segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

PASSIONAL - Notas para um bilhete de suicídio



PASSIONAL


- Notas para um bilhete de suicídio –









Ricardo Cunha









Para Sara, Geralda, Andrea, Fra. Eugênia
e todas as mulheres que um dia
compartilharam comigo
suas histórias.









PREFÁCIO – O LIVRO E O ANTILIVRO
Para o pleno entendimento da proposta da presente narrativa, convido o leitor a se precaver de sua estrutura peculiar revelando desde já uma importante chave de interpretação: A ideia de livro e antilivro. É preciso que o leitor entenda que o livro que tem diante de si é na verdade o antilivro da não-ficção de autoajuda que duas personagens escreveram dentro da própria narrativa, isto é, OS CASAMENTOS BLINDADOS, escrito pelo casal Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller. Trata-se d’um livro semelhante a outros que têm sido publicados recentemente, que promete, entre outras coisas, a felicidade conjugal mediante dicas comportamentais e reflexões piedosas. Tudo isso capitaneado pela própria imagem de sucesso ostentada pelo casal de pastores em farto material fotográfico e audiovisual que costuma a acompanhar tais publicações.
Para que tal referência ficasse mais evidente, cada capítulo da narrativa é iniciado com uma citação do livro escrito pelas referidas personagens. São parágrafos que descrevem as dicas presentes em OS CASAMENTOS BLINDADOS, cuja proposta do texto do capítulo a seguir é colocar em crise, seja pelas situações que descreve; seja pelas contradições das próprias personagens entre o que idealizam e o que vivenciam. Na verdade, a grande ideia por trás de PASSIONAL é justamente de que inexistem receitas para o amor, demonstrando dest’arte o absurdo de se defender fórmulas terapêuticas para relações doentias. Essa necessidade de fazer dar certo a qualquer custo uma relação esconde em seu âmago a negação de insatisfações e, sobretudo, a cegueira conveniente diante da pessoa que se tem ao lado.
Outra importante chave de leitura é entender a narrativa tal como expressa o subtítulo, isto é, como notas reunidas com a finalidade de explicar um bilhete suicida. Trata-se do bilhete que se avisa desde o início do livro que a protagonista deixará em sua tentativa de se matar por amor, o que conduz ao título principal do livro. Crimes, ou simplesmente romances, passionais são aqueles marcados, senão pelo descontrole das actitudes, pela intensidade das emoções amorosas. É a perfeita antítese do amor construtivo que o casamento cristão que a autoajuda defende, onde a temperança prevalece sobre a intempestividade. Esse contraste entre o desejo d’uma espiritualidade conjugal e a necessidade d’uma passionalidade amorosa é sublinhado a todo instante com as trajetórias de dois casais que se atravessam, desmanchando o tempo todo certezas estáveis em verdades provisórias.
Considero ainda pertinente expor n’esse prefácio a ideia d’uma arte gráfica para a capa nascida junto com o livro. À premissa de que essa narrativa contasse uma história do meu tempo, datada e tudo mais, impôs uma capa que se semelhasse à primeira página d’esses tabloides de centavos – com cores berrantes e fotos apelativas – que são publicados diários e têm no crime passional seu filão. Imaginei o título do livro no lugar do título do jornal mais a manchete e a data citadas no jornal que a protagonista espia logo nas primeiras páginas da narrativa, a saber, ESPOSA MATA O MARIDO ENQUANTO DORMIA E APÓS SE MATA - 23 de outubro de 2017, com a devida foto das vítimas com desfoque no rosto. Além d’essa manchete típica, um mínimo quadro mencionaria em chamada ainda menor que quase dois milhões de pessoas no Sudão do Sul estão refugiadas em Uganda! Para relaxar, já que é segunda-feira, a manchete d’uma sapatada de 4 x 1 do Atlético Mineiro sobre o São Paulo em pleno Morumbi... Na vertical, a foto de corpo inteiro d’uma gostosa famosa seminua revelando que fez ménage com o marido e mais um. Por fim, para coisa ficar ainda mais irônica, uma promoção de tamanho médio com a foto do casal de pastores sorrindo informa que, juntando dez cupons como aquele, o felizardo adquire uma versão popular de OS CASAMENTOS BLINDADOS.
Penso que esse aspecto seja muito importante na compreensão da narrativa, ou seja, que se trata d’uma obra datada; uma janela de tempo que se abre para olhar a contemporaneidade brasileira. Tenho consciência de que muitos vão torcer o nariz alegando que isso a diminui enquanto literatura. Eu só posso dizer em minha defesa que, no momento em que atravessamos, mais importante que fazer literatura é fazer registros amplos e significativos da ampla gama de realidades que nos cerca. Penso que entrego com PASSIONAL uma narrativa honesta e original ao público. O leitor pode até não gostar dos temas ou das personagens ou pode considerar superficiais minhas escolhas pautadas pela relação moderna das pessoas com a religião e as mídias digitais, mas deverá admitir que essa narrativa não tenta recontar histórias já contadas.
Diga-se de passagem, embora haja inúmeras publicações de autoajuda de temática conjugal semelhantes ao livro OS CASAMENTOS BLINDADOS que dá origem a PASSIONAL por antítese – alguns, inclusive, também escritos a quatro mãos por casais... –  trata-se d’uma obra fictícia que emula um filão editorial afim. Não houve cópia de conteúdos publicados em livros de autoajuda disponíveis, logo, tudo que se encontra n’esse livreto é obra da imaginação do autor. Não se deve, portanto, procurar além da temática de autoajuda qualquer semelhança entre as personagens do livro e personalidades vivas, visto que jamais foi essa a intenção. Ressalte-se, portanto, o carácter estritamente ficcional tanto de OS CASAMENTOS BLINDADOS quanto de PASSIONAL.
Penso que PASSIONAL possa ser apresentado como uma história de amor entre duas mulheres casadas de mundos muito diferentes. O facto de que uma d’elas ser religiosa não deve ser encarado como uma escolha gratuita ou apelativa, muito pelo contrário. O objetivo foi discutir a presença do fenômeno religioso na nossa sociedade e a crise do idealismo n’um mundo que parece mudar para pior, ou pior, não mudar de facto. Tenho consciência de que muitos leitores repudiarão a personagem por se comportar d’um modo que não corresponde ao ideal cristão, mas justamente por isso ela se faz tão rica. No final das contas, a idealidade de OS CASAMENTOS BLINDADOS e das estruturas que o cercam é desconstruída a partir da realidade do amor entre essas mulheres...
Amar, n’esse início de século XXI, se apresenta como uma corrida absurda atrás d’um fantasia que se nega o tempo todo, de modo que a única maneira de ser feliz seja justamente não tentar ser feliz. Aquilo que se sente, para além de toda a segurança do dinheiro ou do poder, torna-se miragem quando se percebe que os olhares param de convergir e os laços começam a se afrouxar. Não há livro, sagrado ou não, que faça o amor acontecer para além da funcionalidade d’uma vida a dois superficial.
A imperfeita lição de amor que PASSIONAL indiretamente oferece é se fixar tão-somente na intensidade do que se sente, jamais na conveniência. Àqueles que se permitem amar movidos pela grandeza do sentimento podem até acabar com o coração partido pelo abandono do outro, mas vivem com a convicção de que amaram plenamente, intensamente, amplamente... Mesmo que o coração exploda de tanto amor. 


CAPÍTULO 1
“Nunca se deve amar somente para si. Amar é dar de si ao outro. Aquilo que oferecemos ao cônjuge é o que d’ele receberemos. A única garantia de que um relacionamento vai durar é compreendê-lo como parte do plano de Deus em nossas vidas. Conforme se envelhece, as razões que unem um casal mudam. A comunhão das almas, portanto, é o que permanece fazendo de duas vidas uma só. ”
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Segunda-feira... Desceu do metrô na Liberdade e, enquanto caminhava, refletiu: “A única certeza que tinha é de que seria abandonada um dia. Mais cedo ou mais tarde, o amor acaba e a pessoa amada — seja quem for — começa a se movimentar em direcção de algo que a apaixone novamente. A gente aprende, da pior maneira possível, que amar nunca é o bastante... Com o tempo, ou sufoca o outro ou extenua a si. Não há medida certa para amar, não há receita. ” Andava cansada, havia dormido muito pouco.
Ela entrou na lanchonete e pediu um café puro e duplo, interrompendo o fluxo de seus pensamentos.  Enquanto sorvia o amargo, demorou-se a ler as letras garrafais do jornal popular anunciando uma tragédia anônima: ESPOSA MATA O MARIDO ENQUANTO DORMIA E APÓS SE MATA. Abaixo, em letras miúdas, os detalhes se alongavam à curiosidade malsã de quem passasse. Reparou na data: 23 de outubro de 2017. Era o jornal do dia. Ela engoliu em seco. Não sabia o porquê, mas relatos como aquele mexiam com ela. O amor lhe parecia um dispositivo antiautossuficiência que desde os primórdios fazia com que o ser humano fosse capaz de grandes actos de renúncia, mas também de terríveis crimes. Discordava, porém, do senso comum que diferencia amor de paixão, dando ao primeiro aspectos positivos idealistas e, ao segundo, apenas sensualismo e destempero... Arbitrário negar à homicida que mata o esposo, após lhe ter sido devotada por anos, que o tenha feito por “amor”. A ideia de que quem ama não mata, a despeito de seu forte apelo legalista, não encontra lastro na realidade dos factos. Quantos bilhetes suicidas não elegem o amor (ou a falta d’ele) como o principal motivo para se pôr fim à própria vida? — No final ela própria, a protagonista d’essa história, escreverá um bilhete suicida...
Reconheça-se não ser muito convencional revelar ao leitor o desfecho da narrativa logo à primeira página (como se algo além do costume impedisse o leitor de ler tal desfecho quando bem quiser...). Mas, talvez, seja mais honesto não iludir àquele que se coloca diante d’estas letras com a inverdade de que elas lhe servirão de entretenimento. Oh não! O que se pretende aqui é conduzir o leitor pela espiral de sentimentos que redunda no referido bilhete suicida.... Tal como a realidade faz com os intensa e sinceramente amorosos, este ajuntamento de escritos se debruça sobre a história d’uma heroína do amor, cujo idealismo é impiedosamente testado pelas circunstâncias. Na verdade, deixa-se ao leitor ainda um motivo para consultar as últimas linhas antes de alcançá-las pela leitura contínua: Ela tenta morrer d’amor se matando, mas, será que de facto morreu? Sigamos com a narrativa:
Ela — chamava-se Tereza — pensava em semelhantes coisas sentimentais enquanto se aproximava do trabalho. Era uma mulher de trinta e poucos anos, morena jambo de olhos e cabelos escuros. Vestira-se com certo apuro n’aquela manhã, preocupada com uma reunião marcada para depois do almoço, envergando um conjunto azul marinho em linho. Apesar da complexidade das pautas, sentia-se bem com as ideias que deveria defender. Tinha bons argumentos, embora previsse certa tensão no desenrolar da reunião. Mas, como sempre, nenhuma grande decisão seria tomada e todos sairiam d’ali ansiosos pelo fim de tarde n’algum bar da moda. Ou senão como ela, correndo para pegar as filhas na creche. Sim, Tereza tinha duas meninas e, sim, estava casada há mais de dez anos. Portanto, nada de bares n’aquela sexta-feira. A razão de seu sentimentalismo era bem clara para si: Após meses de distanciamento, ela e o marido — um quase artista em crise de meia-idade — finalmente tiveram relações e, por mais que implorasse por isso há meses, após o acto ela não chegou sequer perto de se satisfazer.
Desconfiava que o marido — chamado Afonso — havia se tornado um ser assexual, exclusivamente devotado à sua arte. Com efeito, ele era artista plástico e mantinha um estúdio no Brás. Contrariado, contudo, por não viver só de arte, culpava inconscientemente Tereza por ter-de gravitar em torno d’aquela família que ela o convidou a formar há tantos anos. Tereza, obviamente, estava apaixonada então. Hoje... Quanto a Afonso, mal disfarçava o tédio que a rotina familiar lhe causava. Fazia de tudo para evitar qualquer intimidade, sempre aventando desculpas e mal-estares para seu desinteresse. Tereza parecia explodir por dentro com sua sexualidade reprimida e sua solidão. Sabia-se uma mulher atraente e tinha plena ciência de sua capacidade intelectual para discorrer sobre qualquer assunto com qualquer pessoa. Leitora voraz e debatedora de talento, eclipsava o marido introspectivo em qualquer ambiente que frequentassem.
Mas Afonso, embora fosse um artista frustrado, tinha certo brilho quando falava de sua obra, não deixando de ter sua pequena-mas-fiel roda de admiradores e, sobretudo, admiradoras... Evidente que Tereza se enciumava, mas prevalecia a culpa de desviar Afonso de sua realização, arrastando-o ao vínculo familiar. Acabou se acostumando àquele assédio circunstancial e lhe fazia vistas grossas. Cuidadosa que era, porém, aproximava-se individualmente de todos que frequentassem o círculo d’ele e lhes sondava as motivações, desencorajando qualquer aproximação indevida. No fundo, Tereza não temia a infidelidade em si, mas sim que Afonso se apaixonasse e a deixasse. Ainda que ele fosse visivelmente infeliz.
Não obstante, eram ambos bons pai e mãe, fazendo das filhas, por anos, o único assunto de real interesse comum: As meninas... A primeira, Luna, de cinco anos, apenas um ano mais velha que a outra, Letícia. Passadas as angústias da primeira infância — com as vacinas, febres, insônias e birras — finamente começavam a focar na educação das meninas e em tornar os programas em família mais didáticos.
