sábado, 25 de junho de 2022

A HUMANIDADE QUE DEIXO NAS COISAS

A HUMANIDADE QUE DEIXO NAS COISAS


Eu, homem de muitas leituras, tenho amiúde me enganado. Não fui cuidadoso como meus pares, todo entregue ao afã de tirar da folha em branco edifícios de sonhos e casas impossíveis. Sou hoje um arquiteto tão maduro que quase podre, focado no espaço habitado, não em seu desenho. Como quem desdenhando a correção da linguagem, focasse nas ideias puras e nas decisões que estas motivam, não na ortografia corrente das palavras. Não que desconhecesse as regras da linguagem ou os padrões de entendimento, mas antes  cansado do blá-blá-blá retórico dos vazios, eu me considerasse apto a resolver todos os problemas que aparecessem tão logo aparecessem, tal a confiança que guardava nos princípio em face dos meios. Foi assim que perdi meu emprego execrado pela equipe de projetistas da qual fazia parte... 


Tentei sair o mais discretamente possível, haja vista a infelicidade comum e o sentimento de fracasso pessoal, mas não foi possível. Afinal, a caminhada da vergonha é inevitável enquanto se enche a caixa com pertences pessoais rumo à escuridão. Os que ficam, n'um misto de comiseração e alívio, aguardam ansiosos a nossa partida para elencar detalhadamente as faltas e misérias que levaram àquele fim. Em instantes, o lugar que me cabia está livre para o próximo e não haverá qualquer vestígio de mim após o pano de chão embebido em saneante para o turno de trabalho seguinte. Há qualquer coisa de aniquiladora em situações assim e, se me permitis o aparte de vosso tempo com as presentes linhas, descrevê-lo trouxe par mim a verdade de que permanecer nas coisas que utilizamos ou possuímos é uma ilusão que ouso compartilhar com vós-outros para lançar luz ao que, facto, somos.


Entre ser e ter, prefiro viver. Sem embrago, sou arquiteto e tenho coisas, como explicitei no drama comezinho acima. O que vivo espalho em letras com pretensões literárias desde a mocidade sem desejar, sinceramente, nada. Escrevo sobre minha vida e vivo para escrevê-la como poderia viver em busca de amores, sexo, troféus, marcas, posses ou, no fim das contas, reconhecimento de que fui um homem entre os homens. Peço-vos desculpa se vos entedio com esta filosofia de fracassado relativista, mas é o que me resta em face dos últimos acontecimentos. Talvez não valha a pena seguir com a leitura...


Escrevo. Sim, projeto para ganhar a vida, mas escrevo. Um dia não me pagarão mais por meus desenhos, mas continuarei escrevendo. Talvez seja antes escritor que arquiteto, embora não venda livros ou viva de meus escritos. Contudo, escrever me define pelo modo como lido com tudo que vivencio, isto é, escrevendo a respeito. Se tenho alguma riqueza a apresentar no cômputo final de meus dias é a de ser aquele que lidou com sua humanidade escrevendo. Não cuido se o fiz com talento ou com pretensão, apenas o fiz, ou melhor, o tenho feito. Guardo em meus alfarrábios a memória de amanheceres esplêndidos como de noites insones... Independente de público, mostro-me humano e falho no afã de acrescentar aos relatos de meu tempo também as minhas impressões. Expressar do que penso, sinto ou imagino ainda que não me tenham perguntado ou que faça diferença na vida de terceiros sequer como entretenimento.  Páginas e páginas para a apreciação d'um leitor futuro que, via de regra, sou apenas eu mesmo. Forçoso é contar, todavia, o imenso prazer que me dá ler quanto escrevo. Chamem de narcisismo ou de autocomplacência,  esse prazer que me animou literário até aqui é, em si, a humanidade que deixo nas coisas.


Entretanto, havia planejado escrever sobre outra coisa, não esse patético relato de minha demissão. O que pretendia contar, ao fim e ao cabo, era sobre o casaco que visto todos os dias para trabalhar (vede como tergiverso ao redor de meus argumentos...) e estava usando n'aquele momento difícil para mim. Trata-se de um casaco escuro de couro que me cobre dos ombros à cintura. Embora eu ande de moto, não é um típico blusão de motoqueiro, haja vista ter fecho de botões, não de zíper. É um casaco que lembra um terno mal cortado, d'aqueles de botões altos, mas em couro escuro. Não deve ter me custado barato quando o comprei, visto que não sou rico e qualquer coisa fora do ordinário me pesa muito nas contas do mês corrente. Devo, inclusive, ter fechado no vermelho quando o comprei, mas o facto é que o comprei há tantos anos que seu uso diário deve tê-lo feito se pagar incontáveis vezes. Sim, eu o visto todos os dias faz anos e somente hoje, em face do meu estado reflexivo, eu me dei conta d'isso. Se o fiz foi por puro acaso: sentado com o dito cujo em meu colo, eu me vi olhando para suas dobras e esticões. Sim, era meu corpo que o havia moldado e, sim, aquela era a única peça de meu vestuário que eu possuía há mais de dez anos.  Ele, mesmo fora de mim, mantinha a minha forma e lembrava a minha presença. Como um isótopo radiativo ao longo de décadas, ele irradiaria a minha humanidade a quem o tivesse visto comigo, tal a minha quotidiana insistência em vesti-lo sobre tudo o que vestisse. A esconder a minha miséria, como brincam os franceses, ou a revelar a minha esquisitice, o casaco escuro era uma coisa na qual eu deixava a minha humanidade e, a partir d'esse momento inusitado.


Levanto-me para seguir para a rua. Ponho meu casaco que tornarei a pôr amanhã para ir ao meu novo trabalho e depois de amanhã e depois.


Betim - 06 05 2021  

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