ao sonho.

Sobrália - 29 12 2020 

domingo, 27 de dezembro de 2020

FOGO SELVAGEM

FOGO SELVAGEM

À labareda muda se semelha
A ardência que recobre minhas mãos.
Espalha-se na pele em tons in-sãos
Até deixar a parte bem vermelha.

Queima por dentro a carne onde se artelha
O pulso que me dói em gestos vãos.
Ao passo que por fora brotam grãos
Como se fosse agora mão de velha...

O fogo que me queima, todavia,
Avança pela pele todo dia
Como se m'estivesse o sangue em brasa.

Eu me mudar de cor logo parece
Que alguma herança indígena aparece
E acima da epiderme s'extravasa.

Sobrália - 27 12 2020

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

ESPATIFADO

ESPATIFADO (aforisma)

E o meu coração, cansado de bater em vão, simplesmente se parte em mil pedaços.

Betim — 25 12 2020

OCTAGÉSIMA PRIMEIRA

OCTAGÉSIMA PRIMEIRA

Menor do que de facto é, 
Aquele que se sabota... 
Se de joelhos, não de pé, 
Está no chão e nem nota. 

       *   *   * 

VINTE E QUATRO DE DEZEMBRO

VINTE E QUATRO DE DEZEMBRO 


Quero chorar mas já não tenho mais lágrimas. 

O amor mais bonito se perdeu

em mil tentativas-e-erros. Não há mais nada.


Eu gostaria de ter alguém a que culpar,

mas a verdade é que estou triste demais 

para raciocinar.  Acabou por cansaço,

por distração e até por decepção. 


Eu quis muito -- posso dizer -- foi a coisa

que mais quis na vida. Perder esse amor de vez

é quase tão doloroso quanto morrer.

Estou meio morto agora. Meu peito bate,

mas o sangue embaça meus olhos tristes.


Preciso esquecer -- é que me resta -- tenho-de esquecer.


Amanhã será Natal. Jesus menino, salva-me d'essa  tristeza sem fim.  


Eu sei que fiz quase tudo o que podia, mas a sensação de derrota é imensa: Perdi a pessoa mais importante da minha vida. Nada mais faz sentido.


Ela será feliz novamente e isso é tudo que me consola. Eu não consegui fazê-la feliz.


Ela sabe que nunca vou deixar de amá-la, mas isso não parece importar mais. Ela seguiu em frente enquanto eu permaneço parado, sem esperança. 


Meus lábios murmuram: Feliz Natal! Eu te amo muito... Mas as palavras se perdem pelo quarto escuro. 


Adeus, meu grande amor. Vai com Deus. Eu seguirei também. 


Betim - 2020

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

AMARO

AMARO

É muito ruim amar quem já não te ama
E te chama de amor sem nem te amar.
Se todo amor um dia há-de acabar,
Restem em paz as cinzas d'essa chama.

Andando infeliz quem muito reclama
Decerto tem motivo o desgostar:
Há quem confunda amores com folgar
E sempre faz da noite uma derrama...

Amaro. Muito amaro aquele amor,
Em cuja boca o beijo é sem sabor,
Depois de tantas falas celeradas.

Amara. Desamar quem não te amou.
Pois o tempo de amar já te passou:
-- "Sumam com ilusões enamoradas!"

Betim - 23 12 2020

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

RAPINA

RAPINA

MOTE:
Vai, de atalaia, o gavião.
Sobre o campo busca a presa.

VOLTA:
Olha o gavião em rapina...
Quanto céu tem para voar!?
Quem do azul fez seu lugar
A divagar alto ensina,
Enquanto plana pelo ar.
Voa alto, em solidão...
Espreita o eito na certeza
De descer mortal ao chão.
Vai, de atalaia, o gavião.
Sobre o campo busca a presa.

Sobrália - 22 12 2020

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

OCTAGÉSIMA

OCTAGÉSIMA

Tem gente que fala muito,
Mas tem feito muito pouco.
Criticam sem mais intuito
Do que deixar o outro louco.
 
       *   *   * 

COPAS ENVERGONHADAS

COPAS ENVERGONHADAS

Cheias de não-me-toques, as coroas
Dos altos eucaliptos pelo vento
Ondulam a ciciar n'esse momento
Em que caminho longe das pessoas.

Sob o rumor das ramas passo lento,
Rememorando coisas más e boas...
Mas me pego encantado a tecer loas
Ainda às pudicícias vãs do evento:

Sim, as árvores têm suas vergonhas,
Assim como ora tenho meus remorsos,
Em meio a horas tão sós quanto tristonhas.

Pois apesar de todos os esforços,
Somos só solitários a afastar
O bem e o mal de quem quer nos tocar.

Sobrália - 21 12 2020

domingo, 20 de dezembro de 2020

ANDROCIDA

ANDROCIDA (rondel)

Viúva e negra, tece a aranha
O casulo onde jaz o amante.
Gira qual fuso a peça estranha:
Uma mortalha horripilante…

Grávida de prole  triunfante, 
Devora-o qual presa tacanha.
O casulo onde jaz o amante,
Viúva e negra, tece a aranha.

Grávida de prole tamanha,
Gira qual fuso delirante
Quem fez d’amores artimanha…
O casulo onde jaz o amante,
Viúva e negra, tece a aranha.

Sobrália — 20 12 2020

TRANSAMAZÔNICA

TRANSAMAZÔNICA

Mais dia menos dia vou-m'embora,
Rodar por roças novas onde o sol
Traz ainda mais perto o seu farol
E faz rachar a terra que se cora.

Diz-que quando o aguaceiro se demora,
Não vai trator de esteira nem patrol.
Somente a mosquitada onde terçol,
Malária, dengue, berne, catapora...

Para cada trecho ínvio haja morada,
Fazendo a travessia uma jornada,
Dias e dias preso ao lamaçal...

Quem porém das águas passa o inverno
Reine, pobre diabo, n'esse inferno
Sem lei nem grei da selva tropical!

Sobrália - 20 12 2020

PAPOS ALEATÓRIOS

PAPOS ALEATÓRIOS

Falo e não sei do qu'eu estou falando.
Escuto e não entendo ou sequer tento.
Parecer ser parece o meu intento,
Mas meneio a cabeça quando em quando.