Afonso compreendia a importância de se estimular a imaginação do universo infantil, mas, por via de regra, não curtia estar ali. Já Tereza encontrara na maternidade a realização mais plena de seus impulsos amorosos: Sim, Luna e Letícia eram os seus verdadeiros amores, seu amor perfeito. Jamais se sentia tão amada quanto como mãe de dois seres que pareciam competir em lhe expressar amor e admiração ilimitados. Havia tão íntima compreensão entre elas que Afonso sentia-se quase intruso n’aquele território feminil que se tornara a casa d’eles. De tão amorosas, as meninas simplesmente adoeciam de saudade da mãe nas raras vezes em que teve Tereza de se ausentar viajando a trabalho. Como mãe, mais do que como mulher, Tereza amava e era amada.
N’aquela manhã em que encontramos Tereza chegando ao trabalho imersa em pensamentos, ela já havia dirigido até a Zona Leste e deixado as meninas na casa de sua mãe, que as aprontaria e levaria mais tarde à creche. Só depois deixava o carro com o marido e pegava o metrô. No caminho, Tereza ainda recordava em lampejos a relação inócua que tivera com Afonso e se perguntava até quando aquele acordo mudo de insatisfeitos iria durar... Tinha certeza de que, se ele não tinha um caso, logo teria. Aquilo parecia uma fatalidade, algo fadado a acontecer como que predito por algum oráculo esquecido. Suspeitava...
O escritório em que trabalhava era na Liberdade mesmo, uma firma de seguros de médio porte. No trabalho, era outra pessoa. Séria, eficiente, circunspecta... Tinha uma leveza para lidar com questões cabulosas que desarmava qualquer arauto de más notícias. Focava na solução, nunca na gravidade do problema. Nunca se alterava. Nunca transparecia estar com o d’ela na reta. Gerente administrativa, Tereza atravessou seguidas diretorias, embora fosse preterida pelos colegas quando tinha oportunidade de ser promovida. Gostava de seu lugar no mundo e não se importava em permanecer onde estava. Ao contrário, acreditava com isso ter mais tempo e liberdade para estar com suas filhas. Mais responsabilidades significariam mais viagens... Por enquanto ao menos, ela não estava a fim.
Chegando em casa, Tereza conferiu as faturas a vencer enquanto as meninas corriam para o café da tarde. N’esse ínterim, Afonso lhe manda uma mensagem lacônica sobre se demorar na rua. “Sei!” — Pensou Tereza quase em voz alta — mas, voltando-se para as meninas, perguntava-lhes sobre o dia que tiveram e quanto fizeram. Após o café, mandou-as para o banho para que, após, fizessem os deveres. Ela as ajudava e depois preparava uma janta leve. Mais tarde, ela ou Afonso as punha para dormir. N’aquela noite, porém, nada no marido chegar...
Já passava das 23hs... Tereza se sentou no sofá e ficou zapeando a TV até parar sobre uma espécie de relato mais dramático n’algum canal evangélico. Era um homem e uma mulher — Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller — muito jovens e bem vestidos, contando receitas conjugais que chamavam de “os casamentos blindados contra os ataques do Inimigo”. E, com uma riqueza absurda de detalhes, despejavam sobre ela — a expectadora desavisada — histórias com as quais forçosamente ela se identificava.
Tanto o esposo quanto a esposa eram pastores evangélicos e ambos competiam na tela da TV em relatar desgraças da vida conjugal antes da conversão, bem como das graças obtidas após. Marcou Tereza particularmente o relato do pastor — este, um verdadeiro comunicador... — sobre um esposo sobre cujo tédio da vida a dois o havia empurrado a tal ponto para longe da família que, após abandonar a mulher, passara mais de cinco anos separado, entregue à promiscuidade e ao vício. Um sinal de alerta se acendeu em sua face ruborizada... Tereza ligou para Afonso, mas ele não atendeu. Deixou uma mensagem para que ligasse assim que pudesse.
Tereza, agora interessada, continuou assistindo o programa. O relato da pastora — uma mulher loira, de olhos claros e muito elegante — sobre a esposa do entediado foi-lhe ainda mais devastador: A mulher ficou depressiva com a separação, pensando seguidas vezes em suicídio. Quando o marido, então separado, vinha com outras mulheres à sua casa para saírem com seus filhos, sua humilhação era tamanha que mais de uma vez teve ímpeto de matar o marido, as crianças e se matar em seguida! — Tereza gelou lembrando-se da capa do jornal que havia visto na lanchonete... — A pobre mulher não suportava a ideia de que o outro poderia ser feliz enquanto ela, que lhe havia devotado os anos de sua juventude, parecia mais e mais imersa n’uma atmosfera escura e triste. A separação se prolongou por anos e ambos tiveram relacionamentos curtos com outras pessoas sem conseguirem, no entanto, construir relações profundas e realmente íntimas. Em última análise, não permitiam que os novos parceiros se aproximassem além de certo ponto, por mais que ansiassem recomeçar suas vidas. Tereza, que já havia anteriormente se separado de Afonso por alguns meses e teve o desprazer de vivenciar situações semelhantes, identificou-se plenamente com o relato da TV.
No bloco seguinte, o casal de pastores conclui sua narrativa com um grande final feliz: Após um grande esforço de reconciliação e superação do passado, o casal do relato buscou restaurar-se em Cristo e, com o apoio do livro OS CASAMENTOS BLINDADOS, os dois conseguiram finalmente se perdoar. Mas mais do que a reconciliação, a vivência religiosa lhes ensinou a proteger o casamento das armadilhas quotidianas da vida a dois — Tereza, mesmerizada, acompanhava os conselhos com máxima atenção — ao que o casal de pastores alternava do tom confessional do testemunho para a assertividade típica da autoajuda: Sim, eles tinham a solução definitiva para os problemas conjugais onde, pela fé em Deus e a ajuda da igreja (uma denominação cristã neopentecostal), prometiam salvar qualquer casamento. Tereza ficou convencida de que ela e Afonso poderiam ser transformados por aquele casal de pastores e seu livro. Anotou os contatos do programa e pesquisou na web enquanto Afonso se demorava na rua.
Quando finalmente chegou em casa, passava das quatro da madrugada... Estava tão tarde que era cedo! Afonso parecia um fantasma saído das sombras: Visivelmente culpado, respondia com monossílabos vagos às perguntas de Tereza. Ela, todavia, não insistiu muito. Sabia que não havia nada de bom n’aquela demora e confrontar Afonso apenas lhe daria a desculpa de que precisava para uma nova separação. Decidiu ser prudente como a pastora orientava no programa, isto é, evitar sempre o embate direto que levará ao rompimento. Se ele teve uma noitada, cabia a ela se valer do seu sentimento de culpa diante da família ao invés de colocá-lo na defensiva para, acuado, abandonar de vez a relação.
No dia seguinte, sábado de manhã, acordaram mais tarde. Ela preparou um café da manhã mais variado e chamou Afonso e as meninas para comerem juntos. Ele ficou claramente embaraçado com a alegria das meninas e a boa vontade de Tereza: Nada de questionar a noite anterior ou discutir a relação... Passaram quase duas horas tomando café, n’uma preguiça infindável, prazenteira. Simplesmente era bom estar em casa e, vagamente, fazer planos para passeios à tarde e no dia seguinte. Afonso começou a sentir realmente mal e pediu para conversar com Tereza em particular. Ela lhe respondeu que esperasse mais tarde, pois, deviam se arrumar para sair com as meninas. Ele se demorou no banho e quando terminou de se vestir, as três já o esperavam.
Almoçaram na rua e passaram a tarde no Ibirapuera com um piquenique improvisado, enquanto as meninas corriam lá e cá. Tereza, malandramente, não dava oportunidade para Afonso ficar a sós com ela e começar a tal conversa que ele ansiava em ter. No parque, conversavam com outros pais enquanto ficavam de olho nas meninas, sempre as chamando para beber algo ou saírem um pouco do sol. Afonso começou a se desligar do que o incomodava e se interessou pela conversa fiada com os outros pais ali presentes. A tarde caiu tranquila e luminosa, enquanto eles arrumavam as coisas para irem embora. Um dia bom como há muito não tinham.
Já no carro, Tereza propõe a Afonso e às meninas que parassem no Central Plaza, na Tamanduateí, para que ela pudesse ir a uma livraria. Afonso, que odiava longas compras em shoppings, retrucou imediatamente, mas foi voto vencido diante do entusiasmo das meninas. Com efeito, Tereza atravessou o shopping com eles e foi direto para a livraria procurar o livro anunciado no tal programa que assistira, enquanto Afonso e as meninas se entretinham na seção de livros infantis. Comprados os livros, Afonso reparou no título que Tereza escolhera – OS CASAMENTOS BLINDADOS — e não pode se furtar a um comentário mordaz:
— “Lendo autoajuda agora?” — Ao que Tereza respondeu com o máximo de sinceridade:
— “Ouvi falar sobre esse livro e achei que nós dois devêssemos ler”. — Ele ficou intrigado, pois, sabia que Tereza sempre desdenhou terapias e tratava com cepticismo discursos religiosos, sobretudo neopentecostais.
No campo religioso, Tereza nutria simpatias pelo espiritismo e lia compulsivamente romances psicografados. Afonso era um perfeito cínico acerca de religiões. A seu ver, todas competiam para proclamar verdades que não podiam provar. Ter uma religião, portanto, era-lhe algo funcional, ou seja, ajudava a educar os filhos em torno d’um sistema moral socialmente aceite ou mesmo construir relações comunitárias. Ele entrava em qualquer templo, sem nenhum preconceito, e participava das celebrações com atenção. Fora das casas de oração, todavia, tinha pelo fenômeno religioso um olhar mais estético-cultural que existencial.
O casal não tinha rotina de leituras bíblicas ou orações, de modo que Afonso ficou muito intrigado quando percebeu Tereza lendo aquele o livro enquanto se preparavam para dormir. Sem embargo, Afonso insistiu na conversa que precisava ter com Tereza:
— “Querida, a gente precisa conversar. Aconteceu uma coisa ontem à noite...” — Ela olhou para ele já antevendo uma confissão. Adiantou-se:
— “Também queria conversar contigo, Afonso. Penso que precisamos “blindar” nosso casamento” — Ao que ele atalhou, surpreendido:
— “Quê!” — E ela continuou:
— “Sim, impedir que coisas ou pessoas agridam nossa relação, destruindo-a!” — Desorientado, ele perguntou a primeira coisa que lhe veio à cabeça:
— “Desde quando ficaste religiosa?” — E ela:
— “Não se trata apenas de religião, sim de nós dois.” — De repente, Afonso percebeu ali a saída perfeita para sua situação, afinal, a conversão ou coisa que o valha de Tereza lhe permitia cinicamente superar a crise do casamento sem maiores explicações.
Era evidente que Tereza queria continuar com aquela relação a qualquer custo. Da parte d’ele, Afonso, não havia o menor problema em encenar o tal casamento blindado, haja vista que se separassem novamente o grande perdedor seria ele, com o ônus de sair de casa e manter o padrão de vida das meninas enquanto seus finais de semana se tornavam exclusivamente infantis. Aliás, mesmo nas eventuais escapulidas com outras mulheres, estar casado era a desculpa perfeita para não se aprofundar em relação alguma... Afonso olhou para Tereza e disse com a cara mais lavada do mundo:
— “Meu amor, que coisa maravilhosa!” — Ela sorriu e continuou:
— “Precisamos mudar algumas coisas em nossa rotina, mas o mais importante e a gentileza um para com o outro” — ou seja, actuar o tempo todo, pensou consigo Afonso, que lhe disse:
— “Sim, querida, tens razão. Tivemos um dia perfeito hoje com as meninas.” — E ela:
— “Qual! Não foi? A gente precisa evitar situações de conflito e praticar a tolerância.” — Ao que Afonso assentiu:
— “Pois é, ver as necessidades do outro é o melhor jeito de se evitar discussões. Assim que terminares o livro, deixa para mim. ” — E interrompendo a frase n’um bocejo:
— “Boa noite, querida” — Tereza apenas concluiu:
— “Vais gostar do livro. Boa noite!” — E foram dormir.
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Apesar de Tereza só o ter conhecido em 2017, OS CASAMENTOS BLINDADOS havia sido publicado dois anos antes. Era o primeiro livro do casal de pastores Carlos Vinícius e Júlia, ambos muito jovens, mas já famosos no meio evangélico pela militância que exerceram acerca do chamado “namoro casto”, antes de se casarem. Gaúcha, além de formada em Teologia pelo Seminário Luterano Concórdia, a pastora havia se graduado e Psicologia na USP, tendo actuado como terapeuta de casais por três anos. Reunindo sua experiência com o trabalho pastoral, os dois elaboraram aquele verdadeiro compêndio de receitas amorosas.  Por fim, Júlia passou a pregar sermões sobre felicidade conjugal junto com o marido na igreja neopentecostal em que exerciam ministério. Carlos Vinícius, de seu lado, era filho de pastor e estudara Comunicação na Mackenzie de Higienópolis.
O livro reunia dicas comportamentais que prometiam não apenas melhorar o relacionamento, mas ainda restaurá-lo na vivência compartilhada do Evangelho. A ideia alcançara tamanho sucesso que quase imediatamente foram procurados por redes de TV ligadas a igrejas evangélicas, sendo convidados para entrevistas e participações especiais. Jovens, simpáticos e comunicativos, chamaram a atenção d’uma produtora que gravou uma versão audiovisual do livro para um canal no YOUTUBE, cujo conteúdo reunido resultou n’um DVD que também teve boas vendas. 
O passo seguinte foi o programa da TV que Tereza assistiu na madrugada em que esperava por Afonso. Apresentado apenas pelo casal de pastores, os quadros tinham formato semelhante aos vídeos-capítulos do DVD, mas agora dramatizações de casos de pessoas que se corresponderam com o casal, dando seu depoimento pessoal. Esses relatos “baseados em factos reais” tinham grande apelo. Tereza, que não era evangélica, ficou fascinada pela desenvoltura com os pastores abordavam os temas mais difíceis. Era um programa agradável de assistir, com conteúdo relevante e apresentado por pessoas cativantes. Virou fã do casal.
