quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

DESCONHECIDO


DESCONHECIDO
“Se existir um Deus ele terá que implorar por meu perdão.”
 Grafite no campo de Mauthausen-Gusen
¹

Deus — o desconhecido² ou qualquer um — 
Há mais de dois mil anos não é visto
Sem nunca visitar lugar algum.
Embora ausente desde Jesus Cristo,
Havendo-O por geral lugar-comum,
Maior nosso abandono em face d’isto:
Com silêncios responde os nosso gritos,
Vagando pelos amplos infinitos…

Todavia, em memória dos caídos,
Uma vez mais recorde-se, por real,
A história esquecida de vencidos,
Em desespero face ao puro mal…
Um — entre outros milhões desconhecidos — 
Nos seja o herói de todos no final,
Quando posteridade se concede
A alguns grafites seus pela parede:

Era em vagões de gado abarrotados
Que se chegava ao campo de extermínio.
Todos os dias, diante dos soldados,
Na pedreira o execrável tirocínio
De carregar granitos tão pesados,
Quanto os horrores contados desde Plínio³.
Onde novos Germânicos com Ciência,
Excedendo os Romanos em violência!…

Havia, com efeito, essas jazidas
D’onde extraíam blocos de granito,
Mas, mais que as rochas, eram as vidas
D’aqueles que clamavam ao Infinito
Que viam nos trabalhos exauridas…
Porquanto, a minerar o monolito,
Em subir e descer sob olhos maus,
Mais da escada da morte seus degraus.

Eram como formigas carregando
Os blocos do rochedo escada acima.
Entre os degraus, os passos vacilando,
Apenas um sobre o outro mais se arrima
Dos blocos que rolavam vez em quando
E esmagavam a quem caísse em cima…
Com muitos perecendo pela escada,
Que por isso da morte era chamada.

Vez ou outra, d’exaustão, alguém caía
Derrubando os que vinham logo atrás.
A diversão dos guardas consistia
Em ver quantos morrendo em quedas más!
Sádicos, vêm contar ao fim do dia
Aqueles que deixando paus e pás
Já sobre o nada tendo olhos absortos
Jaziam entre as rochas semimortos.

Um aos alojamentos, entretanto,
Retornando da faina em hora incerta,
Ao contrário da placa do recanto,
Percebe que o trabalho não liberta -4
Nada pode senão gizar n’um canto
Da parede esta triste descoberta…
“‘Inda que sobre as pedras sobreviva
Não há pessoa ali que saia viva!”

E, citando o salmista sem porvir:
 “Senhor Deus, por que vós me abandonastes?” -5
Escreve o que não se ousava repetir…
Ao lado, contra as suásticas nas hastes:
 “Dobrar (a verdade) é igual mentir
Citava o velho verso sem contrastes
D’um bom poeta anarquista e pacifista, -6
Caído n’outro cárcere hitlerista…

Sobre a última parede ele, porém,
Descreve em letras grandes, desvalido,
A sua desgraça como lhe convém
Sem sua assinatura, para o Olvido,
Na qual ao próprio Deus culpa também,
Certo em permanecer desconhecido.
Se existir (mesmo) um Deus” — escreve então — 
Terá que me implorar por meu perdão!”¹.

Quando Aliados chegaram ao lugar,
Avançando pela Áustria devastada,
Custaram eles mesmos a aceitar
O relato brutal d’aquela escada
Pela qual se matava a trabalhar.
 — Ou melhor, se morria na jornada… — 
Não creriam não fosse os resgatados
Testemunhando tudo aos soldados.

Aliás, o odor nauseante dos defuntos
E as pilhas de cadáveres vertidas
Demonstravam a morte nos conjuntos
De prédios, oficinas e jazidas
Onde homens padeceram anos juntos
A vida mais terrível d’entre as vidas,
Visto vivida face a face à morte,
Que omnipresente ali fez sua corte.

Por dias, os horrores monstruosos
Revelam-se um inferno tal-e-qual,
Parecendo antes obra de raivosos,
Que alguma humanidade racional.
Métodos que demonstram, criteriosos,
A mais perversa lógica do mal:
Onde se fabricava a morte em série,
Mais matava o trabalho que a intempérie.

E a esperança que ecoa n’alma humana
Mais parece perder do que salvar
Na teimosia do escravo que s’engana
E crê que se liberta a trabalhar…-4
Tão-somente se adia outra hora insana,
Na qual entre morrer e se matar
Decide uma outra vez subir a escada
Ou conhecer dos mortos a morada.

Os Aliados, afinal chegam à cela
Na qual o nosso herói marcou presença
Escrevendo à parede, incerta tela,
Com Deus a sua humana desavença.
Quem antes de morrer se nos revela
O tamanho d’uma alma tão imensa
Que, a exigir do Senhor consolação,
Mais merecera d’Ele ouvir: — “Perdão!”

Belo Horizonte — 29 01 2019

¹- Autor desconhecido. Grafite encontrado em 1945 com mais outros dois n’uma cela do cárcere do campo de Mauthausen
²- At 17:23
³- Plínio, o velho (23–78 d.C). Historiador e naturalista romano.
4-”Arbeit macht frei” é uma frase em alemão que significa “o trabalho liberta”. A expressão é conhecida por ter sido colocada nas entradas de vários campos de extermínio do regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial,
5- Salmo 21:2 e Mateus 27:43
6- Erich Mühsam, in “O prisioneiro” / Der Gefangene: August 1919
http://www.gedichte.eu/ex/muehsam/brennende-erde/der-gefangene.php


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