sexta-feira, 30 de agosto de 2024

TRINTA DE AGOSTO

TRINTA DE AGOSTO


É sabido que Narciso ama o seu reflexo.

É preciso que haja o outro para que Narciso se possa ver 

nos olhos do outro.


É essa pessoa — o espelho de Narciso,

aquela que espelha a face de Narciso —

que sofre a impossibilidade de ser amada

ao mesmo tempo em que é mantida 

ao alcance dos olhos

para Narciso se mirar


Narciso não ama seu espelho,

visto que apenas um objeto.

Narciso ama sua própria imagem 

refletida no espelho.


Acontece que o espelho de Narciso

não é de vidro, sim dois olhos

que espelham mais do que o que veem;

espelham também o que sentem.


Mas isso, por vezes, distorcem a imagem de Narciso:

Quanto mais velho o espelho, mais opaco reflete.


Se Narciso se olhar no espelho 

e se ver feio,

Ele não vai pensar que a realidade é aquela.

Não. Jamais se verá feio, embora o outro o veja.

Narciso vai desconfiar do reflexo que o espelho dá.


Narciso vai quebrar o espelho

e arranjar outro.


Betim - 2024


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

EM DÚVIDA

EM DÚVIDA

O certo no duvidoso é a possibilidade de estar errado.

Betim - 20 08 2024

terça-feira, 20 de agosto de 2024

PIRAMIDAL

PIRAMIDAL

Subi na força do ódio toda a escada,

Ecoando-me à cabeça a tua voz.

Depois de chegar no alto, estive a sós

Por muito tempo olhando para o nada.


Ainda assim, revi tua mirada

Indiferente a mim, perfeita algoz.

Procurei quem era eu sem sermos nós

E vi para a distância a longa estrada.


Eu prefiro gritar a murmurar…

Há toda a imensidão d’esse lugar

Para encontrar de novo um horizonte.


Apaziguado, sinto o coração

Mais leve em sua própria solidão.

E sigo… Aonde quer que o sol aponte.


São Thomé das Letras - 10 08 2024



segunda-feira, 19 de agosto de 2024

OUTRAS NOVENTA E NOVE TROVAS

OUTRAS NOVENTA E NOVE TROVAS


1.

Mais quadras segundo a norma,

Ainda que embalde as trove.

Mas isso, de qualquer forma,

São outras noventa e nove…


* * *

2.

Fui de tudo quanto é nome

Menos de santo chamado.

Poeta com cara de fome,

Trovo sem ser convidado.


* * *

3.

Árduo tem sido o caminho

Do que poeta aos quatro ventos

Termina ansioso e sozinho,

Às voltas com sentimentos.


* * *

4.

Mais rápido do que a luz.

Mais vívido do que o amor.

É teu olhar que conduz

Meus passos aonde eu for. 


* * *

5. 

Chifre em testa de cavalo…

Pelo em ovo de galinha…

Desconfie d’um regalo

Quem tem vida como a minha.


* * *

6.

Na estrada para a verdade,

Há quem ande e desanime.

Passa muita adversidade,

Mas o final é sublime.


* * *

7.

Conhecida a decepção,

Que esperar das pessoas?

O que escuta o coração

Há-de ouvir poucas e boas…


* * *

8.

Não tenho medo do escuro.

Não vivo na fantasia.

Triste é ver um inseguro

Sondar fantasmagoria.


* * *

9.

Correm os cães em matilha

‘Trás de carroça na rua.

Ao estúpido maravilha

Qualquer esperança crua.


* * *

10.

Falar dos outros é falho;

Calar de tudo também.

Criticar é mau trabalho,

Mas muitas vezes convém.


* * *

11.

Olho nos olhos da bela

E já me vejo encantado.

Tanta luz nos olhos d’ela

E eis o mundo iluminado!


* * *

12.

Doze horas bateu o sino

Na noite imensa e sombria.

Solitário desatino

Rondar cidade vazia.


* * *

13.

Apesar de tudo, eu hoje

Estive comigo mesmo

Triste d’aquele que foge

De si a palestrar a esmo.


* * *

14.