Voltando ao livro especificamente, tão logo chegou do shopping com o exemplar que comprara, Tereza leu os primeiros capítulos. Era uma leitura fácil, fluida e, não raro, muito emocionante. Júlia e Carlos escreveram o livro à quatro mãos, mas percebia-se que a alma do livro era feminina. Os conselhos amorosos e as dicas de comportamento sempre tinham um carácter assertivo, buscando a responsabilidade pessoal de cada sujeito na relação. Era importante, segundo o livro, procurar agir ao invés de reagir. Enquanto as acções pressupõem cálculo e controle, as reacções são carregadas de emotividade. Tereza percebia que apenas assim não se vive ao acaso, ao contrário, se toma as rédeas da própria vida. Se quisesse que seu casamento com Afonso desse certo, era preciso parar de reclamar e começar a fazer as coisas acontecerem. 
Ela leu as últimas páginas e fechou o livro, embevecida: “Não tinha a perder se tentasse com Afonso. O próprio casal de pastores era uma prova viva da eficácia d’aquelas receitas”. Abraçou o livro contra o peito como se abraçasse um velho amigo cuja sabedoria lhe revelasse a saída que fora incapaz de ver sozinha.
Quando deu por si, Tereza, mesmerizada pelos olhos verdes da pastora na fotografia da capa, concluiu em voz alta:
“Linda, culta e bem casada... Papai do Céu caprichou n’essa menina!” E largou o livro sobre a cômoda para Afonso ler mais tarde.

CAPÍTULO 2
“O amor nos põe em caminhada, nos mobiliza para agir em favor d’aqueles que amamos. Aquele que ama se reveste da armadura de combate e ergue a espada da vitória. Uma vez conscientes que o amar não é esperar pela mudança do outro, sim a motivação para nossa própria mudança, nós passamos a assumir activamente nosso papel n’esse bom combate que é o quotidiano de nossas famílias.”
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Domingo à noite, foram ao culto evangélico na tal igreja dos pastores do livro: Um enorme templo que ocupava quase um quarteirão na Avenida do Estado, ainda na Mooca. Funcionava lá, além do salão dos cultos, a sede d’uma denominação cristã neopentecostal presente em todas as grandes cidades do país. Havia, além de escritórios e salas de aula, dois estúdios de gravação onde os programas da TV eram produzidos.
Afonso, empertigado n’uma camisa social, pensava que havia se safado d’uma boa: “Se Paris valeu uma missa para o rei Henri, o que é um culto na actual conjuntura?” — e sorria de mãos dadas com as meninas.
Já Tereza, ela estava radiante, toda sorrisos e gentilezas. Pouco antes da celebração, junto ao palco do auditório, ela conseguiu se aproximar do casal de pastores e lhes cobriu de elogios, declarando-se grande fã. Acostumados àquele tipo de abordagem, eles agradeceram, colocando-se como meros instrumentos de Deus. Pr. Carlos Vinícius, solícito, resumiu:
— “Graças a Deus, o livro que eu e Júlia escrevemos se revelara um caminho de salvação mediante o casamento cristão”. — E, abraçando a pastora, concluiu. — “Este foi o carisma que Jesus nos confiou em sua igreja”. Ao que Pra. Júlia interveio em seguida:
— “É certamente um belo carisma, mas, a cada dia, o Espírito nos inspira a fazer d’esse chamado a ajudar as pessoas a restaurarem seus casamentos uma caminhada de fé mais ampla ainda. Espero que você encontre aqui o que está buscando para si e sua família”. — Tereza respondeu encantada com os dois:
— “Eu e Afonso começamos hoje uma longa caminhada de fé para mudar o rumo de nosso casamento”. — O casal de pastores assentiu e os abençoou com uma rápida imposição de mãos. A pobre mulher saiu d’ali emocionada.
Particularmente, impressionara lhe ao longo do dia o modo como a pastora Júlia acolhia às pessoas. A religiosa tinha sempre uma palavra de apoio, escutando todos com atenção. O pastor, por outro lado, repetia frases feitas genéricas nas quais Tereza não via muito sentido.
Afonso, que mal abrira a boca o tempo todo, só pensava no cínico rei Henri e nas liberdades que passava a adquirir com aquela encenação. Com efeito, segundo o que lera n’aquele apanhado de receitas conjugais, poderia ele inventar algum passatempo insuspeito como tantos conhecidos seus faziam e evitar mesmo aquelas vindas semanais ao culto. Tereza, às voltas com esses pastores, o deixaria em paz para viver como solteiro-embora-casado, que era o melhor de dois mundos. Uma vez por mês ele se fantasiaria de pai cristão e acompanharia a esposa em seu ideal de casamento blindado. No mais, qualquer oportunidade de farra com os amigos passaria a ser tolerada dentro dos limites do portentoso livro de autoajuda que agora norteava a sua vida conjugal. Enfim, as preces que jamais fizera pareciam ter sido ouvidas.
Para os dois, tudo parecia ir de bom a melhor: Bastava seguir o tal livro e usar as lições do casal de pastores a seu favor. Quanto à Tereza, Afonso compreendia seu esforço em manter o casamento e a respeitava como mãe de suas filhas, mas estava cansado de ser infeliz. Se ela achava que a solução dos problemas e era se negar a enxergá-los, que podia ele fazer? Desconfiava, afinal, que o tal “blindar” do livro vinha do inglês “blind” e não de “blindagem”. Sim, aquela autoajuda era um enorme autoengano.
O culto se alongou até as 21hs. O casal de pastores atraiu bastante atenção da assembleia anunciando nos próximos meses uma viagem missionária ao Sudão do Sul. Após um rápido resumo sobre a situação desesperadora do país, o casal exortou a todos que elevassem as mãos e orassem sobre eles diante d’aquele grande desafio que Deus colocava para suas vidas. Júlia contou sobre o grande sofrimento que os cristãos da região atravessaram ao longo do século passado em conflito com os muçulmanos do Norte até a independência definitiva do país, em 2011: — “É dever dos cristãos do mundo inteiro”— dizia ela — “contribuírem com a construção d’essa jovem nação da África Oriental. Pretendemos n’essa viagem, eu e Carlos, conhecermos o país e, junto com as agências da ONU que actuam na região, formatar o modelo mais adequado de missão pastoral e humanitária para as comunidades sul-sudanesas” — e o pastor Carlos concluiu:
— “Reconheço que somos, eu e minha esposa, pessoas ainda pouco capacitadas diante d’um desafio tão grande no estrangeiro. Mas eu acredito n’um Deus que não escolhe apenas capacitados, mas sim capacita os escolhidos. Tenho convicção de que sua mão segura nos guiará pela África para sermos presença d’Ele e de sua igreja, levando o Evangelho às nações. Amém”?! — E a assembleia irrompeu n’um “amém” uníssono, ovacionando o casal de pastores por alguns minutos.
Após aquele culto, Tereza mudou progressivamente sua rotina: Livrou-se dos romances psicografados e passou a ler a Bíblia diariamente. Embora não assimilasse muito do legalismo do Velho Testamento, entendia tudo vagamente como licença poética de Deus para explicar que o bom é bom mesmo.
Ler a Bíblia, entendia ela, era uma forma de entrar em conexão com a vontade que ela acreditava ser a de Deus, isto é, curar seu coração para que ela pudesse ser uma boa esposa e mãe ainda melhor. Sim, arrefecer o ardor de sua sexualidade insatisfeita pelo distante Afonso, enquanto sua afetividade se derramava abundantemente sobre as filhas, providencialmente protegidas das contradições d’esse mundo pagão. Já não fizera tantas renúncias em nome da maternidade? Aquela era apenas mais uma! Mas, acima de tudo, deixava-se seduzir pela ideia de ordem cósmica que o cristianismo neopentecostal lhe propiciava:
— “Sim!” — Professava uma cheia de Tereza para sua família — “Os fiéis, em Cristo, são protegidos do mal e se tornam resilientes às dificuldades da vida...” — Ao que pensava consigo Afonso: “Seria uma beleza se não fosse outra inverdade.” Mas calava-se diante dos arroubos piedosos de sua esposa, tolerante: — “Afinal, como perguntou Pilatos a Jesus, o que é verdade?” — e não a incomodava.
A vida transcorreu assim nos meses seguintes, com Afonso e suas farras esporádicas compensadas pela presença nos momentos em família e Tereza cada vez mais convencida de estar vivendo uma batalha espiritual na qual ela e os seus combatem do lado do bem. O envolvimento de Tereza na igreja do casal de pastores era cada vez mais intenso, conciliando o trabalho com sua vida de oração. Já não sentia falta de sexo ou cobrava atenção de Afonso, mas arrastava-o consigo sempre que podia para os cultos. Para sua surpresa ele não costumava a se opor, embora não tivesse qualquer ímpeto cristão fora do templo. Ele continuou sua vida entre o trabalho e o estúdio, agora com novos amigos que lhe ocupavam os finais de semana. — “Reparando bem” — contemporizava Tereza consigo mesma — “nem mesmo casal de pastores vinha a todos os cultos...” Com efeito, mais de uma vez Tereza compareceu ao culto aos domingos e não os viu pregando juntos: Um vinha e o outro era justificado como em outro lugar. Sem embargo, após o anuncio da viagem missionária ao exterior — na qual ficariam meses ausentes — casais fiéis e outros pastores eram chamados para substituí-los nas celebrações.
Com efeito, após alguns meses na igreja, a própria Tereza foi convocada a subir ao palco do salão de cultos com Afonso e as meninas para contar sua história de resgate do casamento em crise. Microfone em punho, Tereza dava seu testemunho de restauração entusiasmada, enquanto um Afonso quase caricatural apenas assentia e balbuciava amém a cada exortação da esposa. As crianças, lindinhas, davam o toque final àquele quadro tocante que era o casamento blindado perfeitamente constituído e celebrado. Ao final da fala de Tereza, a família fora ovacionada com emoção pela assembleia durante minutos, como se a realização da obra de Deus na vida das pessoas fosse um milagre em si mesmo. Tereza se sentiu especial por aquela partilha e considerou que a possibilidade de ajudar outras famílias como ela própria viu sua família ser ajudada valia qualquer sacrifício, qualquer renúncia, qualquer tolerância.
Após a celebração, a pastora Júlia pediu que chamassem Tereza para conversarem antes d’ela ir embora com a família. Elas se encontraram no escritório da igreja, em meio a funcionários e assistentes. Júlia a recebeu com um abraço e disse:
— “Obrigada por ter vindo agora, Tereza, não vou lhe reter por muito tempo”. — Ao que a outra respondeu:
— “Imagine, pastora, posso me demorar um pouco hoje.” — Júlia a observou atentamente e afinal lhe disse:
— “O que vou lhe pedir é algo que tenho amadurecido há algum tempo, Tereza. Na verdade, é um pedido. É algo que não gostaria de confiar senão a alguém como você, entusiasmada e determinada.” — ao que Tereza rebateu:
— “Muito obrigada, pastora. Tudo o que faço, faço por amor e com amor.” — Júlia, afinal, fez seu convite:
— “Como é sabido de todos, eu e Carlos viajaremos – primeiro ao Egito e, em seguida, ao Sudão – para d’ali conhecermos o Sudão do Sul. É uma ausência mais longa para podermos elaborar um plano de evangelização em comunidades d’aquele país. Por isso, tenho delegado os projetos que iniciei na igreja e gostaria muito de contar com você para assumir a coordenação d’um grupo de mulheres aqui. Trata-se d’um grupo que acolhe mulheres vítimas de violência familiar, muitas sequer são evangélicas.” — Reclinando-se sobre Tereza, começou a falar mais baixo, por causa do entra e sai de gente no escritório:
— “Para ser franca, Tereza, pensei em você por causa do seu entusiasmo, mas, sobretudo, por ser nova na igreja. Talvez por isso, vejo que você não tem os preconceitos que evangélicas mais antigas acabam desenvolvendo em relação às estas mulheres.” — Tereza escutava em silêncio. A pastora continuou:
— “São mulheres em situação de risco.” — Disse-lhe Júlia — “Algumas são ou foram prostitutas; outras, viciadas. A maioria tem filhos e foi agredida pelo companheiro. Enfim, pessoas que precisam se sentir acolhidas e, em geral, só encontram julgamento” — e concluiu — “Preciso de uma mulher como você, solidária e de mente aberta, que lhes ofereça empatia. O grupo se reúne, durante a escola dominical das suas meninas. Você aceita?” — Perguntou, afinal, encarando-a. Tereza arregalou os olhos e respondeu:
— “Eu não sei consigo, pastora. Eu vejo o que senhora faz nos cultos e grupos... Eu não sei falar como a senhora! Eu não tenho esse dom de aconselhar que a senhora tem”. — Ao que Júlia atalhou:
— “Nunca tive dom algum, Tereza. A vontade de ajudar é que me sempre me moveu a conhecer e a fazer mais.” — Tereza ainda resistia:
— “Mas, e se eu não souber o que dizer? E se eu escutar pessoas e simplesmente eu não for capaz de orientar?” — Ao que Julia respondeu:
— “Quando as palavras se mostrarem inúteis, ofereça um abraço. Não temos-de ter respostas para tudo, mas precisamos nos fazer presença. É como você com suas filhas: Nem sempre acerta, mas ama sempre! A melhor medida é o amor. ” Tereza olhou nos olhos de Júlia... Ela lhe passava uma segurança imensa. Mesmo se sentindo despreparada, ela teve fé:
“Sim, pastora, eu vou tentar”. Emocionadas, as duas se abraçaram. Júlia lhe confessou suas inseguranças também:
— “Sabe, Tereza, estou iniciando algo que provavelmente é muito maior do que eu n’essa viagem. Assim como você diante d’esse grupo de apoio, eu não me sinto minimamente preparada para o que pode vir. Eu sei que muita coisa simplesmente vai dar errado. Dá medo, de tudo...” — Júlia a olhou nos olhos e começou a lhe falar ainda mais baixinho:
— “Vou te contar uma coisa que aconteceu comigo quando comecei a atender como terapeuta: Eu fui para uma clínica que atendia pessoas muito ricas onde se primava, sobretudo, pela discrição. Atendi um jovem com depressão severa, crônica, que tentava sem sucesso se recuperar d’uma desilusão amorosa... Ele havia se envolvido com uma mulher mais velha e ela o manipulara por meses até se cansar d’ele. O coitado acabou criando uma relação de dependência com essa pessoa que, deliberadamente, lhe fazia muito mal. Eu o ouvia por horas, duas vezes por semana, e após alguns meses ele parecia melhorar. Mas, para minha surpresa, sua melhora aparente não se deveu ao tratamento, mas a mim!...” — Tereza não se conteve:
— “Qual o quê!” — A pastora continuou com seu relato:
— “Sim, isso mesmo: Ele passou a dizer que estava apaixonado por mim e que precisávamos ficar juntos. Assim, pensava ele, esqueceria a outra de vez, pois eu o compreendia. Minha reacção foi de negar-me a continuar a atendê-lo... Mesmo sem corresponder, não seria ético! Ele ficou ainda pior quando parei de vê-lo e, dias depois, fomos avisados na clínica que ele se matara...” — Tereza soltou sem ver, interrompendo-a, outra interjeição:
— “Meu Deus!” — E Júlia respirou fundo para concluir:
— “Ninguém nunca soube por que ele fez isso.” — Júlia mudou de tom — “Tereza, isso foi terrível para mim, mas eu tive de seguir em frente. Desde então, tenho muito medo de não conseguir ajudar alguém, mas tenho ainda mais de sequer tentar.” — E concluiu:
— “Eu lhe contei essa história para que você saiba que não é sua culpa se alguém não melhorar com o grupo de apoio. Simplesmente algumas não melhoram... Algumas d’essas mulheres têm feridas profundas demais. Não é por isso, porém, que não devamos cuidar umas das outras.” — Júlia não conseguia mais falar. Tereza tampouco.