Concordo mesmo em nada concordando.
Emendo as frases sem mais pensamento.
Sei o outro interromper todo momento
E mesmo assim eu sigo divagando.

Pelo gosto de ouvir a minha voz
Não deixo haver silêncios entre nós
Como tivesse pânico em pensar.

Incapazes d'algum desejo análogo,
Passamos o estranhíssimo diálogo
Todo o tempo falando sem parar.

Sobrália - 19 12 2020 

sábado, 19 de dezembro de 2020

DOS INSECTOS

DOS INSECTOS

1.
Sobre o breu do brejo
dezenas de vagalumes
vão pisca-piscando.

2.
Cricrilava um grilo.
Na noite imensa da roça
o som das estrelas.

3.
Delicadamente,
a borboleta amarela
nos lírios dos pauis.

4.
Nuvens de mosquitos
voejam ao entardecer --
pássaros em festa.

5.
Junto do telhado
um ninho de marimbondos
prospera co'os donos.

6.
Atravessa a estrada
uma fila de formigas --
folhas andarilhas.

Sobrália - 19 12 2020

SEXAGÉSIMA NONA

SEXAGÉSIMA NONA

Antes tarde do que nunca,
Co'as mandonices deu cabo:
Fora varão ou varunca,
Já manda tomar no rabo.
 
       *   *   *

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

TRECHO VARIANTE

TRECHO VARIANTE

Hoje atalho por dentro a estrada velha
Sem as curvas do vale rio abaixo:
Um viaduto elevado sobre o riacho
E um túnel logo após que s'emparelha.

Então, passando o trecho, olho de esguelha
E relembro como era ali embaixo,
No tempo em qu'eu andava cabisbaixo
Com rugas a cravar a sobrancelha.

De vera, foram muitas travessias
Tristes em meio a tristes desventuras,
Que tanto obscureciam os meus dias.

De modo que o caminho em meio à serra,
Agora abandonado, em si encerra
O meu lugar-comum de sós agruras.

Antônio Dias - 17 12 2020

PATÉTICA

PATÉTICA

Se gosto de sorrir com seu sorriso,
Também gargalho em suas gargalhadas.
É muita areia?  Dou duas carradas!
Trocentas horas extras, se preciso...!

Tem graça a sua vida no improviso
E o gosto peculiar para piadas...
Falas tão graciosas que engraçadas,
Mas que sempre me põem de sobreaviso.

Parece sem temor de aparecer
Pois faz chorar de rir quem quer que fosse
Como nada tivesse p'ra perder.

O riso que ora tenho ela quem trouxe...
Sem vergonha de si e do que quer,
Tudo o que faz a vida ser mais doce.

Betim - 16 12 2020

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

SEXAGÉSIMA OITAVA

SEXAGÉSIMA OITAVA

Verdes anos já passados
Entre amores e esperanças,
Agora os vejo embaçados
Pelas lentes das lembranças...
 
       *   *   *

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

AS MENINAS

AS MENINAS

Parecem-se igual duas gotas d'água
Nas pupilas dos olhos espelhadas
-- As meninas me passam alvoraçadas;
Com as maçãs do rosto ardendo em frágua! --

Jamais eu poderia olhar com mágoa
Àquelas traquinagens descuidadas,
Se o coração, em fortes ressacadas,
É um mar onde o amor, rio, deságua...

Elas correm de costas para mim
Como se me corressem outrossim
Pelo tempo que tudo quer levar.

Caminham sempre juntas na memória,
Por alguma alameda ora ilusória,
Tão parecidas são em meu olhar.

Betim - 15 12 2020

CADERNETA

CADERNETA

Passou pela cabeça e eu escrevi.
Pois antes de ser verso ou pensamento
Fora a contemplação do vão momento
Ou algo de interessante que eu ouvi.

A folha em branco esteja sempre ali
Onde a escrita repouse sem intento
Para desanuviar meu sentimento
E depois me lembrar do que esqueci...

Tenho sempre no bolso; bem à mão,
Alguma caderneta de rascunho
Que me recebe as letras de ocasião.

E, senão de meus dias testemunho,
Haja ao menos dos gestos a expressão
D'esse afã de poetar de próprio punho.

Betim -  15 12 2020

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

DOIS MIL ANOS DEPOIS DE CRISTO

DOIS MIL ANOS DEPOIS DE CRISTO

Não houve Natal quando ele nasceu.
Tampouco no solstício d'outro inverno
O mundo parou para olhar o eterno
E receber aquele que Deus deu.

Não sabem se de facto aconteceu:
Anjo, virgem, massacre, luz, governo...
Todavia, o que há entre o céu e o inferno,
Em outro sonho humano se perdeu.


Contaram dois mil anos -- vai saber!... --
O tempo que calhou de acontecer
Aquele nascimento obscurecido.

De tudo, a única coisa que nos resta
É essa mui ruidosa e estranha festa,
Que inventaram para um recém-nascido.

Ubatuba - 28 12 1999

domingo, 13 de dezembro de 2020

SEXAGÉSIMA SÉTIMA

SEXAGÉSIMA SÉTIMA

Anjos cantando na igreja
Têm um silêncio de pedra
Nas alturas -- "Olhe-veja!" --
Auréolas cobertas d'hedra.
 
       *   *   * 

SEXAGÉSIMA SEXTA

SEXAGÉSIMA SEXTA

O que chafurda no esgoto
Vê no outro o próprio pecado...
Assim como faz o roto
Ao falar do esfarrapado.
    
   *   *   * 

ENTRESSONHO

ENTRESSONHO

Durmo como estivesse esvaziado
De qualquer vão vestígio de existência.
D'olhos fechados, vívida consciência
De imaginar-me à noite despertado.

Meu sono parecia tão pesado,
Que a morte não seria coincidência.
Visto aquela máxima indolência,
Enquanto eu totalmente desligado.

Entre nada e lugar nenhum, a mente
Não concebia o tempo onde o presente
Acontecia para todo mundo.