Tem resposta para tudo

Aquele que nada sabe.

Vazio, nunca está mudo:

Quanto mais falta, mais cabe!


* * *

15.

Atrás da serra, a cidade

É paisagem pressentida.

Longe é também a verdade

Mais sonhada que sabida.


* * *

16.

No arroio frio do monte,

A cerração m’esmorece.

Ainda que o sol desponte,

O dia mal aparece…


* * *

17.

Se quem ama se lamenta,

Que dirá quem nunca amou?...

Só se prova na tormenta

A barca que navegou.


* * *

18.

Doce todo o esquecimento

Que nos livra do passado.

Esquecer é livramento

Aos infortúnios do Fado.


* * *

19.

O tempo, que tudo cura,

Seca a chaga em cicatriz.

Na pele, porém, figura

Como lembrança infeliz.


* * *

20.

A barca dos insensatos,

A navegar à deriva…

Ora balaio de gatos;

Ora memória emotiva.


* * *

21.

Minha vida continua 

Com quem na vida é vivida

Quem comigo se situa

Continua em minha vida.


* * *

22.

Deixo p’ra lá quem se foi.

Deixo p’ra cá quem se vai.

Não lhe peço nem um oi.

Não lhe devo nem um ai.


* * *

23.

Tanto as noites quanto os dias

A todos têm ilusões.

Desencontram-se em porfias

Solitários corações.


* * *

24.

Sem saber aonde vão…

Sem saber d’onde vêm…

Assim as pessoas são

Para o mal e para o bem.


* * *

25.

Coisas vi maravilhosas,

Que ‘inda custo a acreditar.

Ora versos; ora prosas,

Deixei-vos para contar.


* * *

26.

Trovadores são poetas

Que o povo nas ruas estima!

Têm suas obras completas

Da vida matéria-prima.


* * *

27.

Candeeiro que me alumia

Da noite a escuridão

Só tu sabes a agonia

Que trago no coração.


* * *

28.

Querer parecer feliz

Apesar d’um mau momento?

É como pôr sóis de giz

A brilhar sobre o cimento…


* * *

29.

— “Só tenho olhos para ti!”—

Diz o que fala d’amor…

Se mente até para si,

Porta da rua é favor.


* * *

30.

Falam d’amor sem amar

Aqueles vivem sorrindo.

Falam assim por falar:

É ora lindo; ora findo…


* * *

31.

Cogito: —”Das duas, uma:

Ou amas tua própria história; 

Ou não amarás nenhuma…”

Celebra cada vitória!


* * *

32.

O roto do esfarrapado

Fala sem nem se dar conta

De si tão mal-ajambrado,

Quando a outrem o dedo aponta.


* * *

33.

Olhei nos olhos da fera

E me vi em grande aperto.

Quando a raiva é quem impera,

Dizem que o errado está certo.


* * *

34.

Nas horas de Deus, amém…

Nas horas de dor, adeus…

Quem fica, que fique bem

E quem vai, que vá com Deus!


* * *

35.

Eu estou bem, obrigado.

E bem hajas tu também.

O tempo passa apressado

Quando estamos todos bem.


* * *

36.

Um sonho tornado real

Ou somente não sonhar?

Faz tua escolha, afinal…

Eis: É pegar ou largar!


* * *

37.

Muitos que vieram aqui

Não viram nada demais.

Já eu, se conto o que vi,

Não são lugares iguais.


* * *

38.

Amor tão grande que mata

D’esses, não quero saber.

Amor que apenas maltrata

Não vale a pena viver.


* * *

39.

É o mundo muito grande

É a vida muito curta.

Quem viaja o olhar expande.

Quem para os dias encurta.


* * *

40.

Para além do que se vê,

Está quanto se deseja.

Espera aquele que crê

Que sua esperança seja.


* * *

41.

Não cuido da vida alheia.

Não falo do que não sei.

Maldar o outro é coisa feia

Tanto ao plebeu quanto ao rei.


* * *

42.

Pequeno é meu coração.

Confusa é minha cabeça.

Se sinto, não tem perdão.

Se penso, peço que esqueça.


* * *

43.