Emocionadas, as duas se abraçaram e choraram juntas.

CAPÍTULO 3
“Aquele que Deus nos cofiou para amar precisa ser feliz. É dever de quem ama entender as necessidades do outro e lhe permitir encontrar os meios para que construa essa felicidade, apoiando-o. Esposas, conversem sempre com seus maridos sobre o lhes falta e o apoiem em seus projetos; esposos, busquem em seus corações a verdade sobre suas frustrações. “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Era manhã de domingo. Afonso voltava do pedal pela ciclovia da Avenida do Estado quando passou em frente do espalhafatoso templo neopentecostal que Tereza havia começado a frequentar com as há alguns meses meninas. Era um velho cinema reformado para abrigar o amplo salão de cultos, escritórios e a produtora de vídeos da igreja. Sua fachada reluzia em granito escuro e vidro temperado espelhado. Não fosse a logomarca da igreja, passaria facilmente como um prédio comercial. — “Elas devem estar lá dentro ainda” — pensou em voz alta Afonso. Teria ainda parte da tarde livre enquanto Tereza e as meninas almoçavam nas imediações para depois irem para casa. Voltariam à noite, ele inclusive, para o culto com Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia, o casal blindado da TV.
Afonso não confessava nenhuma religião, mas acreditava em Deus. Entendia que Tereza havia encontrado uma resposta que ele mesmo jamais procurara. Decidira mudar de vida e se submeter àquele programa terapêutico mal disfarçado de cristianismo que aqueles pastores pregavam. Embora considerasse Tereza uma mulher muito inteligente, tinha para si que ela abraçara com um ardor desesperado, tanto o livro quanto a igreja d’aquele casal midiático, como se fosse uma tábua de salvação. 
Afonso voltou a pedalar... Mas, ao invés de voltar para o apartamento d’eles no Ipiranga, deu uma esticada até o Shopping perto da estação Tamanduateí. Acorrentou a bicicleta e zanzou pelos corredores procurando um lugar para comer. Com o fechamento d’uma loja âncora, aquele shopping perdera muito movimento e mesmo sendo domingo ainda não havia tanta gente circulando. Comeu sanduíche natural e suco de maracujá bem gelado. Estava com fome, pois saíra bem cedo para pedalar.
Pegou o celular e mandou algumas mensagens. Passados alguns minutos, Afonso se levantou e foi ao banheiro coletivo da extremidade do shopping. Sondou os reservados em pensou “Vai rolar”. Foi até o mictório e começou a urinar. Seu pênis estava meia-bomba e ele salivava... Logo, parou um cara de meia idade ao seu lado e, manjando sua rola, pediu para pegar. Afonso sorriu e perguntou — “Só pegar?” — O outro o chamou para o reservado mais afastado e se fecharam juntos. Afonso baixou a calça de ciclismo e o desconhecido começou a lhe sugar o sexo freneticamente. O pênis logo endureceu na boca do sujeito e Afonso começou a foçar até chegar na garganta d’ele. Este engasgava, tirava o pênis da boca, cuspia e continuava a mamada sem dizer nada. Pouco antes de ejacular Afonso avisou e o outro e eles pararam. Afonso abaixou a calça do outro e começou a roçar seu pênis no d’ele, apertando os dois juntos com a mão. Olhou em seus olhos: era um homem calvo, um pouco moreno e com barba bem-feita. Usava aliança e tinha um olhar guloso e safado. Afonso o beijou na boca. Viraram-se na direcção da privada e passaram a se punhetar enquanto se beijavam até ejacularem sobre a água do vaso. Limparam-se com o papel higiênico e se recompuseram o melhor possível. O calvo saiu primeiro e deixou a porta fechada. Afonso esperou uns cinco minutos no reservado e, enfim, saiu. O banheiro estava vazio e, aparentemente, ninguém havia visto ou ouvido nada.
Tudo isso durou apenas dez minutos, com o mínimo de rumor possível. Afonso voltou para a praça de alimentação e marcou outro encontro no banheiro do shopping usando o aplicativo do celular. Em menos de meia hora, a cena se repetia com uma ou outra variação: A idade aparente do parceiro, a diversidade das carícias, a presença de outras pessoas no banheiro... Aquilo tinha até nome, era o “banheirão”, isto é, uma prática sexual promíscua e casual popular entre homens que transam com homens. A maioria não se considerava gay, ao contrário, eram homens casados e com filhos, tal como ele próprio.
Embora jamais tivesse ficado com homens quando moço, após completar quarenta anos Afonso começou a sentir um sentimento de urgência hedonista intenso. Estava casado há mais de dez anos com Tereza e já haviam tentado se separar antes. Mas a separação conseguira ser muito pior que o casamento. Fora muito doloroso ver Tereza saindo com outros homens e percebia ter sentimentos conflitantes em relação a ela, mesmo estando separados. Depois de meses tentando superar e partir para outra, pedira para voltar e, voltando, foi muito bom ter novamente a convivência diária com as meninas. Em última análise, a vida de descasado era uma merda: Sozinho no estúdio, praticamente não fazia refeições quentes. Tudo era provisório, improvisado. Sua rotina era caótica, bebendo quase todos os dias para nos finais de semana ter de dividir com as meninas aquele antro que mais parecia um quarto de solteiro que um lar. Embora volta e meia se envolvesse com alguém, eram relacionamentos sempre assombrados pela presença da Tereza. Seguidas vezes suas eventuais parceiras acabaram percebendo que a relação não avançava porque Afonso parecia contar com o perdão da ex-mulher e voltar para casa. Desistiam da relação mal iniciada e, logo após, lá estava ele vagando pela noite paulistana de novo. Botecos, bares, inferninhos, puteiros... Rodava pela cidade apenas para não ficar insone no estúdio. Todas as mulheres que conhecia, ele comparava mentalmente com Tereza e, por via de regra, lhe pareciam menos interessantes. Transara muito durante a separação, mas apenas com mulheres. Afonso não sentia atração por homens, fossem afeminados ou não. Sempre reparou em mulheres na rua, mas jamais manjara rola em banheiro, logo, não conseguia ver a si como gay. Tinha certeza que jamais conseguiria ter uma relação estável ou manter sentimentos mais profundos com outro homem. Na sua cabeça, aquilo era apenas putaria, pouco diferente de sexo solitário. 
Havia começado a se encontrar em banheiros públicos com homens recentemente e por acaso. Afonso saiu do estúdio tarde n’uma sexta e ao invés de ir para casa foi tomar cerveja n’um bar da moda. Mandou uma mensagem para Tereza avisando que chegaria tarde e ligou o botão do FODA-SE. Lá pelas tantas, a bexiga encheu e ele foi ao banheiro do barzinho. Encontrou um homem e uma mulher se beijando. Ele viu e continuou em direção ao mictório. O casal parou de se beijar e perguntou se Afonso queria participar. Relutante, pois nunca havia ficado com um homem, se deixou levar pela aventura da coisa. Quando viu, estava correspondendo aos beijos do rapaz que, aliás, se depilava. Afonso achou tudo aquilo muito louco, mas curtiu. Era seu primeiro ménage na vida. Saíram d’ali e foram para um motel. Afonso sabia que chegaria muito tarde em casa, mas não podia perder aquela oportunidade. Já na suíte, a coisa explodiu. Afonso fez de tudo com o casal e curtiu muito ser penetrado.
A novidade de ficar com um homem era uma coisa inexplicável. Enquanto fazer sexo com Tereza era previsível e chato, tudo ali era intenso. Há tempos Afonso não tinha ereções e ejaculações tão intensas. Depois da foda, despediu-se do casal e voltou para seu apartamento muito confuso... Será que era gay? Não podia negar que gostara mais de ficar com ele que com ela durante o ménage. Chegou de madrugada e Tereza ainda estava acordada na sala. Quando pensou que ela iria recriminá-lo por ter saído sozinho, ela, ao contrário o tratou com extrema gentileza. No dia seguinte, o chamou para passear com as meninas e nada de perguntar pela noitada. Veio com aquela história de casamento blindado e lhe deu o livro de presente. De facto, tudo aquilo parecia um presente dos céus!...
Passaram-se algumas semanas e o tesão bateu mais forte. Afonso pesquisou sobre aplicativos de encontros e encontrou alguns para homens. Começou a usar e não parou mais... Sentiu, todavia, que precisava cuidar mais da aparência e, depois de tentar uma coisa ou outra, optou pela bicicleta. Juntou-se a um grupo de homens casados que pedalava pelas avenidas e parques das redondezas nas manhãs de domingo e os apresentou à Tereza: Estava em boa companhia. Mas aquele lance depois do pedal de ir ao shopping e marcar encontros era a melhor parte do seu dia. Apesar de conhecer aos poucos muita gente d’esse meio, jamais se interessava por ninguém a ponto de querer sair de novo, afinal, rola era rola!...
Com o tempo, sexo entre homens no banheirão tornou-se uma coisa quase sinestésica para Afonso... O ambiente do banheiro passou a deixá-lo excitado mesmo quando ia apenas para urinar! Mais d’uma vez se trancou no reservado sozinho só para se punhetar enquanto aplacava aquele tesão súbito e sem sentido. Mas, quando rolava o banheirão, era muito melhor: Sexo entre homens tinha cheiro de urina, sangue, gala e merda... Aliás, o toque masculino desnorteava Afonso, tamanho o prazer que sentia, à flor da pele, com suores e pelos roçando. A mão de outro homem em seu pênis era algo viril e lascivo ao mesmo tempo... Era tenso, arriscado, urgente e, sobretudo, nunca era igual. Tudo muito simples e prático, quase sem conversa. Apenas dois caras estranhos se pegando para um e outro gozarem.
Afonso, porém, respeitava as regras do banheirão. Nunca se deixava penetrar, mesmo com camisinha, n’um reservado. Deixava que lhe fizessem sexo oral, mas raramente fazia. Beijar na boca, só se o cara parecesse se cuidar. No mais, punhetava geral e até dedava o ânus quando o outro curtia. Em alguns banheiros, grupos de aplicativo chegavam a subornar o zelador para pôr a placa de interditado e ninguém mais entrar. Aí, eram verdadeiras surubas onde todo mundo comia todo mundo. Afonso participara duas vezes e se deixara penetrar com camisinha. Foi a primeira vez na vida que ejaculou sem sequer encostar a mão no pênis... Um gozo muito, muito forte.
Tornou-se um verdadeiro entusiasta do sexo anal — sobretudo do troca-troca, alterando-se entre activo e passivo com o mesmo parceiro — ao perceber que mesmo um pênis médio como d’ele parecia enorme espremido n’um ânus apertado. Mesmo bem lubrificados, era uma penetração diferente, mais forte, mais difícil. Exigia cuidados, porém, e Afonso se acostumou a fazer a própria limpeza com chuca e frequentar o médico para prevenir fissuras e verrugas, mesmo sem ser penetrado na maioria das vezes. Quando estava a fim, marcava no motel, não no banheirão. 
De resto, sexo entre homens, no banheirão, era algo assustadoramente fácil, porque, diferente das mulheres, homens só queriam gozar. Não precisavam estar no clima ou envolvidos pelo parceiro. Boa aparência sempre ajudava, mas não era algo determinante. Ademais, era gratuito: As pessoas faziam porque queriam, não porque precisavam. Ninguém machucava ou iludia ninguém. Eram apenas homens disponíveis para um encontro humano de cinco, dez minutos. Só isso. Saíam d’ali e podiam nunca mais se verem. Não trocavam nada além de carícias, pois, ambos sabiam que do lado de fora as esposas os esperavam com as crianças para compras intermináveis...
Já havia ficado com três caras n’aquela tarde no shopping quando, cansado de gozar, Afonso decidiu ir se encontrar com Tereza e as meninas em casa. 