Apenas o vazio e o esquecimento.
E aquele fora o meu melhor momento
De todos qu'eu vivera n'esse mundo.

Betim - 12 12 2020

sábado, 12 de dezembro de 2020

ONZE DE DEZEMBRO

ONZE DE DEZEMBRO

Lidar com o desamor é ruim,
que nem roçar um beco com enxada cega!

Deixar de gostar é revirar o coração, uma desnatureza
confusa e doentia: Não querer quem tanto se quis.
Sempre dar um passo para frente 
em direção ao novo e, logo após, um tropeço.

A gente cai no chão de mal jeito 
e fica parado olhando 
o futuro que não vem
e o passado que não passa.

A gente fica.

Às vezes acontece de topar com o outro 
e é estranho:
A amada distanciada se torna quase nada. 
Sua presença fria
nega o amor que dói na saudade da solidão.

Não. Não. Não.
Não é nada mais em nunca nem ninguém.

Não tempo há nem espaço no desencontro. Já deu!
Resta apenas a armadilha de se acostumar ao vazio
e desejar que acabe o fim.

Aqui não se diz que o copo está pela metade,
sim que está por meio,
não importa se está meio vazio ou meio cheio,
ou meio a meio…
Importa é ser honesto com os desejos
e admitir que se quer mais ou não.

Se carecer, sirva-se outra dose e até se abra outra garrafa.
Miséria pouca é bobagem, haja vista
que existir é se debruçar sobre o abismo
e dizer não à morte dia após dia.

Acabou? Abra-se outra e outra!

Betim — 2020

SEXAGÉSIMA QUINTA

SEXAGÉSIMA QUINTA

Não mereces ser amado 
Se amas para ter amor. 
Amor de graça é bem dado, 
Nunca por prêmio ou favor.  
 
       *   *   * 

SEXAGÉSIMA QUARTA

SEXAGÉSIMA QUARTA

Trocando os pés pelas mãos,
Magoou em vez de agradar.
Na companhia dos vãos
Preferiu, por fim, estar.

    *    *    * 


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

SEXAGÉSIMA TERCEIRA

SEXAGÉSIMA TERCEIRA

Não vou enumerar factos
Ou argumentar quanto fiz.
Leva os teus sonhos intactos.
Sê, somente e só, feliz.

    *   *   * 

SEXAGÉSIMA SEGUNDA

SEXAGÉSIMA SEGUNDA

Ocorre que a Terra roda,
Indiferente de crenças,
Uma órbita elíptica toda
De realidades imensas.

            *   *   * 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

AO OLVIDO

AO OLVIDO

Se tenho tanta coisa p'ra esquecer
D'esta que, bem ou mal, já m'esqueceu,
É porque o meu caminho se perdeu
Enquanto eu insistia em bem querer.

Talvez não fosse mesmo para ser
Ou quem virá será melhor do qu'eu.
Talvez não seja nada: Aconteceu...!
Passou e não há nada a se fazer.

Nomes, cores, lugares, sentimentos,
Pessoas, coisas, ares e momentos...
Tudo o que teve a ver com quem partiu.

Cedo ou tarde será tudo esquecido.
Deixando-me a memória rumo ao Olvido,
Indiferente a quem chorou ou riu.

Betim - 09 12 2020

DE MÃO BEIJADA

DE MÃO BEIJADA  

Pretendia-se um lorde, o beija-mãos, 

Entre mil gentilezas e mesuras. 

E, em face d'outra vítima, as finuras 

Que a polidez obriga aos homens vãos. 

 

Entregues ao malandro, os olhos sãos 

Veem suas intenções, então obscuras, 

Como ambíguas promessas de venturas. 

E disse por fim sim depois de nãos... 

 

Beijando a mão até subir à nuca, 

Armava para a pomba uma arapuca 

Com lábia que desliza pelos lábios. 

 

Depois de consumada outra conquista, 

Sem olhar para trás, perde de vista 

Os olhos que deixou quiçá mais sábios. 

 

Betim - 09 12 2020  

 

SEXAGÉSIMA PRIMEIRA

SEXAGÉSIMA PRIMEIRA

Mas, olhar para o passado
Sem jamais ver a verdade,
É querer, sem certo ou errado,
Distorcer a realidade.

            *   *   * 

SEXAGÉSIMA

SEXAGÉSIMA

O fabulista pretende 
Mais memórias inventadas 
Em lugar do que s’entende 
Por verdadeiras jornadas. 
 
            *   *   * 

QUINQUAGÉSIMA NONA

QUINQUAGÉSIMA NONA

Ando ao largo de tristezas,
Procurando maravilhas.
Embriagado de belezas,
Estradão: Milhas e milhas.
 
            *   *   * 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

QUINQUAGÉSIMA OITAVA

QUINQUAGÉSIMA OITAVA 

Diz que tem o dedo podre 
Mais o coração de pedra... 
É vinagre azedo no odre 
E erva daninha que medra. 
 

À RISCA

 À RISCA

As linhas no papel tenho seguido
À maneira d'um mapa do futuro:
Útil, firme, vistosa...O que procuro
Seja uma arquitetura do inavido!

Para gente viver que o construído
Se me projecta para além do obscuro,
Tornando-me pelo hábito maduro
Ao ser, senão mais sábio, mais sabido.

Desenho a planta baixa sobre a terra,
Enquanto cada estaca mais s'enterra
Para que o prédio mais alto s'eleve.

E o papel que me aceita o devaneio
Recorde meu engenho e meu anseio
Se tão longa a arte quanto a vida breve.

Betim - 07 12 2020

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

QUINQUAGÉSIMA SÉTIMA

QUINQUAGÉSIMA SÉTIMA 

A pólvora no rastilho
À espera apenas da faísca...
Fatal do fósforo o brilho
Diante d'aquele que o risca.
 
            *   *   * 

BACURAU

BACURAU

Ave de boca aberta, engole vento
Ao rapinar as nuvens de insectos.
Surpreende pela noite os circunspectos
Que vagam nas desoras ao relento.

Mal veem o seu contorno pardacento,
Mas bem lhe ouvem os lúgubres projectos...
Muitos sequer conhecem d'ele aspectos,
Tão obscuro que é seu avistamento.