Mais dia, menos dia, eu

Encontro quanto desejo!

Quem de si já se perdeu

Vai de bocejo em bocejo…


* * *

44.

Quer sucesso; quer fracasso,

Só alcança o que se arrisca.

Sem dar o primeiro passo

Não há estrada nem risca.


* * *

45.

Amor não é escolhido.

Carinho não é comprado.

Seja dado e recebido

Ou senão será passado.


* * *

46.

Eu quis uma companhia.

Ela quis um companheiro…

Não houve mais alegria 

Depois do adeus derradeiro!


* * *

47.

Escolhesse eu não amara

Aquela que tanto amei.

Amar é coisa tão rara,

Que nunca mais encontrei.


* * *

48.

Um dia após outro dia…

Assim eu tenho vivido.

Só lamento a fantasia,

E todo o tempo perdido.


* * *

49.

A bem da verdade, a vida

É feita de desenganos.

Muita esperança é perdida,

Ao longo de poucos anos..


* * *

50.

Jovem demais p’ra morrer

Ou velho demais p’ra amar?

Na meia-idade, viver

É sempre desencontrar.


* * *

51.

De boa vontade, o inferno

Parece, de facto, cheio:

Sempre mais um desgoverno

Com aflições de permeio.


* * *

52.

Não há dia em que não lamente

A falta que ela me faz.

Espero que estando ausente

Ela enfim esteja em paz.


* * *

53.

É levar gato por lebre

Um amar sem ser amado.

Cai, delirante de febre,

Tendo sempre o sonho errado.


* * *

54.

Há quem pague para ver 

E perde por apostar.

A vida quem vai saber

Da fortuna o seu lugar.


* * *

55.

Partem para novos sonhos

Aqueles que vão embora.

Deixam uns olhos tristonhos,

Lembrando coisas d’outrora..


* * *

56.

Saudades tem quem fica.

Saudades tem quem vai.

Na distância se fabrica

O verso que d’alma sai…


* * *

57.

— “Andarilho solitário,

Por que segues pela estrada?”.

— “Sigo sem itinerário, 

Só por gosto da jornada!”.


* * *

58.

Não costumo tecer loas

Mesmo quando têm lugar.

Penso que evito as pessoas

Para as não decepcionar.


* * *

59.

Nem ao sábio a sab’doria.

Nem ao forte a fortaleza

No final, bem mais valia

Do cínico a natureza.


* * *

60.

Tanto o fogo morro acima

Quanto a água morro abaixo

Não seguram quem se anima

Nem o rastro por debaixo.


* * *

61.

Não acreditam em Deus,

Sim na vida após a morte…

Vivem como fariseus,

Mas sob a lei do mais forte.


* * *

62.

Ricos são donos do tudo;

Pobres são donos de nada.

Ninguém é feliz, contudo,

Insone na madrugada.


* * *

63.

Os que sonham fazem bem,

Mas os que dormem, melhor.

Em vigília se mantém

Quem espera pelo pior.


* * *

64.

Tenho passado a miúde

Na última casa da rua.

Quem mais d’amores se ilude

Caminha por sob a lua.


* * *

65.

Passo por um malfeitor 

Por dar amor sem amar.

Não há pecado maior

Que o coração s’enganar.


* * *

66.

Na dúvida, disse não,

A quem dissera antes sim.

Parece ter sido em vão

Quando tudo chega ao fim.


* * *

67.

Confundo alhos e bugalhos

Na ânsia de muito escutar.

Os pensamentos são falhos

Quando se apressa em amar.


* * *

68.

Tem olhos mas não se vê.

Tem orelhas mas não se ouve.

O conhecer-se é mercê

Que a muito poucos aprouve.


* * *

69.

Parecia estar errado

Ao fazer a coisa certa.

Pondo a vaidade de lado,

Restou a ferida aberta.


* * *

70.

Faz sem nem saber fazer

Que quer que seja de bom.

A habilidade em perder

É quem dá a misérias o dom…


  * * *

71.

A sem-vergonhice extrema

É ver um bem sendo um mal:

Fazer da desgraça um lema

E ter razão no final …


* * *

72.