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Enquanto Afonso se refestelava no shopping, Tereza acompanhava as mulheres no grupo de apoio da igreja. Cerca de vinte pessoas entre dezoito e quarenta anos se reuniam n’uma das salas do prédio da Av. do Estado e, orientadas por Tereza, trocavam experiências e aconselhamentos. Começavam o encontro com um café da manhã. As que tinham filhos os traziam consigo e, durante a reunião, os deixavam com monitores da igreja na sala ao lado. Somente após se alimentarem e deixarem os filhos brincando as mulheres se punham em roda e Tereza fazia uma breve oração. Todas se sentavam e, uma por uma, contavam suas histórias. A dinâmica do grupo era que as outras só poderiam fazer comentários na sua vez de falar. Hoje, quem iria começar falando era Clarice. Muito magra, parecia ter no máximo vinte e dois anos:
— “Bem... Eu sou casada e tenho três filhos.” — Falou enquanto amamentava um bebê — “A mais nova é essa aqui. Tem seis meses. Eu estou aqui porque não consigo parar de sentir raiva. Faz duas semanas que meu marido me deu na cara... Sim, na cara!... É a segunda vez. Na primeira, eu reagi. Mas, quanto mais eu reagia, mais eu apanhava. Ele me deixou moída de pancada! D’essa vez eu nem reagi, mas deixou vergões do meu rosto. Eu fiquei calada. Dia seguinte, era meu amor p’ra lá e meu amor p’ra... E meu rosto vermelho que nem pimentão. Mas o pior é vê-lo impune... É ele fazer isso comigo e não dar nada p’ra ele. Isso doía mais do que a pancada: Ele posando de bom pai; esposo amoroso, cristão e tal. A minha vontade era contar p’ra todo mundo o que ele fez; mostrar quem ele era de verdade. Passou semana, o vergão sumiu e ele me levou à igreja: Ele era só “Paz do Senhor!” e “Aleluia”... Um anjo no templo e demônio em casa! Era p’ra raiva passar, mas não passou. Minha vontade era esperá-lo dormir, ferver um litro d’água e pôr n’um funil bem na orelha d’ele. — Ela parecia estar vivendo a cena que relatava... E continuou:
— “Desgraçado!... Queria vê-lo morrer estrebuchando na cama, de cabeça assada. Depois, eu pegava o revólver que ele usa para se sentir homem na rua e dava dois tiros na fuça d’ele. D’aí eu podia até morrer. Eu pegava a arma e dava um tiro no ouvido, só para nunca mais ver esse infeliz. Agressor de mulher... Homem de merda! ” — Clarice desatou a chorar — “Eu só não faço isso por causa dos meus filhos. Coitados! Tão novos; tão inocentes... —  A pastora resolveu intervir pegando o bebê do seu colo:
— “Clarice, vem beber um copo d’água. Você precisa tomar ar...” — As duas se levantaram e foram até a copa; Tereza assumiu a reunião e disse:
— “É sempre difícil presenciar a violência; os efeitos devastadores que deixa na vida das pessoas. Mas a gente sabe que o primeiro passo para curar um coração é ser capaz de falar sobre o que está nos corroendo — como ninguém falasse, Tereza resolveu se abrir com elas:
— “Eu nunca apanhei, mas sempre vivi com medo de ser abandonada. Minha mãe viu meu pai ir embora e sempre me disse para eu não gostar de ninguém, senão teria o coração partido. Ela me dizia que era a pior dor do mundo gostar tanto d’uma pessoa que nos faz mal. A gente começa a se destruir por dentro! Adoece, entristece, azeda... Vai definhando em vida, feita uma ameixa murcha. Eu olho para minha mãe e fico com medo de ficar igual a ela. Talvez por isso eu não consiga deixar meu marido ir embora. Eu sei que ele é infeliz, mesmo que esconda de mim o motivo. Foi por isso que vim para a igreja e conheci a pastora Júlia. — Tereza conseguiu finalmente levantar os olhos e encarar as outras mulheres... Elas acompanhavam o que dizia. Tereza prosseguiu:
— “Eu não tenho muito a oferecer a vocês. Tudo o que posso fazer é lhes ouvir e torcer para isso cure suas feridas. Histórias como esse devaneio homicida de Clarice sempre me assustaram, porque tenho medo de que essas histórias se tornem a minha história... Eu me esforço demais! Eu quero demais que meu casamento dê certo... No fundo, morro de medo de, a qualquer momento, ele ir embora como meu pai foi. ” — Quando levantou os olhos novamente, Tereza viu que Júlia e Clarice já haviam voltado. Júlia resolveu falar:
— “Gente, a coisa mais preciosa que nós temos é nossa humanidade. A violência e a raiva nos tornam capazes de monstruosidades; nos desumaniza. — Voltando-se para Clarice — “Tu, minha querida, és preciosa aos olhos de Deus. Essa raiva que estás sentindo é tua e eu não vou te dizer que não a deves sentir. Quem sou eu para saber? O que sei é que isso é igual um veneno que bebes esperando que o outro morra... Não, Clarice, quem morre és tu! Mesmo no teu sonho: És tu que morres no final! Para os teus filhos fica a obra d’um demônio. Só tu podes dizer não a este demônio. Teu marido vai encontrar um dia a violência que tanto procura, mas que não seja de ti” — depois, para Tereza:
— “E tu, minha flor, ama sem medo. É melhor ter o coração partido que viver sem amor. Esse medo que tens de ser abandonada faz de ti semelhante ao vigia d’um preso: No final das contas, ambos estão na cadeia, mas aquele, mesmo sendo livre, pensa que deve permanecer ali. É melhor deixar quem amamos livre para partir. Se ele ficar, é porque quer. — Tereza olhou para ela contendo a custo as lágrimas. Já Clarice, desatou a chorar.
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Nessas reuniões, Tereza procurava se vestir mais casual e não usava maquiagem. Escutava muito mais do que falava — apenas o necessário para que alguém mais tímida se abrisse — respeitando quando não queriam falar. Júlia lhe explicara que em grupos como aquele o mais importante era as pessoas verbalizarem seus sentimentos. As histórias que contavam, verdadeiras ou nem tanto, eram apenas um canal para que a emoção pudesse aflorar em gestos, palavras e olhares. Nas primeiras reuniões, inclusive, Júlia acompanhara Tereza e lhe orientara sobre as mulheres que acompanhava já há algum tempo:
— “Embora a frequência d’elas fosse bastante irregular” — dizia a pastora — “Era importante que se sentissem bem e que poderiam vir quando quisessem. Não podia ser encarado como um curso ou programa cujo resultado pudesse ser quantificado. Era, sobretudo, um processo interior. Muitas melhoravam; outras, não.”. E advertia;
— “Jamais se sinta responsável pelas escolhas d’essas mulheres” — Dizia ainda Júlia — “Muitas vão voltar para os companheiros e continuar sendo agredidas. Algumas vão sumir por um tempo e voltar pior: Cobertas de hematomas... O objetivo não é salvá-las de seus agressores, sim lhes dar segurança para que consigam a viver sem eles. ” — Tereza um dia questionou:
— “Por que, ao invés de estimulá-las a romper com os maridos, não tentamos lhes ajudar a restaurar seus casamentos, blindando-os?” — Ao que a pastora reconheceu:
— “Acompanhando essas mulheres e ouvindo suas experiências eu me dei conta que nem todo casamento pode ser sustentado apenas pela fé em Deus” — e continuou — “Pode parecer estranho eu, uma religiosa, dizer algo assim, mas muitas d’essas mulheres tentaram salvar seus casamentos e redundou em algo pior: Submissão pura e simples...  Há casamentos que não são caminho de salvação, sim estradas ínvias de sofrimento. Quando se lida com a liberdade humana, a fé até pode nos motivar a fazer grandes renúncias, mas jamais a mudar mentalidades. Não considero santa uma relação onde o marido se sinta no direito de punir sua mulher, física ou psiquicamente, ainda que a Bíblia o oriente a fazê-lo. — Tereza insistiu:
— “Então, nem todo casamento pode ser restaurado?” — Júlia lhe respondeu:
— “Muitos casamentos jamais deveriam ter existido, Tereza...” — e concluiu — “As receitas de vida a dois que estão no livro são para casais que decidem, juntos, mudar de vida. Não se pode ajudar quem não pede ajuda. No caso d’essas mulheres agredidas, seus maridos e companheiros. “
Júlia e Tereza se encontraram n’aquele grupo por dois meses até a pastora viajar para o Egito, conforme planejado. Tereza agora fazia o melhor que podia para não deixar o grupo acabar, embora se sentisse profundamente impactada pelas histórias que ouvia. Eram mulheres vítimas de exploração, agressão e abuso sexual. Muitas não tinham como se manter e continuavam morando com seus algozes, tendo autorização apenas para irem à igreja. Relatavam um quotidiano de tensões, no qual se esforçavam muito para evitar conflitos e, sobretudo, a incompreensão dos filhos. Muitos se revoltavam com a passividade das mães e se tornavam, também eles, tão agressivos quanto os pais. Era um círculo vicioso de raiva gerando raiva no qual as mulheres se viam envolvidas. E, no princípio de tudo isso, um amor terrível que levara essas mulheres ao sofrimento como uma constante em suas vidas. Movidas pelo desejo de serem amadas e constituírem sua família, suportavam o insuportável. “Como ajudá-las?” — perguntava-se Tereza enquanto as acolhia com um sorriso e uma xícara de café.
Sua admiração por Júlia, inobstante, apenas crescia. À primeira vista, a pastora lhe parecera mais um ideal de mulher moderna que uma pessoa comum. Pessoa pública, estava sempre cercada de olhares e admiração. N’aquele grupo de mulheres, porém, era uma terapeuta e uma amiga. Desdizia quase tudo o que escrevera no OS CASAMENTOS BLINDADOS, orientando às mulheres a entender seu sofrimento e o que poderiam fazer para terem vidas melhores, o que, invariavelmente, levava ao questionamento da própria relação que levavam ou levaram. Começava a perceber que, muito do que aconselhava às mulheres, devia ela, Tereza, aconselhar a si mesma...

CAPÍTULO 4
“Quando você se sentir sozinho ou sozinha, coloque-se diante de Deus. Ofereça-lhe suas incompreensões e dúvidas. A sexualidade, embora seja um presente de Deus para nossos relacionamentos, deve ser orientada como um gesto de amor. De facto, o que entregamos ao cônjuge, por amor, é o nosso carinho mais profundo; nossa carícia mais íntima. “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Júlia acordou em São Paulo. Eram 8hs. Ali, da sacada do seu apartamento, o Sudão parecia um sonho. Abriu a geladeira e se serviu um copo de suco de laranja enquanto o café e as torradas ficavam prontos. Levou tudo para a sacada e tomou seu café da manhã sozinha. Às 9hs, de tailleur e salto alto, olhou-se demoradamente no espelho após se maquiar. Por fim, soltou n’um suspiro: — “Quem é essa d’aí? ” —  e deu um sorriso forçado que lhe pareceu uma careta. 
Não estava nada bem. Sentia ansiosa, exausta, confusa... Tinha medo de sair de casa e evitava encontrar as pessoas fora do trabalho. Passava a maior parte só tempo sozinha em casa, com o telefone desligado. Às vezes lia um pouco, mas não conseguia se interessar pelas histórias dos outros quando ela própria tinha uma história mal-acabada dentro de si. Pela primeira vez na vida, teve medo. Não apenas o medo de morrer ou de fracassar n’um projeto. Era algo mais profundo, difícil de dizer em voz alta, mesmo sozinha no escuro. Definitivamente, o Sudão a havia mudado. Não via mais sentido em ser a mulher da capa do livro ao lado do pastor. — “Carlos...” — novo suspiro, mas d’essa vez conseguiu verbalizar algo do que sentia — “Quando foi que deixamos de ser um casal e nos tornamos um negócio?...” — D’essa vez sequer tentou sorrir. Sentia uma tristeza desmedida diante de si mesma no espelho. Mas não podia se demorar ali: Era domingo e a esperavam na igreja.
Havia duas semanas que voltara ao Brasil, vinda de Lübeck, sem conseguir superar essa sensação de esgotamento nervoso. Sonhava que ainda estava no Sudão, vagando com Leilah por cidades poeirentas... Andara um mês de burca e sandália, entrando e saindo de vans, pelas estradas de Khartoum até Malakal... No posto da ONU, já no Sudão do Sul, fora vestida como refugiada, com jaleco silcado e tudo... Somente em Kampala, horas antes de embarcar para Congonhas, pôde passar n’um bazar e comprar uma muda de roupas ocidentais para viajar. Chegara exausta, mas só faltou beijar o chão do Brasil... Emocionara-se como poucas vezes na vida. No saguão do aeroporto, além de sua mãe e seu pai, vieram pastores e missionários da igreja estes últimos já se preparando para ir para o Sudão... e ainda o grupo de apoio só de mulheres da igreja com faixa de boas-vindas e tudo mais! Tereza, a quem pedira para acompanhar o grupo na sua ausência, era uma das mais animadas. Apesar de tudo, era muito bom estar em casa e sentir o carinho das pessoas. Ver aqueles rostos — senão amigos, amigáveis... — a fazia tentar continuar. Adiara ao máximo o retorno às suas actividades na igreja ao ponto de Carlos Vinícius, na Alemanha, cobrar sua presença nos cultos do templo da Mooca. — “Não te esqueças” — dissera ontem mesmo pelo SKIPE — “que temos uma missão para cumprir no Sudão! É preciso que voltes logo trazendo missionários e dinheiro.” — ao que Júlia concordava, sem a mínima convicção.