-- ''Amanhã eu vou...'' -- lembra seu piado,
Como fosse um noctívago cansado,
Que hesita em deixar a madrugada.

Sim, vigia na noite a mata escura
Co'a mesma ensimesmada e só procura
Que o boêmio algures faz do nada ao nada.

Betim - 07 12 2020

QUINQUAGÉSIMA SEXTA

QUINQUAGÉSIMA SEXTA 

Nem mesmo o mais instruído 
Terá o que dizer d'amores: 
Não fazem qualquer sentido
E deixam somente dores...
 
            *   *   * 
 

DAS ESTRELAS

DAS ESTRELAS

1.
Com radiante em Touro
lumes riscam o horizonte
onde estrelas caem.

2.
No frio da geada,
brilha o Cruzeiro do Sul --
rumo constelado.

3.
A Via Láctea,
ladrilhada de brilhantes...
Caminho de estrelas.

4.
Ao céu estrelado,
a noite dentro da noite:
Pio de coruja.

5.
Míope, contemplo
os céus acima de mim
e os eus dentro de mim.

6.
Risca Cassiopeia:
Asterismo em duplo-vê
na palma da mão.

Betim - 06 12 2020

domingo, 6 de dezembro de 2020

AOS OLHOS

AOS OLHOS

Os olhos, tive-os sempre para si.
Mas ela, que tão belos olhos tinha,
Preferira olhar para si sozinha
No espelho d'outros olhos por aí.

Os olhos, desde qu'eu tão longe a vi,
Recordam sua mão por sobre a minha,
Como vaga miragem que mantinha
Aquela que não mais está ali.

Se vejo o que não vejo é porque o real
Parece-me incompleto no final,
Visto que apenas vejo o que me falta.

Reste que ela não veja mais a mim
Embora eu permaneça, ainda e enfim,
A ver sua ausência aos olhos salta.

Betim - 06 12 2020

POR QUÊ?!

POR QUÊ?!

Por via de regra, é assim no fim:
A pergunta ficando sem resposta…
A frase e o amor terminam sem proposta,
Senão mudar o assunto entre ela e mim.

Parece-me bem típico, por fim,
Repetir a pergunta a quem se gosta
E entender no silêncio alguma aposta
Ou que essas coisas sejam mesmo assim.

Isolada no fim ou interjeição,
A pergunta me queima o coração
E a mente de vazio se povoa.

Aliás, só o silêncio reticente
Responde essa pergunta para a gente,
Feito o vento que pelo abismo ecoa.

Betim - 06 12 2020

QUINQUAGÉSIMA QUINTA

QUINQUAGÉSIMA QUINTA 

Antes de mais nada, tudo 
Que existe de bom na vida,  
Perpassa o corpo desnudo; 
Atravessa a alma despida. 
 
            *   *   * 

sábado, 5 de dezembro de 2020

QUINQUAGÉSIMA QUARTA

QUINQUAGÉSIMA QUARTA

Por sobre a lápide jaz.
Um cupido em solidão
Marmóreo, repousa em paz
Meu flechado coração.

             *   *   * 

QUINQUAGÉSIMA TERCEIRA

QUINQUAGÉSIMA TERCEIRA

Pensando bem, todo o mal 
Tem a ver com ignorâncias.
Somente um cara-de-pau
'Inda evoca as circunstâncias...

                   *   *   * 

QUINQUAGÉSIMA SEGUNDA

QUINQUAGÉSIMA SEGUNDA

Tantas vezes já partido,
Um coração em pedaços
Fica aos poucos parecido
Com o rosto sem seus traços.

                   *   *   * 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

QUINQUAGÉSIMA PRIMEIRA

QUINQUAGÉSIMA PRIMEIRA 

Muita gente que se indaga
Sobre amar e ser amado.
Se amor com amor se paga,
Faz anos eu sou roubado...!

                   *   *   * 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

QUINQUAGÉSIMA

QUINQUAGÉSIMA  

O nobre acto de pensar  
Engrandece o de escrever. 
O poeta encontre o lugar 
Onde as letras deem prazer. 
 
           *   *   * 

QUADRAGÉSIMA NONA

QUADRAGÉSIMA NONA 

Comprando gato por lebre, 
Natural que alguém reclame 
Assim que o encanto se quebre: 
-- “Quem não a conhece que a ame!” 
 
           *   *   * 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

QUADRAGÉSIMA OITAVA

QUADRAGÉSIMA OITAVA     

O silêncio de teus lábios 
Diz mais do que mil conversas. 
Só entendem os mais sábios 
Ausências tão controversas...
 
           *   *   * 

QUADRAGÉSIMA SÉTIMA

QUADRAGÉSIMA SÉTIMA 

Através da noite escura, 
Rodei uma légua e meia. 
Não valeu minha procura  
Seguir quanto o peito anseia. 
 
           *   *   * 

QUADRAGÉSIMA SEXTA

QUADRAGÉSIMA SEXTA 

As mulheres e seus amores 
São curvas de se perder... 
Se d’elas desejo ardores 
Mil mortes sei eu morrer. 
 
           *   *   * 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

QUADRAGÉSIMA QUINTA

QUADRAGÉSIMA QUINTA 

Trocando pernas caminho 
Alta noite pela rua. 
Se tenho de andar sozinho, 
Ao menos por sob a lua! 
 
           *   *   * 

QUADRAGÉSIMA QUARTA

QUADRAGÉSIMA QUARTA

Para os lados do sertão,
Onde tudo é mais distante,
Contempla-se a imensidão.
Chamar os passos do errante.  

   *    *    * 

QUADRAGÉSIMA TERCEIRA

QUADRAGÉSIMA TERCEIRA

Muito antes d’haver estradas,
Atalhava eu pelo mato.
Sendeiro nas madrugadas:
Vereda a dar no regato. 

    *    *    *

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

M’BOICININGA

M’BOICININGA

Chocalha o rabo. Bote presumido
Co’a língua bifurcada para fora.
O homem enfeitiçado se apavora
E hesita face a face ao mais temido.

