A REPRIMENDA - O homem do saco e outros contos
Entregou o manuscrito e ficou esperando que o outro terminasse
de ler. Como não dissesse nada resolveu quebrar o silêncio que já se tornava
incômodo.
-- "Estás com cara de quem leu e não gostou. É um pouco
como te vejo esse texto..."
-- "Não faças isso" -- o outro disse --
-- "Isso o quê?" -- atalhou.
-- "Analisar-me como se eu fosse uma personagem de romance.
Tenho certeza que sou mais complicado que isso".
Não esperava por aquela reacção. Assumiu um tom mais sério a
partir d'ali.
-- "Na verdade, meu caro, as pessoas mais interessantes que
conheço são personagens de romance. É quase um elogio ser descrito como ou
analisado como uma..."
-- "Discordo." -- interrompeu o segundo --
"Parece uma necessidade humana pôr o acaso em narrativa; dar sentido ao
caos." -- e concluiu: -- "Não precisas tentar me encaixar n'algum
perfil psicológico para deduzir minhas motivações. As coisas simplesmente
acontecem e nos afectam. É apenas isso! Não há um grande plano, humano ou
divino, por detrás. Não há uma sociedade secreta ou coisa que o valha
manipulando os liames que nos movem. Não há nada além de gente tentando viver
sua vida da melhor forma que consegue."
-- "Agora quem vai discordar sou eu. -- disse, por fim, o
primeiro -- Há muita gente "fora da curva" que faz coisas
impressionantes ou que sentem o mundo de modo diferente. Essas pessoas que
busco conhecer. Essas que chamo de interessantes ou extraordinárias".
-- "Ah, sei: Assassinos que cometem crimes perfeitos;
homens que vão para uma guerra e trazem um olhar pessoal da História; mulheres
belíssimas que olhos seguem deslumbrados... Queres saber? Estou farto d'este
monte de nada a que a indústria cultural chama de entretenimento."
Betim - 03 02 2018
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