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Tereza acordou cedo n’aquele mesmo domingo e foi fazer o café. As meninas ainda dormiam e Afonso já havia saído com os amigos de pedal. Saltava aos olhos o quanto seu marido havia remoçado seguindo aquele curioso grupo de homens de meia idade em roupas colantes e bicicletas caras. Perdera peso e adoptara hábitos saudáveis. Era outro homem: Mais bem-disposto e mais atencioso até. Enquanto ela passava a manhã na igreja com as meninas, ele e seus amigos cumpririam algum percurso quilométrico orgulhosamente postado nas redes sociais. Despois da igreja ela iria almoçar com as meninas n’algum shopping e assistiriam ao filme infantil que estivesse em cartaz. Mais tarde, se encontrariam em casa para juntos seguirem para a igreja e participarem do culto mais concorrido, à noite. Há meses eles se revezavam com outros casais na condução dos cultos de domingo — aqueles voltados para a cura e libertação de casais — E n’aquela noite o testemunho seria de Afonso. Ela e as meninas se arrumaram com ainda mais cuidado, usando roupas compradas n’aquela mesma tarde no shopping para a ocasião especial. Tudo tinha de ser perfeito.
Chegando à igreja, após deixar as meninas na escola dominical, encontrou com a pastora Júlia na sala multimeios que costumava usar para os encontros com o grupo de mulheres. Como não haveria encontro, n’aquele domingo, não era para ela estar ali; a pastora tampouco. Parecia estar se escondendo. Tereza se aproximou:
— “Está tudo bem, pastora?” — Júlia a olhou deu um sorriso apagado:
— “Querida, eu gostaria que estivesse, mas não. Não está.” — Tereza ainda indagou:
— “Posso ficar aqui com você? ” — a jovem assentiu — “Sim, claro. Apenas receio não ser uma boa companhia. ” — a outra atalhou:
— “Pastora, por que você está aqui sozinha? Aconteceu algo? Posso lhe ajudar?” — Júlia a olhou nos olhos e começou a chorar em silêncio... Ela simplesmente não conseguia falar! Queria muito, queria desabafar, mas não podia. Aos poucos foi se acalmando e por fim lhe disse:
— “Sim, Tereza, há algo que pode se fazer por mim: Fale! Eu não consigo ainda falar do que sinto, mas eu preciso ouvir os outros e saber que não estou sozinha. Pode lhe parecer estranho, mas lhe ouvindo falar eu talvez consiga falar”. — Tereza compreendeu que ela não se sentia segura para falar e tentou lhe passar confiança:
— “Sabe, pastora, as mulheres que se reúnem no grupo, aqui mesmo, confidenciam coisas muito íntimas na fé de que, por amor em Cristo, não serão julgadas, sim acolhidas.” — e continuou — “Quem sou eu para lhe dar conselhos, pastora?... Mas se posso oferecer algum para a senhora, é justo o que você me deu um dia: Quando as palavras se mostrarem inúteis, ofereça um abraço.” — ao que Júlia lhe respondeu:
— “Por favor, Tereza, abraça-me...” — Elas se abraçaram. Mas, enquanto se abraçavam, Júlia irrompeu n’um pranto desesperado. Tereza apenas a amparou, sem mais perguntas.
Já passava de meio-dia quando se lembraram de pegar as meninas na saída da escola dominical. Tereza iria almoçar com as meninas n’algum shopping, mas Júlia as convidou para comerem juntas, ali mesmo nos escritórios da igreja. Tereza percebeu que Júlia não queria ficar sozinha e consentiu. Pediram comida chinesa e passaram a tarde juntas, entretidas umas com as outras. Júlia sentava com as filhas de Tereza e brincava de adivinhações, pedra-papel-tesoura, esconde-esconde... Uma farra! Lá pelas 16hs, porém, Tereza teve de se despedir de Júlia. Mais tarde, ela e as meninas se encontrariam em casa com Afonso para juntos seguirem para a igreja e participarem do culto mais concorrido, à noite. Há meses eles se revezavam com outros casais na condução dos cultos de domingo —  voltados para a cura e libertação de casais —  e n’aquela noite o testemunho seria de Afonso. Tereza arrumou as meninas com ainda mais cuidado. Tudo tinha de ser perfeito.
Tereza voltou para a igreja às 19hs, d’essa vez com o marido, para o culto em que Afonso daria seu testemunho de casamento restaurado. Afonso tomou o microfone e fez um longo elogio à Tereza. Salientou a mãe dedicada e a mulher companheira que ela era, destacando o papel d’ela na cura do casamento d’eles. Ele admitia que jamais fora religioso, embora tivesse muito respeito por todos que buscavam a Deus de coração sincero. Todavia, reconheceu que com o passar dos anos ele, sobretudo, se sentia infeliz. Não era culpa de Tereza ou mesmo sua, era apenas o desgaste dos anos e a falta de um ideal maior para a própria vida. N’esse momento ele parou, tomou as mãos de Tereza e, beijando-as, disse olhando para ela;
 — “Obrigado, querida, por não ter desistido de mim! Obrigado por não ter perdido a fé em nós dois! Obrigado por me mostrar o plano de Deus em nossas vidas!” — E a assembleia irrompeu em palmas exaltadas enquanto Tereza, com a maquiagem a escorrer pela face, sorria jubilosa com tamanha e dir-se-ia até sincera homenagem de Afonso. Ela tomou o microfone e, agradecendo o carinho de todos, pediu que continuassem orando por sua família tal como ela orava pela as famílias de todos ali.
Tereza foi para a “Sala das Pastoras” — uma espécie de camarim onde as celebrantes se preparavam antes dos cultos — Precisava se recompor para acompanhar a pastora na celebração do culto. Com efeito, apenas Júlia se encontrava ali quando ela entrou. A pastora estava impecável, como sempre, vestida com um conjunto de tailleur e saia jacquard bem claro. Era uma mulher muito elegante, alta e magra e estava maquiada sobriamente. Tinha quase trinta anos, mas ainda sem filhos e, após a viagem missionária que ela e o marido realizaram, ela voltara para manter a liderança da igreja e enviar recursos para a missão onde o marido lidava com toda sorte de problemas. Pelo volume financeiro e complexidade das questões jurídicas que atravessavam com a internacionalização das actividades pastorais, seu papel era cada vez mais de executiva que líder religiosa.
— “Tereza!” — Disse a pastora — “Que bom lhe ver! Precisava mesmo falar com você.” — Ao que Tereza, ainda emocionada com o testemunho de Afonso e com o carinho da igreja, respondeu:
— “Qual o quê, querida!... Só não repare o meu estado. Foi demais para mim agora há pouco.” — E a pastora, gracejando, concordou:
— “Pois é, que coisa linda vocês dois!”. Tereza assentiu:
— “Qual! Afonso foi muito fofo! E a igreja... — a pastora arregalando os olhos a interrompeu:
— “Sim, foi maravilhoso.” — Tereza lhe sorria novamente enquanto as lágrimas teimavam em continuar lhe descendo o rosto. Estava muito emocionada! Acabou abraçando a pastora n’um ímpeto desajeitado para esconder seu rosto e poder chorar à vontade. Aquele contacto inesperado foi desconcertante para a pastora. Um frêmito lhes percorreu o corpo e ela tremeu como se houvesse recebido uma descarga elétrica. Tereza agora chorava copiosamente em seu ombro, totalmente entregue aos transportes de emoção que sentia. A pastora se preocupava em reagir de modo adequado, mas o ardor do contacto físico a deixou paralisada: Simplesmente não conseguia mover um músculo!
A contragosto, Júlia percebe sexual aquela emoção. As pernas lhe faltavam enquanto os bicos dos seios, eriçados, saltavam na camiseta de seda sob o tailleur. Enquanto Tereza se demorava em seu pranto, uma verdadeira onda nervosa tomava conta da pastora. Sozinhas n’aquela sala, a pastora percebia uma ocasião de intimidade feminina que não esperava ter com Tereza.
N’aqueles dias difíceis do retorno ao Brasil, somente com ela a pastora percebia-se à vontade. Tereza falava com tal entusiasmo do grupo de mulheres que Júlia, sem que se desse por si, se sentira atraída. Desejava ter Tereza sempre por perto e se falavam diariamente desde que voltara.
Confessara à Tereza, inclusive, o quanto se sentia solitária e pressionada em manter sozinha o trabalho pastoral d’uma instituição que se tornava cada vez mais complexa. Todos dias havia um incêndio para se apagar, dentro e fora do país e ela, a pastora, era a única cuja responsabilidade administrativa era plena nos negócios da igreja. Júlia, com menos de trinta anos, tinha clareza do que era a solidão do poder. Desconfiava de tudo e de todos, sobretudo dos colaboradores da igreja, percebendo conspirações em cada canto do templo. O próprio marido, com o qual dividira essa carga absurda por anos, lhe advertira quando lhe enviou de volta ao país que não confiasse em ninguém. Segundo Carlos Vinícius, movimentos muito suspeitos se iniciaram na igreja tão logo se ausentaram. A volta da pastora fora sobretudo uma acção para reforçar a autoridade d’eles na instituição e para manter o fluxo de dinheiro para a missão planejada.
— “Tereza...” — repetiu a pastora para que ela a olhasse — “Tereza, preciso lhe falar.” — Ao que esta, tentando se recompor, a abraçou ainda mais apertado, arrancando um suspiro da pastora... Confusa e abalada, a pastora correspondeu demoradamente ao abraço de Tereza, mas com tanta força como se quisesse fundir seu corpo ao d’ela. Quando finalmente se desvencilharam, a pastora colocou suas mãos nas faces molhadas de Tereza e colou levemente seus lábios aos d’ela. Assustada, Tereza se deixou beijar pela pastora por quase um minuto. Ao que recobrando o domínio de si, afastou-a dizendo:
— “Pastora, não podemos!” — E não conseguiu dizer mais nada.
As duas mulheres se entreolharam em silêncio. Apesar de mais nova que Tereza, a Júlia aprendera a ler com clareza as pessoas. Sem que esta dissesse mais nada, percebera que a outra não esperava por aqueles contacto. Apressou-se em se desculpar:
— “Tereza, eu sinto muito por isso. Não vai se repetir...” — ao que Tereza a interrompeu sem saber bem o que dizia:
— “Pastora, é o Inimigo!” — E emendou uma confusa invectiva contra as tentações... A pastora assentiu pedindo-lhe, por fim:
— “Ora comigo, Tereza, para que possamos nos fortalecer”. — Ambas se deram as mãos e desataram em glossolalias ininteligíveis até que, batendo à porta, sua assistente as interrompeu para que a pastora viesse presidir o culto.
Ao longo do culto de cura e libertação dos casais a pastora parecia distante, quase distraída. Quanto a Tereza, reunira-se a Afonso e as meninas, ainda muito confusa com a situação. O assédio de Júlia despertara n’ela emoções que acreditava adormecidas desde que se convertera. Com efeito, seguindo os conselhos do livro do casal de pastores acerca da sexualidade, parou de se frustrar com o desinteresse de Afonso, vendo que simplesmente ele não gostava tanto quanto ela...
Ademais, observando Afonso com atenção, percebera que não podia acusá-lo de nada concreto: Ele começara a pedalar com homens de meia idade e já não saía direto do estúdio para farras noturnas. Se não transavam era porque ele não tinha vontade. Nada indicava que se encontrava com outras mulheres. Afonso parecia mais feliz com vida que tinham agora e, com o tempo, Tereza se acostumara com a falta de sexo entre eles. Profundamente realizada com as actividades na igreja, ela sublimou seus impulsos até aquela noite como algo já disciplinado pela vida de oração.
Tereza, por outro lado, jamais havia sido beijada por outra mulher. Não estava preparada para aquilo e não soube reagir àquele beijo da pastora e, sinceramente, não sabia dizer ao certo como se sentia. Sua gratidão por ela e pela igreja era imensa, de modo que a proximidade que criaram entre si ao longo d’aqueles meses as tornasse cada vez mais importantes uma para a outra. Tereza era uma das poucas pessoas em que a pastora reconhecia uma sinceridade desinteressada.
O que todos desconheciam, porém, é que ela, a pastora, buscara em Lübeck, com Carlos Vinícius, o resgate do casamento após ter se apaixonado... Por uma mulher!...
Nunca tivera por seu marido pastor uma verdadeira intimidade de casal, sempre interpretando sua falta de jeito do pastor com sua religiosidade. Afinal, desde a adolescência ambos se preservaram, militando pela virgindade antes do casamento cristão. Ao contrário do que parecia a princípio, sua visão do assunto não era conservadora, sim uma questão de equidade onde também dos homens se exigisse uma castidade compatível com os ideais cristãos. No fundo, considerava o desejo sexual uma fraqueza que conduzia à humildade, como o famoso “espinho na carne” mencionado pelo apóstolo Paulo... 
Quando mais nova Júlia realmente não compreendia porque as garotas se submetessem aos enormes riscos da sexualidade — gravidez, doenças, perda do respeito alheio e, sobretudo, a decepção dos pais — em nome de prazeres tão efêmeros. Como poucos segundos de gozo podiam justificar o resto d’uma vida de desgraças e solidão como a que percebera nas histórias de tantas desajuizadas? Considerava a falta de controle dos impulsos sexuais quase uma desinteligência que desde o início dos tempos arrastava tantas meninas fracas, como fossem mariposas voejando em roda da lâmpada...
Seu marido, o pastor, fora seu único namorado e seu único homem n’uma relação afetiva e religiosa a que se devotara desde os dezesseis anos de idade. Seguindo os seus passos na igreja evangélica, graduara-se em Teologia e, após, em Psicologia, encontrando na prática de terapia de casais o discurso que fizera a pregação dos dois juntos tão arrebatadora. Finalmente, uma mensagem evangélica conseguia chegar mesmo a pessoas sem a mínima vivência cristã, como Tereza e Afonso.
Alçados à fama pelos livros religiosos de ajuda a casais, catapultaram ao sucesso a denominação neopentecostal em que exerciam seu ministério até que Júlia decidira iniciar missões pastorais mundo afora.