A vida inteira passa no intuído
Assalto que antevira n’aquel’hora
Em que o silvo atravessa trilha afora
Até que o tornozelo malferido.

A dor aguda logo paralisa
Mesmo porque o chocalho se lhe avisa
Que David outra vez venceu Golias…

De facto, se o gigante cai por terra
A serpente sinuosa a fugir erra
Pelo cerrado adentro tortas vias.

Betim — 29 11 2020

QUADRAGÉSIMA SEGUNDA

QUADRAGÉSIMA SEGUNDA

Lume de quinta grandeza
Que anos-luz ilumina!
‘Té a Terra, em redondeza,
Pelos seus polos se inclina. 
 

   *    *    *

JURURU

JURURU

Tenho andado tão triste ultimamente
Como tivesse visto um anhangá…
Pouco ou nada valeu meu patuá:
Voltei das solidões bem diferente.

Vagas assombrações eu tenho em mente
Por sobre as realidades lá e cá.
Incerto o tempo todo de quanto há,
Espero pela morte tão-somente.

Confesso que me sinto tão sozinho
Que nem mesmo o cantar do passarinho
Consegue me trazer mais alegria.

Eu ando pelas matas noite e dia
E enfeitiçado sigo o meu caminho
Vivendo sem a tua companhia.

Betim — 30 11 2020

QUADRAGÉSIMA PRIMEIRA

QUADRAGÉSIMA PRIMEIRA

Entra n’água e não se molha.
Vai no mundo e não se perde.
Voeja no vento qual folha
E cai na campina verde. 

   *    *   * 

domingo, 29 de novembro de 2020

QUADRAGÉSIMA

QUADRAGÉSIMA 

Anda meio aperreado 
Quem sai de afasto. Afinal, 
Insiste pelo rumo errado 
Para o bem para o mal. 

           *   *   * 

TRIGÉSIMA NONA

TRIGÉSIMA NONA 

Querendo-se espirituoso, 
Fala pelos cotovelos... 
Tem gosto bem duvidoso; 
De arrepiar os cabelos! 
 
           *   *   * 

TRIGÉSIMA OITAVA

TRIGÉSIMA OITAVA 

-- “Mas será o Benedito?” -- 
Pergunta a dona espantada. 
O moleque correndo aflito
Apenas diz: -- “Não fiz nada!” 
 
           *   *   * 

sábado, 28 de novembro de 2020

TRIGÉSIMA SÉTIMA

TRIGÉSIMA SÉTIMA

Pobrezinho, pobrezinho...
 
Foi o Romeu que morreu. 
Lá na curva do caminho. 
Mas antes ele do que eu! 
 

           *   *   * 

TRIGÉSIMA SEXTA

TRIGÉSIMA SEXTA

Passa o dia em nuvens brancas;
Nuvens brancas pelo céu...
Velho Chico das carrancas,
Não me deixes ir ao léu! 

  *   *   * 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

TRIGÉSIMA QUINTA

TRIGÉSIMA QUINTA 

Lá para os lados do poente 
Céus pesados e sombrios. 
Um dilúvio, de repente, 
Enchendo as ruas e os rios. 
 
           *   *   * 

TRIGÉSIMA QUARTA

TRIGÉSIMA QUARTA 

Enxurrada que carrega 
As terras do boqueirão 
Dia após dia se achega: 
Abismo e desolação! 
 
           *   *   * 

TRIGÉSIMA TERCEIRA

TRIGÉSIMA TERCEIRA

Sob sete palmos de terra 
Descansam justos e injustos, 
Nenhuma alma decerto erra 
Apenas para dar sustos! 
 
           *   *   * 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

TRIGÉSIMA SEGUNDA

TRIGÉSIMA SEGUNDA 

Relincha a égua na campina 
Das vertentes morro abaixo. 
Nem um palmo p'la neblina 
Vê o rapaz cabisbaixo.
 
           *   *   * 

TRIGÉSIMA PRIMEIRA  

 TRIGÉSIMA PRIMEIRA  

Nas horas mortas da noite 
-- Desoras de escuridão... -- 
Zurrava a mula no açoite: 
Histórias d'Assombração! 

   *   *   *

TRIGÉSIMA

TRIGÉSIMA 

Tendo a poesia por pena, 
Tem-se o poeta por culpado... 
O leitor na tarde amena 
Separa o certo do errado. 
 
           *   *   * 

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

VIGÉSIMA NONA

VIGÉSIMA NONA 

Contra tudo e contra todos, 
Procuro uma rima plena. 
Escrevo de muitos modos 
Até que me valha a pena. 
 
           *   *   * 

VIGÉSIMA OITAVA

VIGÉSIMA OITAVA 

Acabo por desistir  
De esperar mais esperanças: 
Qualquer que seja o porvir, 
Sombrias minhas andanças... 
 
           *   *   * 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

VIGÉSIMA SÉTIMA

VIGÉSIMA SÉTIMA 

Não há no mundo quem veja 
A loucura do que diz... 
Porque precisa ou deseja, 
Todo mundo é infeliz. 

           *   *   * 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

VIGÉSIMA SEXTA

VIGÉSIMA SEXTA

Corre pela boca miúda
As safadezas da dona.
Gente que mal se desnuda
Vive a vigiar sua cona!...

    *    *    *

domingo, 22 de novembro de 2020

VIGÉSIMA QUINTA

VIGÉSIMA QUINTA

Angu a dar com o pau
Na boca de quem não come...
Fazia o bem sendo mau,
Um outro home lobo do home.


    *    *    *

VIGÉSIMA QUARTA

VIGÉSIMA QUARTA

Não confies na multidão
Que porfia em bajular.
Vivem dando ao falastrão
Corda para s'enforcar.


    *    *    *

VIGÉSIMA TERCEIRA

VIGÉSIMA TERCEIRA

Depois de muito atropelo,
Da bateia tive trégua:
Com ouro em pó pelo pelo,
Eu levei e lavei a égua!

    *    *    *

VIGÉSIMA SEGUNDA

VIGÉSIMA SEGUNDA

Ando pensando na vida,
Como soubesse vivê-la...
Frustrado já de saída,
Talvez me faltasse estrela.