Do mundo sei muito pouco;

Das pessoas, ‘inda menos.

Sabido, passo por louco:

O menor entre os pequenos.


* * *

73.

Sábio o que os males espanta 

Com canções de bem-querer:

D’amor alheio s’encanta

Sem dissabores sofrer!


* * *

74.

Amadores sem amor

Têm-se amantes sem amar.

Pois dos males, o maior,

É a si mesmo enganar.


* * *

75.

Fiz minhas as tuas horas 

Ao viver a tua vida.

E tu mesmo assim ignoras

Tanta entrega desmedida.


* * *

76.

Não nasci ontem, deveras.

Nem nasceste tu também.

Vou contar-te as primaveras,

Pois tão-só te quero bem.


* * *

77.

Faz de conta que é amor

Esta chama em teu olhar.

E se outro brilho isso for,

Pois seja! Vem a calhar…


* * *

78.

Semanas viraram meses

E os meses viraram anos…

O tempo a passar às vezes

Traz apenas desenganos.


* * *

79.

Um perdão que nunca vem

Deixa a vida em solidão.

Triste quem espera alguém

Ter de novo coração. 


* * *

80.

Nas linhas tortas de Deus,

Todos leem o seu Fado.

Após, s’esquecem dos seus,

Sem futuro nem passado.


* * *

81.

Que nem água morro abaixo;

Que nem fogo morro acima,

Ninguém segura… Sai debaixo,

Quando um amor se aproxima!


* * *

82.

Diz-que quem bate esquece

Mas o outro que apanha, não.

Ressente a dor que padece

Em mágoas seu coração.


* * *

83.

Para todos os efeitos,

Não adianta s’enganar:

Se cada um tem seus defeitos,

Quem és tu para julgar?


* * *

84.

Ando tão longe de ti, 

Enmimesmado a cismar,

Que hoje nem vi que te vi,

Quando me viste passar.


* * *

85.

Entre dois, um se contenta,

Enquanto o outro ama demais…

Se o que ama pouco, lamenta;

Que dirá quem ama mais?


* * *

86.

À sombra das laranjeiras,

Bem-te-vis fazem a festa…

As memórias derradeiras

Sejam tão boas como esta.


* * *

87.

Se antes do sol, madrugando,

Começas tua jornada,

A alegria, vez em quando,

Contigo fará morada.


* * *

88.

É mais belo o amanhecer

Lá nas serras neblinadas.

É sempre bom surpreeder

O sol em nuvens raiadas.


* * *

89.

Quem busca viver em paz

Tem seus olhos no presente.

Triste é olhar para trás

P’ra não olhar para frente.


* * *

90.

Era uma vez uma casa

Nos longes d’aquela serra.

Lá mesmo o tempo se atrasa 

E a tristeza se desterra.


* * *

91.

— ”Onde moras, alegria,

Senão em velhas lembranças?”

— “Onde vives, fantasia,

Senão em vãs esperanças?”


* * *

92.

O silêncio faz poetas

Os que se veem maiorais.

Pobres mentes inquietas…

Se falam, falam demais!


* * *

93.

Mesmo que te sintas só

E entristecido p’los cantos,

Arranca à garganta o nó…

Vai buscar novos encantos.


* * *

94.

Tantos amam o sucesso,

Tantos buscam a riqueza,

E ser feliz é o avesso

De tão mundana certeza.


* * *

95.

Aquele que ama, decerto

Amará do outro a alegria 

Tanto longe quanto perto:

Sem a sua companhia.


* * *

96.

Quando a vida se partilha

Tudo o que alegra o outro é bom.

Melhor é o olho que brilha;

Melhor é do riso o som,


* * *

97.

Não fosse errar tão humano,

De facto, ninguém errava.

No fim não há maior dano

Que de gente certa e brava.


* * *

98.

A solidão é um fardo 

Para o dono da verdade:

Pensando-se felizardo,

Vive sempre na saudade.


* * *

99.

Escrevo trovas de novo

Sem ver se lidas ou não.

Embora ao gosto do povo,

Ao fim, dirão em vão?


Betim - 15 08 2024