terça-feira, 31 de dezembro de 2024

VAREJEIRAS

VAREJEIRAS


Como aquele que tem-de espantar moscas

Dos sonhos na vitrina do padeiro,

Eu vasculho meu sono o tempo inteiro

Contra rostos sombrios e auras foscas.


Era depois do jogo de biroscas

Pelas tardes da infância, no terreiro,

Quando em desencanto costumeiro

Eu via varejeiras sobre roscas…


Sim, elas vêm e vão… Sujam a fundo!

Assisto, entre impotente e resignado,

O sonho desejado agora imundo. 


Do mesmo modo o sono deleitado

Perde-se na vigília que aprofundo

Às voltas co’os senões de todo o Fado.


Betim - 15 11 2024


segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

MATRIOSCA

MATRIOSCA


A mãe da mãe da mãe da mãe da filha

Traz dentro de si todas as mulheres,

Pois meninas a brincar em seus quereres

Diante d’uma pequena maravilha:


Ornam-lhe rosas, flores de baunilha

Margaridas, lilases, malmequeres…

Onde nomes em russos caracteres

Recordam as matriarcas da família.


Uma a uma elas contêm e estão contidas

A maternar nos ventres novas vidas

Com sorrisos nas faces afogueadas.


Assim, fazem pensar que até o amor

Pode ser bem maior que toda a dor,

Se como mães de mães forem lembradas.


Betim - 02 11 2024


sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

ARCO VOLTAICO

 ARCO VOLTAICO


Faiscaram pelo breu alguns lampejos

E um estrondo se ouviu quase instantâneo.

Em roda, o pasmo uníssono e espontâneo 

Irrompera após horas de bocejos.


Solene feito um xamã contemporâneo,

O químico fez luzir entre manejos

Duas hastes erguidas com flamejos

N'um lúgubre e sombrio subterrâneo.


Tinha para consigo que as centelhas

Revelar-se-iam forças bem parelhas

Às que os átomos têm em seus desvãos.


E, então, uma plateia de excelências,

À luz d’aquelas vãs incandescências,

Contemplou a Natura em suas mãos.


Belo Horizonte - 22 04 2024



quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

SABE DEUS

SABE DEUS


Em havendo ou não vida após a morte,

A consciência em mim cá se me diz:

“Quem busca ao fim do dia estar feliz

Intente ser mais sábio que mais forte”.


Detém sabedoria, por raiz,

Não o que mais saber se lhe comporte,

Sim o que saboreia em sua sorte

Momentos de alegria face a hostis.


Ignoro quem seja Deus ou como seja,

Mas gosto de sonhar qu’Ele deseja

Saber todas as coisas que sabemos.


Por isso, desconfio dos doutores

Que, sabendo de Deus, sonham horrores

Em tudo o que, afinal, desconhecemos.


Betim - 24 12 2024


segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

AQUI E ACOLÁ

AQUI E ACOLÁ


Lá! Para além d'aqui; n'outro lugar.

Pelos longes aonde a vista aponta,

Quando em belo horizonte o sol desponta

E o contorno das serras faz dourar.


É bom estar aqui a imaginar

Tudo o que esta distância agora conta

Até ter a cabeça um tanto tonta,

Enquanto a imensidão me agrada o olhar.


Ver do mirante a serra contra o céu

É logo imaginar marcha e tropel

De toda a travessia a conduzir.


É belo, tanto aqui quanto acolá.

Mas vou pôr-me a caminho desde já,

Mais um pela paisagem a ir e vir.


Contagem - 22 12 2024


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A COR DOS OLHOS

A COR DOS OLHOS 


Meus olhos, tão comuns que não costumo  

Vê-los senão nos teus, verdes espelhos.

Se eu os tenho co’os meus quase parelhos,

Veem, sem quê para quê, fora de prumo.


Pois, ao vê-los em ti, vejo que velhos

Qual dois astros no ocaso de seu rumo…

Deveras, logo a vista eu desarrumo,

Como se olhasse um sol sem aparelhos.


Castanhas bem escuras, as pupilas

Parecem rebrilhar por sobre as tuas,

Até reverdecerem, cá, as duas.


Lúcida e claramente, tu cintilas!

Tão bela a cor dos olhos que me querem,

Que mais belos meus olhos por te verem.


Betim - 18 12 2024


quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

ADICTO

ADICTO


Tanto há males que vêm lá para o bem,

Quanto bens há que vêm cá para o mal…

Mas, entre bens e males, no final,

É ver quanto convém ou não convém.


Este vício que tenho me sustém

E alivia um vazio emocional.

O bem que me permito é tal-e-qual

O mal que me aliena d’algo além.


Ter é perder — me disse alguém mais sábio —

Mas não ter é sonhar no alheio lábio

O gozo que o desejo faz querer.


E, de lá para cá, o sofrimento

É o monstro que amiúde alimento

Por algo que me dê algum prazer.


Belo Horizonte - 04 03 2000