    *    *    *

sábado, 21 de novembro de 2020

VIGÉSIMA PRIMEIRA

VIGÉSIMA PRIMEIRA

Quem só de passado vive
Dizem ser algum museu.
Não esqueci onde estive;
Esqueci quem m'esqueceu.

    *    *    *

VIGÉSIMA

VIGÉSIMA

Bem do século passado
Dizer se presta ou não presta...
Nem aquele que anda errado
Tem etiqueta na testa!

    *    *    *

DÉCIMA NONA

DÉCIMA NONA

-- "Meus filhos 'tão todos criados..."
Vive afinal como quis
Aquela cujos pecados
Guardou para ser feliz.

    *    *    *

DÉCIMA OITAVA

DÉCIMA OITAVA

Vão aos trancos e barrancos
A fazer horas mais ledas:
Intrépidos saltimbancos
Recolhem aos chapéus moedas.

    *    *    *

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

DÉCIMA SÉTIMA

DÉCIMA SÉTIMA

A verdade é que a mentira,
Mesmo quando bem contada,
Pela verdade suspira
Querendo ser revelada.

    *    *    *

DÉCIMA SEXTA

DÉCIMA SEXTA

Oficina do Demônio:
A mente vazia e errante
Tem um único neurônio
Onde o tédio é imperante...

    *    *    *

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

DÉCIMA QUINTA

DÉCIMA QUINTA

De costas, olhando o mar
Está a mulher que amei.
Quem brilha no seu olhar
Confesso que já não sei.

    *    *    *

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

QUATRIDÉCIMA

QUATRIDÉCIMA

Dia sim; dia não, vejo
Outra esperança perdida.
Pouco vale meu desejo
Nos desencontros da vida...

    *    *    *

TRIDÉCIMA

TRIDÉCIMA

Um galo na madrugada
Avisa vir vindo o dia.
Ninguém porém sabe a estrada
Por onde vem a alegria.

    *    *    *

terça-feira, 17 de novembro de 2020

DUODÉCIMA

DUODÉCIMA


Atravesso o rio a vau
Depois de atolar na vargem,
Fincando no fundo um pau
Até chegar na outra margem.

    *    *    *

UNDÉCIMA

UNDÉCIMA

D'aqui a pouco adormeço
Tamanho está meu cansaço.
Esqueço quanto conheço:
Modorro sob o mormaço...

    *    *    *

DÉCIMA

DÉCIMA

Quem maldades insinua
Atiça a ferida em brasa...
Dá-lhe que a porta da rua
É serventia da casa!


    *    *    *

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

NONA

NONA

Se mil mortes tem quem ama
Quantas vidas não teria?
Sem manter d'amor a chama
Resta-me a alma por fim fria...

    *    *    *

OITAVA

OITAVA

Esperando quem não vem
Fiz a vida mais comprida.
Quem me dera por meu bem
Esperar toda uma vida!

    *    *    *

domingo, 15 de novembro de 2020

SÉTIMA

SÉTIMA

Não há dia como a noute
Onde estrelas vêm e vão...
Eis: -- "Oh Universo, eu sou-te!"¹ --
Dentro do meu coração.

   *   *   *

¹PESSOA, Fernando. in III - A VOZ DE DEUS. «ALÉM-DEUS». Orpheu, nº 3. (Lisboa: 1916) (Preparação do texto, introdução e cronologia de Arnaldo Saraiva.) Lisboa: Ática, 1984.  - 37.
Poema nº 3 de Orpheu, que não chegou a ser publicado.

http://arquivopessoa.net/textos/589 . Acesso em 16/11/2020.

SEXTA

SEXTA

No açude de teus olhos,
Sou um salgueiro a chorar.
Mal reparas os desfolhos
D'outro outono a me chegar!...

    *    *    *

QUINTA

QUINTA

Há, do outro lado da vida,
A própria vida espelhada
N'uma imagem refletida
Do nada ao infinito nada.

    *    *    *

QUARTA

QUARTA

A vida -- dizem -- é dura
Apenas p'ra quem é mole.
Ao homem de triste figura
Já não há que lhe console.

    *    *    *

sábado, 14 de novembro de 2020

TERCEIRA

TERCEIRA

Em noite escura, má sorte,
Ouço o pio da coruja...
Sábio quem lembra da morte
Sem topar co'a dita cuja.

    *    *    *

SEGUNDA

SEGUNDA

A quem dorme em demasia,
Seus sonhos, vez em quando,
Lhe parecem que vivia
Enquanto estava sonhando.

    *    *    *

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

PRIMEIRA

PRIMEIRA

Mais do que pobre na chuva
Tenho de mim reclamado...
Já me serve feito luva
Carapuça de coitado!

     *    *    *

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

SUBÚRBIA

SUBÚRBIA

MOTE:
A folga de quem vive só no aperto
É tomar duas doses com o acerto.

GLOSA:
Os carros vêm e vão pela avenida
E o boteco recebe os operários.
As bebidas disputam seus salários
Enquanto as donas fazem a comida...
Eles querem a noite mais comprida
Em face do futuro agora incerto.
Fazem hora na volta da cidade
No gozo d'essa breve liberdade:
-- A folga de quem vive só no aperto
É tomar duas doses com o acerto.

Betim - 11 11 2020

DAS MANHÃS

DAS MANHÃS


1

Dias de alegria

e manhãs de fantasia --

sol de primavera.


2

No vale entre as serras,

um mar de névoas espalha

a clara alvorada.


3

Douradura efêmera

transluz o sol sobre o céu

enquanto madruga. 


4

Desde cedo o sol

acaricia-me a pele

com dedos ardentes.


5

A caminho do eito,

o gafanhoto s'espelha

no orvalho das folhas.


6

Vai amanhecendo.

O sol s'eleva nos morros

e surpreende o poeta.


Betim - 11 11 2020

NOVE DE NOVEMBRO

NOVE DE NOVEMBRO 

Quando minha morte se fizer necessária
para manter o Universo em movimento,
olharei pela última vez o céu
e darei testemunho de que vivi
a quem possa interessar.

Hoje, um dia tão bonito,
fiquei feliz por estar vivo ainda
e ter o sol em meu rosto.