Coleccionaram inúmeras conquistas até que a sensualidade se impôs sobre seu corpo como uma espécie de dolência inoportuna acompanhada pela excessiva presença d’uma tradutora que lhe serviu de voz no estrangeiro. A rotina de quartos de hotel e voos para cidades estranhas cobrou seu preço n’uma fragilidade que rapidamente se transformou em paixão. A pastora descobria nos braços d’outra mulher uma emoção profunda que tornava a solitária experiência da missão n’uma aventura de descobertas e companheirismo.
Logo, porém, prevaleceu o sentimento de culpa com a infidelidade, bem como a incoerência com a mensagem que pregava. Ninguém soubera de seu romance. Seu marido sequer desconfiara, mas ela preferiu não se arriscar mais. Sem embargo, pela primeira vez, a pastora compreendera o quanto a sexualidade era fascinante, embora perigosa, voejando ela mesma, mariposa, em torno d’uma lâmpada...

CAPÍTULO 5
“É preciso lutar para que a vida a dois não se torne a repetição infindável do mesmo dia, trazendo para a relação a mesma atenção que devotamos a nossas carreiras e lazeres. Esposo e esposa devem fazer coisas juntos, apenas os dois, no interesse de se redescobrirem os melhores amigos um do outro. “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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A semana passou sem que Tereza tirasse da cabeça o beijo da pastora. Pela primeira vez na vida, ela não sabia o que fazer. Sentia seu corpo a consumir n’um ardor sem fim. Pegou-se pesquisando sobre amor entre mulheres no serviço e, para sua surpresa, encontrou relatos muito parecidos com o que acabara de vivenciar. Ao contrário do que muitos argumentavam, não era incomum mulheres de mais de trinta anos, já casadas e com filhos, apaixonando-se por amigas ao invés de começarem casos com outros homens. Deparara-se inclusive relatos de pessoas muito religiosas, com dilemas morais semelhantes ao seu, nos quais a idealização do matrimônio cristão revelou-se sobretudo repressão de impulsos cuja realidade se esforçavam em ignorar. É como se, decepcionadas pelo caminho de felicidade prometido pela fé e pela aprovação dos pais, finalmente se permitissem aceitar uma relação na qual o prazer sexual fosse tão importante quanto a afetividade. Vencer o tabu de beijar uma pessoa do mesmo sexo era apenas o primeiro passo de muitos que essas mulheres tiveram de enfrentar até se aceitarem. Em geral, identificavam o amor entre mulheres como promiscuidade ou, pelo menos, um estilo de vida incompatível com a maternidade. Muitas salientavam exactamente isso: Durante certo tempo, ser mãe lhes fora mais importante que ser mulher, não havendo como, nas relações heterossexuais e monogâmicas que viviam, desenvolverem sexualidades plenas pelas quais ansiavam. Havia inclusive relatos de mulheres que jamais cogitaram ter relações como outras mulheres que, já na maturidade, apenas descobriram o orgasmo e mesmo o gosto por ter relações frequentes depois de se aceitarem lésbicas ou bissexuais.
Tereza, porém, ainda tinha muitas dúvidas. Certeza apenas que, o quer que fizesse, não deveria afetar às suas filhas. Portanto, separar-se estava fora de cogitação. Na verdade, ela precisava insistir com Afonso; talvez até conversar abertamente com ele sobre a sua insatisfação. Entretanto, só de pensar na possibilidade já a fazia desanimar. A relação d’eles já ficara por um fio no passado. Sabia que ele não estava disposto a mudar n’isso, pois, demonstrava uma indiferença quase absoluta sobre sexo. Muito Tereza já havia especulado a respeito: Talvez fosse trauma d’um abuso que ele se nega a comentar... Talvez fosse hormonal, uma carência orgânica que não vê sentido em pesquisar. Não sabia...
O facto é que ele não fazia nada de errado: Todas as pessoas com que mantinha contacto eram casadas e maduras como ele próprio e sob claros limites de civilidade educada. Às vezes, Tereza torcia para encontrar algum traço de atração sexual n’essas amizades, mas nunca parecia haver nada além de amizade. Afonso era curioso no trato dos amigos: Alternava períodos de proximidade e distanciamento d’um modo que Tereza não conseguia compreender. Ele parecia se cansar da presença das pessoas e simplesmente parava de querer encontrá-las... Perdera a conta do número de vezes que o vira procedendo assim.
Sem embargo, tomou uma resolução: Iria passar o próximo final de semana sozinha com Afonso. Mandaria as meninas à casa de sua mãe e cancelaria qualquer comparecimento às reuniões e cultos da igreja. Era bom, inclusive, não encontrar a pastora por enquanto, pois, não tinha ideia de como reagiria. Cada vez que lembrava d’ela ou do ocorrido, sentia-se lânguida, vulnerável.
Comunicou Afonso de seus planos e ele apenas sorriu, sem revelar o que pensava. Ele ligou para os amigos do pedal e disse que domingo de manhã não iria. Tereza preparou-se para descerem a serra e reservou pousada na Baixada, aonde tinham costume de veranear. Se Afonso não aprovou o roteiro, tampouco desaprovou: pôs a bicicleta no carro deixando claro que manteria sua rotina de pedal na praia. E assim foi.
Tereza e Afonso desceram para o litoral sábado de manhã, chegando à Praia Grande na hora do almoço. Como acordaram mais tarde e tomaram café na estrada, estavam ambos sem fome. Afonso chegou no quarto e foi se banhar, enquanto Tereza desfazia a mala e as bolsas. Terminando o banho, chamou para irem à praia. Tereza se animou. Vestiu uma saída de praia transparente por cima do biquíni e pôs um chapéu de palha. Foram a pé mesmo, só dois quarteirões.
Lá chegando, Tereza se esticou na areia enquanto Afonso entrava no mar. Ele estava muito bonito, atlético. Tereza achara tudo ótimo até se cansar de vê-lo n’água. Resolveu entrar também, apesar de ter de deixar as coisas na areia. Chamou por ele: — ”Ô Afonso! ” — E ele veio ter com ela. Estava feliz de estar ali. Tereza sorriu, embora a água estivesse fria para o seu gosto. Ele mergulhava e arriscava umas braçadas, enquanto ela começava a bater queixo. Não aguentou permanecer ali e voltou para a areia. Afonso tardava no mar feito um menino crescido. Quando veio, afinal, chamou Tereza para comerem peixe frito n’algum quiosque. Foram.
No quiosque Afonso parecia disperso. Tereza propunha assuntos, mas ele não parecia se interessar por nada. Tereza não contara a Afonso sobre o beijo da pastora e ela se sentia culpada por lhe esconder. Não tinha, porém, coragem de comentar sobre aquilo. Rendida, Tereza resolve falar das filhas:
— “É estranho estar aqui sem as meninas...” — ao que Afonso reagiu imediatamente ao gatilho:
— “Estava pensando n’isso agora: As duas adoram peixe! ” — E desandou a falar d’elas... Ali estava o velho Afonso de todos os dias. Um pai entusiasmado!...
Tereza achava graça d’essas transformações no marido. Era evidente que se sentia muito à vontade na convivência com ela, mas não permitia nenhuma intimidade. Era como se fossem um casal de irmãos que se queriam bem, mas jamais se interessando pelo outro após certo limite. Afonso era categórico sobre discutir a relação, ou melhor, em jamais discuti-la: Achava a coisa mais chata do mundo. Nem adiantava tentar... Ele começava a concordar com tudo apenas para Tereza não ter mais o que recriminar e deixá-lo logo em paz... Eram as conversas mais inúteis que poderiam ter, portanto, Tereza evitava qualquer assunto que desembocasse em cobranças ou mudanças mais profundas de vida. Ali na praia, contudo, ficava ainda mais evidente que eram um casal frio e distante, embora pacífico.
Comeram o peixe, tomaram caipirinhas e contemplaram o fim de tarde. Nem um beijo. Nem um carinho. Andavam de mãos dadas no calçadão, sem sentirem qualquer impulso de se beijarem. Tereza, para falar a verdade, já se acostumara com o jeito de Afonso, nem adiantava reclamar. Voltaram à pousada ávidos em tirar da pele o sal do mar. Tereza entrou no banho primeiro. Afonso não veio se juntar a ela durante o banho. Ela ficou decepcionada... Ela se secou e saiu do banho, apenas com a toalha nos cabelos, nua. Ele nem deu por si. Pegou sua toalha e entrou. Ela ainda pensou em invadir o banho d’ele, mas já lhe pareceu apelação. Tentaria outra coisa. Deitou-se na cama de costas, nua, e assim que ele saiu do banho pediu que lhe passasse o hidratante nas costas vermelhas. Ele o fez como se fosse uma esteticista cansada de ver bundas alheias. Tereza ficou calada o tempo todo. Se falasse, seria para chamá-lo de corno ou broxa. Conteve-se.
Afonso se vestiu dizendo que iria pedalar pela orla. Tereza respondeu que o encontraria mais tarde no mesmo quiosque. Ele saiu. Tereza, sozinha, se pega dizendo em voz alta: — “Por que eu não me surpreendo...” — e mandou uma mensagem para a pastora explicando que estava no litoral, logo, não se veriam no culto de domingo à noite. Tereza ligou a TV e pegou no sono sozinha. Sequer viu seu marido chegar.
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Dia seguinte Afonso se levantou cedo e, sem acordar Tereza, lavou o rosto, escovou os dentes e foi até a mesa de café da manhã da pousada. Pegou uma maçã e saiu para pedalar. Todos os domingos pedalava ao menos dez quilômetros. Ali, na avenida da orla, poderia fazer fácil o dobro, dez para ir; dez para voltar.
Começou a pedalar e só parou no último quiosque da orla, encostou a magrela e sentou-se à mesa. Pediu uma água de coco e olhou as horas no celular. Eram dez horas. “Uma hora e meia de pedal. Muito bom!” Pegou o celular abriu o aplicativo e postou no grupo:
Desci para a Baixada. Alguém topa um banheirão no quiosque trinta da praia das ruínas? Estou disponível por uma hora.
Não demorou nem um minuto...
Estou perto d’aí. Chego em dez minutos.
E mais outro...
Chego em trinta.
E mais.
Que pena! Até estou em Santos, mas não vai rolar hoje...
Afonso ria a valer da conversa fiada d’aqueles safados. Era um grupo somente de casados. Casados que faziam banheirão. Na Capital e na Baixada.
Antes que terminasse a água de coco, chegou um carro com o cara que estava mais perto. Ele entrou no quiosque quase vazio àquela hora, fez contacto visual com Afonso e foi para o banheiro masculino. Afonso esperou um minuto e entrou logo em seguida...
Tereza tomava seu café sozinha na pousada. Viu que a bicicleta que Afonso trouxera não estava lá e deduziu que ele fora pedalar. Ligou para a mãe e perguntou das meninas. Estavam bem.
Tereza só conseguia sentir desapontamento. Afonso e ela haviam se distanciado tanto que nem pareciam um casal. Não se beijavam, não se acariciavam... Quando se esforçavam para fazer amor, era chato, previsível.
— “Talvez sexo seja uma coisa superestimada” — soltou Tereza em voz alta, sozinha.
N’isso, o telefone tocou. Era de São Paulo, a pastora:
— “Tereza, está tudo bem? Não vieste hoje cedo ao grupo. Fiquei preocupada.” — e Tereza lhe disse:
— “Está tudo bem sim, querida. Afonso e eu descemos para a praia ontem...” — Júlia atalhou:
— “Que bom, querida. Então aproveita o dia. Desculpa atrapalhar teu passeio. ” —  Tereza lembrou do beijo e percebeu que ela queria tê-la encontrado n’aquele domingo para conversar com calma. Chegou a se arrepender de ter vindo para ser largada sozinha por Afonso. Tinha tanto a dizer a ela...
— “Pastora, obrigado por ligar. Sei o quanto é corrido aí nos domingos... Também queria muito falar com você” — Mas ela lhe interrompeu:
— “Para de me chamar de pastora, Tereza, chama-me pelo meu nome. E nada de você também!... Bom mesmo é tutear à gaúcha! ” — Tereza riu e corrigiu:
— “Sim, querida, contigo!” — E continuou — “Júlia, eu queria muito ter ido ao culto hoje. Quero muito falar contigo. Preciso, na verdade...” — Agora a pastora teve de interrompê-la — “Tereza, vou ter de desligar. Depois te ligo e marcamos algo. Beijo!” E Tereza:
— “Beijo!”
Beijo... A partir d’ali, Tereza só consegui pensar n’aquele beijo e tudo o que sentira a partir d’ele. Imaginava-se n’um beijo interminável com aquela mulher belíssima... Lutava com aquela imagem das duas juntas. Tentava pensar em Afonso, em qualquer homem. Inútil...
Resolveu ir até a praia mesmo estando sozinha.  Sua cabeça vazia lhe dava vazão apenas para investigar a vida da pastora Júlia na WEB. E como havia conteúdo... Autora de vários livros sobre comportamento e espiritualidade, após OS CASAMENTOS BLINDADOS— em coautoria com seu marido, Pr. Carlos Vinícius — figurara na lista de mais vendidos de não-ficção por dois meses!
Aliás, desde seu casamento com o pastor, ainda com vinte e dois anos, a pastora se tornou uma espécie de celebridade gospel. Firmou reputação como conselheira sentimental e, apesar da pouca experiência de vida conjugal, era famosa por suas dicas e receitas de sucesso conjugal. Costumava a pregar que o casamento era um caminho de santificação.
Tereza conhecia bem essa sua faceta... Lembrava-se dos programas que a convenceram a dar uma outra chance a seu casamento. Afonso, à sua maneira, mudara tudo para não mudar nada. Sim, à vista dos outros era outro homem: Comparecia aos cultos com ela, contava histórias bíblicas às meninas. Perdera peso, cortara a cerveja e, sobretudo, o pedal dos domingos de manhã!... Estava mais bonito, remoçado e até mais feliz. Mas, entre as quatro paredes do quarto, era como se ela, Tereza, não existisse.
E ainda tinha aquela mulher...