Não. Não preciso de mais nada.
Basta-me esse calor 
e a serenidade de ver o tempo passar
sem qu'eu entenda por quê. 

Meus erros, eu os deixei sob as bananeiras
da ravina que fende o morro em dois.
Haverá sombra e humidade 
mesmo sob o sol a pino. Não temo
enterrar minha tristeza ali. 

Saio leve, morro abaixo
para a cidade que me ignora.

Algo bom, enfim.

Belo Horizonte - 2020

terça-feira, 10 de novembro de 2020

CAÍ NO POÇO...

CAÍ NO POÇO… (rondel)

Pudesse eu escolher, menina, 
Era tua a boca que beijo!
Ess’outra, d’olhos de rapina, 
Pouco sabe de meu desejo…

— “Teu bem é esse?” — Já não vejo
Porque me deixaras tal sina…
Era tua a boca que beijo,
Pudesse eu escolher, menina!

— “Teu bem é esse?” — Ela?! Imagina!
Ess’outra não é quem desejo;
Meu beijo a ela mal se destina.
Era tua a boca que beijo,
Pudesse eu escolher, menina…

Betim — 16 05 2016

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

COM SOFREGUIDÃO

COM SOFREGUIDÃO

Bebo como morresse já de sede
Os beijos que t'escorrem pela boca.
Enquanto tua língua me provoca,
Promessa de prazeres me concede.

Se, nas noites do Norte, n'uma rede 
Meu corpo no teu corpo se desloca,
Amo até entender minha mente oca:
Carícia que se quer e não se pede...

Tu, oásis no deserto atravessado,
Tens a minha sequidão dessedentado
Qual fonte generosa aos borbotões. 

Bebo como vivesse de teus beijos,
Todo entregue à avidez d'estes desejos
Teu corpo no meu corpo em sensações.

Belo Horizonte  - 03 11 2020

sábado, 7 de novembro de 2020

DOS FRUTOS

DOS FRUTOS


N'um cesto de mangas 

Amadurece o verão -- 

Cheiros de mormaço. 


Enchente das goiabas: 

Correndo na chuva grossa 

crianças e frutas. 


Por sobre o relvado

O gozo das horas doces --

Amores e amoras. 


Barracos no morro e 

bananeiras na ravina: 

Vista de favela. 


Jabuticabeiras 

carregadas de meninos -- 

Com caroço e tudo! 


Dentro da fruteira, 

laranjas, maçãs e pêssegos 

adoçando a visão. 


Betim - 02 a 05 11 2020 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

DAS NUVENS

DAS NUVENS


1

A chuva avançando 

Ao chamado das cigarras --

Céu de arrumação.


2

Topo neblinado,

o Itacolomi s’esconde...

Invernou nas serras!


3

Pesadas qual chumbo,

nuvens baixas sobre o mar

são oceanos no céu.


4

Na glória dos céus,

o sol vaza pelas nuvens:

Eis o olho de Deus!...


5

Coroada de nimbos

reina a lua sobre a vila --

Nocturno enluarado.


6

Ao prumo do sol,

céu azul com nuvens brancas

espalha o verão.


Betim - 02 a 05 12 2020

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

IN DUBIO PRO VICTIMA

IN DUBIO PRO VICTIMA (artigo de opinião)

Enquanto escrevo o país arde contra a absolvição d'um homem acusado de estupro. Por falta de provas que corroborassem a acusação da possível vítima, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, decidiu que não houve crime. Relação sexual, todavia, houve. A dificuldade em se provar o consentimento ou não da mulher gerou, segundo o que foi reportado na decisão, a dúvida razoável que livrou o réu. Canalizando a revolta dos vencidos na demanda judicial, o veículo de imprensa The Intercept Brasil divulgou as cenas chocantes do interrogatório a que a acusadora fora submetida pelo advogado de defesa do réu e a conclusão -- desnorteante, mas plausível diante das imagens -- de que vencera n'esse julgamento a tese d'um estupro culposo. 

Não é incomum a imprensa lançar mão de expressões exageradas ou mesmo sensacionalistas com o objetivo de atrair a atenção da opinião pública. Na verdade, a ideia de estabelecer paralelo entre o homicídio culposo (aquele no qual o homicida não teve provada a intencionalidade da morte de outrem, embora sua responsabilidade sim) e uma modalidade de estupro na qual a consensualidade do parceiro no ato sexual possa ser ignorada é algo inusitado... O estupro culposo, alinhavado com a ideia de merecimento do ocorrido pela vítima em função de sua roupa, reputação e mesmo das circunstâncias, permitiu ao acusado André de Camargo Aranha sair pela porta da frente do Fórum ao passo que sua acusadora, a jovem Mariana Ferrer, fosse desqualificada como alpinista social basicamente por ser pobre e bonita. A culpa, entenderam o juiz e o promotor, foi do Universo... Ou melhor, da vítima que interpretou uma relação sexual não consentida (ela estaria embriagada ou narcotizada) como estupro. 

Aliás, por via de regra em caso de estupro, a culpa é sempre da vítima até que se prove o contrário. Isso não é bom. Não é bom para nós enquanto sociedade onde, estatisticamente, acontece um estupro a cada oito minutos, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2020. Mais do que decidir se houve justiça ou não no caso de Mariana Ferrer, a preocupação do Judiciário brasileiro deveria ser, também, civilizatória. Isto é, há estupros demais no Brasil e uma das razões são as próprias peculiaridades do crime: Na falta de provas e testemunhos contundentes, restam apenas os depoimentos de acusado e acusador. É a palavra de um contra a do outro, de modo que sempre haverá dúvidas sobre a verdade dos factos. E, como sabemos, in dubio pro reu... O Judiciário, há séculos, prefere se omitir a errar. O que pode até ser razoável na maioria das vezes se tornou uma licença para estuprar impunemente, haja vista sempre haver dúvida razoável n'um crime que se pode se confundir com intimidade. Com efeito, o que diferencia o estupro do acto sexual comum é a compreensão que os envolvidos têm do que aconteceu. Isso, por si só, deveria fazer o Judiciário mudar o modo como aprecia esse tipo de acusação e, sobretudo, como decide sobre a culpa.

É interessante que a sociedade mude quando identifique situações que promovem a criminalidade e a desigualdade. Supor dúvida razoável em casos de estupro tem, historicamente, beneficiado estupradores e silenciado vítimas. Não há solução à vista com tal sistema. Em casos de acusação de estupro, o ônus da prova deveria ser do acusado, jamais da acusação que, em tese, é vítima de um crime gravíssimo. Em termos civilizatórios, ao menos, teríamos pessoas mais preocupadas em ter o consentimento dos parceiros do que interpretando sinais de consentimento. Urge àqueles que se pretendem bem intencionados aprenderem a respeitar a vulnerabilidade de quem está diante de si, seja pela juventude; seja pela condição física ou mental. Na dúvida, sejamos pela (possível) vítima.

Betim - 04 11 2020

sábado, 31 de outubro de 2020

ISTMO

ISTMO

Entre marés revoltas eu sou rocha
Lúcida e eternamente atormentada.
Elevação deserta em meio ao nada,
Que das ondas em fúria vã debocha.

Faixa de terra estreita que se arrocha,
Ligando uma península avançada
Ao continente como ponte-e-estrada,
Enquanto o extremo sol se põe em tocha.

Os dois mares que avançam contra mim
Erodem com violência minhas costas
No afã de que nova ilha houvesse enfim.

Resisto sem perguntas nem respostas
Aos trabalhos do mar se, ao cabo e ao fim,
À terra alheias linhas são impostas.

Ubatuba - 22 12 1996

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

MÚSICA INSTRUMENTAL

MÚSICA INSTRUMENTAL

De certo modo, a música instrumental é expressão sonora não limitada pelo verbalismo. Pode até pretender significados, mas o faz com a subtileza do não dito; com a liberdade do sugerido. Pode ser, mas também não ser. Aliás, difícil afirmar se triste ou reflexiva a música que toca sem palavras... Mas, exacto por não se sustentar em nenhum idioma, deseja-se universal sob títulos genéricos como "Concerto n° 2", ou coisa que o valha. A música instrumental paira acima de todo desejo de nacionalismo vernáculo ou de bairrismo provinciano, outorgando-se um vago limite onde, sem dizer nada, expresse-se tudo.

Não admira que essa ausência de densidade de significado permita, por via de regra, a prolixidade de sessões improvisadas por horas ou peças minuciosamente compostas para orquestras com dezenas de instrumentos. Melômanos, afinal, não se impressionam à toa. A diversidade das variações sobre o mesmo tema a desenvolver-se em peculiaridades insuspeitadas aguça a atenção do ouvinte atento ao mesmo tempo em que segue como música de fundo quase imperceptível na conversa do café... Há ouvidos e ouvidos! Sem embargo, a música continua tocando, vibrante, por instrumentistas em êxtase face a plateias que variam do mesmerizado ao indiferente. Tudo parece apenas uma melodia a se reinventar infinitamente. 

Avessa à música popular e suas letras grudentas, o instrumental parece exigir uma imersão mais profunda do ouvinte, mas, sobretudo, do instrumentista. Ali, a música existe não para ser ouvida, mas sim para ser tocada. É a diversão dos músicos alheios ao público. Este, se for capaz, alcance o delírio coletivo que presencia... Nefelibatas da berlinda, os músicos se apresentam preocupados em tocar para si mesmos. Dir-se-ia que tocam para seus instrumentos soarem harmônicos n'um afã do belo pelo belo tão-somente. A arte ensimesmada que propõem é linguagem que não se exige sentido, sim sentimento. É abstrata como a pintura não figurativa: Não está ali para ser interpretada por terceiros. Essa obra que prefere sugerir a dizer desdenha as letras e os vocábulos para ser, sobretudo, agradável. Oxalá os homens e mulheres d'este tempo se permitam cada vez mais a beleza de músicas sem palavras e até sem título!... 

Betim - 30 10 2020

TRÍPTICO

TRÍPTICO  

 

O PAI - painel esquerdo  

 

Havia nos seus olhos tamanha ânsia,  

Mirando -- para além da morte -- o nada,  

Que a alma se lhe fugia na mirada  

A buscar um sentido na distância.  

 

Era o próprio retrato da inconstância.  

Por sob uma luz pouco afortunada,  

Trazia agora co’a face enrugada  

Um sorriso d’após segunda infância.  

 

Esquecido à poltrona em que jazia,  

Sentava-se curvado sobre o abdome  

Enquanto perscrutava o fim do dia.  

 

Mas tinha algo que nunca se consome  

E como que a lembrar-se que existia,  

Quedava a repetir o próprio nome...  

 

*** 

 

OS DOIS IRMÃOS - painel central 

 

Já costumavam ter seus olhos tristes 

Um ar entre incrédulo e arredio, 

Parecendo esperar o já tardio 

Alvoroço da vida com maus chistes. 

 

Indiferentes, jogam feito alpistes 

Seus vinténs ao som d’algum assovio. 

Pés descalços que ignoram qualquer frio, 

Qual cavaleiros sem arreios ristes. 

 

Tão meninos e já conhecem tudo 

O que o mundo dos homens mente e malda, 

Onde a dor mal se oculta ao rosto mudo. 

 

Por essas e outras, olham ora à balda, 

Simulando ser o avesso o que não são 

Enquanto vem a idade da razão. 

 

*** 

 

A MÃE - painel direito   

 

Como a Virgem Maria de Caieiro¹,     

Faz-se meias pelas tardes da existência.     

Vã, a luz invernal vem com veemência     

Sobre seu rosto, mãos e o talhe inteiro.    

 

Amêndoas as pupilas... Ao candeeiro,     

Brilham a paz da sua própria essência;     

Têm-lhe a sabedoria da vivência.     

Devotada a um ideal mais verdadeiro.   

 

Vê-se, na parede, uma Anunciação,     

Ao fundo da saleta aconchegante,     

Dando sentido a só composição.   

 

O mais são os detalhes d’este instante:    

A luz, a lã, o riso expectante...     

Aos olhos já em só contemplação.  

 

Betim - 14 10 1998