Tereza continuou pesquisando sobre a pastora. Achou relatos missionários d’ela sobre o Sudão do Sul. Denunciava terríveis perseguições que os cristãos sofriam na África muçulmana. Viu as fotos recentes, do início do ano, d’ela em missão: muito mais morena, de burca... Júlia palestrando a autoridades em Khartoum.
No deserto, caminhando...
Todos repararam na igreja que a pastora, após regressar do Sudão, estava muito diferente. Primeiro, porque sua imagem pública era associada à do Pr. Carlos... E ele permaneceu no exterior. Segundo, porque praticamente parara de pregar sobre relacionamentos. Seu novo carisma, decididamente, era a África.
Denunciava o genocídio da minoria cristã no pais dos dervixes. Massacres de milicianos tolerados por décadas pelo governo. Falava de direitos humanos, liberdade religiosa e, sobretudo, da necessidade de ser presença cristã no Sudão do Sul.
A maioria do seu público, porém, não se identificava com essas questões, de modo que ela pregava cada vez menos nos cultos da própria igreja, abrindo espaço para os testemunhos de casais como Tereza e Afonso.
Dir-se-ia que Afonso, lendo o livro do casal de pastores, passara a observar cada dica conjugal. Mudando a aparência, parecia antes ocultar a essência.
Tereza não sabia o que pensar... Afonso testemunhava o casamento d’eles restaurado em Cristo, mas, na intimidade, era ausente como sempre. Enquanto isso ela, Tereza, era beijada por uma pastora casada que queria ser missionária no Sudão do Sul!
E o pior: Ela retribuíra àquele beijo...
E ainda pior: Não parava de pensar n’aquele beijo...
Já era hora do almoço e nada de Afonso. Voltou para a pousada e tomou outro banho para fechar a diária do quarto. Fechou a mala, pagou tudo e foi para o carro decepcionada com a situação. Resolveu ligar para ele — “Onde estás, Afonso? Precisamos voltar para a cidade!... — E ele — “Desculpa, amor, eu encontrei um conhecido aqui no quiosque das dunas e ele só foi embora faz pouco. Perdi a noção da hora...” — e Tereza lhe respondeu — “Ah, tudo bem. Já acertei tudo aqui. Vou te pegar para subir aí a serra. “Podes ao menos tomar uma ducha e trocar de roupa quando eu chegar aí.” — Quando chegou no quiosque, Afonso bebericava uma caipirinha. Pediram uma porção para enganar a fome e pegaram a estrada. Em pouco mais de quarenta minutos estavam na Zona Leste. Quase não conversaram durante o trajeto e, sinceramente, Tereza nem se aborrecia mais com a postura de Afonso... Ele parecia feliz com o fim de semana na praia e ela tentava se sentir feliz por ele. Passaram na casa de sua mãe, pegaram as meninas e foram para o apartamento d’eles passar o resto do domingo. Foi chato. Foi normal...
- ∞ - - ∞ -
Segunda-feira, na lanchonete perto do trabalho, Tereza engolia outra xícara de café preto e duplo. Mal pregara o olho, à noite toda revirando na cama. Chegou a procurar Afonso, mas ele disse que tinha-de dormir. Normal. Para ele, o problema não era ele, sim ela, Tereza, às voltas com aquelas sensações que lhe atiçavam a libido. O beijo da pastora a despertara d’um longo período de repressão dos desejos em função da aparente assexualidade de Afonso.
Tereza jamais havia traído o esposo e muito menos beijado uma mulher. Não se sentia exatamente culpada, visto que não havia procurado por aquilo, mas não podia negar o quanto mexera com ela a carícia delicada das mãos de Júlia e, sobretudo, a ternura d’um beijo diferente de tudo que já sentira...
Óbvio que não era correto duas mulheres casadas se tocando d’aquele modo, mas seu casamento assexuado finalmente cobrava seu preço: Após anos preocupada em ser abandonada por Afonso, vigiando de perto suas amizades, era justamente ela, Tereza, quem se via inclinada viver um segredo. Nunca havia se dado conta d’aquilo, mas a relação mais discreta que poderia ter fora do casamento é justamente com outra mulher. Sobretudo, alguém que tivesse tanto a perder quanto ela própria se as coisas saíssem do controle. Não se imaginava mergulhando de cabeça n’uma aventura e acabar com um casamento que se esforçara tanto em preservar. Afinal, estava tudo bem: Afonso, as meninas, o trabalho... Sua vidinha era muito boa e tinha consciência d’isso.
Saiu d’ali e terminou de chegar ao trabalho visivelmente ruborizada. Parecia estar escrito em sua testa: “I kissed a girl and I liked it!”... Com muito custo chegou à sua sala, fugindo de olhares e cumprimentos, para começar o trabalho. Antes que ligasse o monitor, porém, recebe no celular uma mensagem da pastora chamando para almoçarem juntas... Tereza confirmou, marcando n’um restaurante mais longe do escritório. Fosse como fosse, queria não ser flagrada por algum colega.
Mas, flagrar o quê? Eram apenas duas amigas almoçando juntas. Tudo bem que jamais se vissem senão nos finais de semana, mas se falavam sempre, mesmo quando ela esteve em missão, e, após meses de convivência, soubessem tudo da vida uma da outra. Tereza ligou para Afonso e pediu que buscasse as meninas no colégio mais tarde. Como quase nunca fazia isso, não questionou. Tereza se assustava com seu próprio pragmatismo diante d’algo que jamais fizera e que, provavelmente, não daria em nada. Aquele encontro poderia ser milhões de coisas, não necessariamente românticas.
As horas passavam vagarosamente n’aquela manhã e seu trabalho simplesmente ficou sobre a mesa, intocado. Não tinha a menor capacidade de se concentrar em qualquer coisa que não fosse o seu encontro.
Decidira sair mais cedo para o almoço e acabar com aquilo o quanto antes, quase certa de que a pastora tivesse criado juízo e marcado o encontro apenas para dispensá-la. Como se arrependera de sua reação nervosa!... Aquela oração para manter as aparências... Tanta coisa para dizer e falar o óbvio? Sim, não podemos. Mas também ninguém precisa saber do que se faz entre quatro paredes! Não podia continuar se enganando: Tinha necessidade de ser tocada; de carinho; de gozar... Ardera à noite toda por causa de cinco minutos de contacto com aquela mulher. Precisava se declarar a ela nem que fosse para ouvir um redondo não.
Pensava n’isso enquanto se dirigia ao restaurante do encontro. Viera apresada pela rua chegando quase uma hora antes do marcado. Sentou-se e pediu uma água mineral. Inquieta, foi ao sanitário conferir a maquiagem. Retocou-se, penteou-se... Tirou o casaco e tornou a pôr. Voltou para mesa e pediu um vinho branco.
Quando a pastora chegou, Tereza já estava meio alta. Levantou-se para abraça-la... Júlia estava simplesmente linda n’um conjunto de linho claro que destacava sua elegância. Usava óculos escuros enormes de aros grossos que lhe vedavam a emoção dos olhos, mas destacavam seu enorme e jovial sorriso. Vinha expansiva e cumprimentou Tereza com beijinhos e tudo.
Difícil dizer qual seria a postura de Júlia diante do encontro. Tratavam-se com a naturalidade de sempre enquanto faziam o pedido. A pastora pediu vinho e depois se deu conta de que Tereza estava no meio do expediente... Desculpou-se enquanto Tereza lhe dizia que estava tudo bem, que bebessem juntas um pouco.
Júlia conduziu a conversa habilmente enquanto comiam, recordando os meses no exterior – sobretudo o Egito ­- embora evitasse falar do marido ou da igreja. Ninguém que as visse ou lhes ouvisse poderia recriminá-las do que quer que fosse: Eram duas amigas almoçando juntas.
Quando acabaram e pediram a sobremesa, Tereza finalmente não aguentou mais aquele teatro de boas maneiras e interrompeu a agradável conversação da pastora:
— “Eu preciso te falar, querida, sobre aquela noite.” — A pastora se calou e, esfíngica, a encarava por trás das lentes escuras. Tereza continuou:
— “Eu quis muito te ver hoje porque eu queria consertar as coisas entre nós. Na verdade, eu queria concluir o que te disse n’aquela noite e não tive capacidade de expressar” — parou e bebeu um pouco do vinho. A pastora continuava em silêncio, impassível. A sobremesa foi servida. Comeram em silêncio e, após duas colheradas, Tereza recomeçou intempestivamente:
— “Eu jamais havia beijado uma mulher antes e não esperava por teu beijo. Reagi d’uma maneira irrefletida, nervosa, preocupada, sobretudo, em evitar escândalo: Podíamos ser vistas, como de facto fomos, e aquilo simplesmente sairia do controle.” — Agora a pastora tomou a taça e sorveu um longo gole de vinho. Permaneceu calada, contudo. Tereza continuou:
— “Porém, não posso negar o senti. E eu preciso continuar sentindo isso: O teu beijo me despertou um ardor que me queima desde então, sem parar. Tu me beijaste e eu retribui ao te beijo. Eu não me sinto culpada. Não. Eu fiz de tudo para manter minha família e consegui. Não se trata apenas de mim ou de Afonso, trata-se de terminar de criar as meninas” — sua voz ficara emotiva n’esse ponto:
— “É evidente que Afonso é grato pelo que construímos e resgatamos. Ele está realmente mais feliz. Está bem.” — e concluiu derramando uma lágrima:
— “Mas eu não estou...” — e as lágrimas desceram livremente por seu rosto. Tereza pegou o guardanapo e secou o rosto, tentando transparecer naturalidade. Tomou mais vinho e prosseguiu:
— “Eu sou uma mulher que precisa ser tocada por alguém que se importa comigo e não aguento mais abrir mão d’isso.” — outra lágrima rolou e, de novo, Tereza se secou com o guardanapo:
— “Depois de teu beijo, d’aquele abraço apertado; do toque de tuas mãos, eu...” — Tereza parecia fazer um grande esforço para levantar os olhos para olhá-la — “Eu percebi o quanto ter isso é vital para mim. Eu simplesmente preciso de ti. ” — Conseguiu finalmente se aprumar como se tivesse tirando um grande peso das costas.
A pastora não disse nada. Apenas tirou os óculos e revelou seus enormes olhos verdes: Estavam rasos d’água...

CAPÍTULO 6
“Não se deve deixar o outro só. As decisões que envolvem a vida do casal devem ser tomadas tendo em vista a saúde do casamento, privilegiando a convivência à carreira profissional. Se um casal não compartilha aquilo que sente e vivencia, dificilmente poderá sobreviver às intempéries do relacionamento. “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Houve quem estranhasse Tereza viajar com a pastora para o Rio e passar uma semana em compromissos da igreja. Sobretudo Afonso!... Mas Tereza tinha férias vencidas e resolveu tirar duas semanas no trabalho. Ao voltar da viagem, decidiria seu futuro no escritório de seguros. No que dependesse d’ela, negociariam sua saída.
Como Luna e Letícia ainda não estavam em idade escolar, Tereza as deixou com sua mãe e justificou com Afonso ter sido um pedido da pastora para acompanhá-la, visto que — além dos cultos e cerimônias religiosas — haveria seguidas reuniões com líderes evangélicos, políticos e grupos de mídia. Haveria o lançamento d’uma edição especial dos livros de terapia de casais reunindo também artigos e publicações esparsas que o casal de pastores realizou ao longo de anos de vida pastoral e casamento consagrado.
Com efeito, era uma agenda apertada de compromissos muito importantes que Tereza, no lugar funcionários e assessores da igreja, se prontificou a assumir. Afonso questionou, meio irônico, se ela estava enxergando na igreja uma nova carreira e Tereza, muito séria, respondeu que sim.
Afonso se calou ao reconhecer que havia ali, de facto, uma grande oportunidade profissional para sua esposa, embora ela estivesse muito bem onde estava. A grande questão, insistia Afonso eram as viagens:
— “Se isso se tornar profissional, querida, esse ritmo da igreja vai exigir muito de ti.” — e continuava — “Ainda que saias do escritório para ganhar mais, resta a questão das meninas...” — ao que Tereza atalhou:
 — “Sim, Afonso, mas eu já sacrifiquei demais minha carreira por ser mãe. Preciso agora de apoio.” — e ainda frisou — “Sobretudo, o teu. “
Afonso, que só pensava na liberdade que teria com a esposa cada vez mais envolvida com a igreja, prontificou-se a lhe dar suporte com as meninas na saída da creche.
— “Se for algo bom para ti, podes contar comigo. Luna e Letícia passam essas semanas na tua mãe. Quando vocês duas voltarem do Rio, decides se ficas ou não no escritório. Da minha parte, passo a pegar as meninas no final do dia.” — Tereza agradeceu a disposição de Afonso:
— “É realmente algo que quero muito”. — Ao que Afonso assentiu:
— “Sim, eu entendo.”
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Tereza e Júlia pegaram a ponte aérea e desembarcaram no Santos Dumont. O Rio era bastante diferente para quem viajava com dinheiro... Transporte executivo, hotel confortável, bons restaurantes... Tereza não chegava a se deslumbrar, mas mesmo a trabalho era uma viagem muito agradável. A pastora ali era ainda mais profissional, cumprindo a agenda de encontros e reuniões com competência para após assumir seu papel de celebridade evangélica em cultos muito concorridos.
Como a imagem que construíram para as pessoas era d’um casal de pastores, em todos os cultos era projetado um vídeo do marido saudando à assembleia do templo em amorosos termos paulinos. O carisma do Pr. Carlos Vinícius era inegável: Um grande comunicador conduzindo importante trabalho pastoral na Europa e na África.
Terminado o vídeo, a pastora brilhava defendendo as receitas de terapia de casal iluminadas pela fé em Jesus Cristo e pela santidade do casamento cristão para resgatar àqueles que de coração puro desejavam curar suas mágoas e começar uma nova vida com o coração blindado. Ela era carinhosa e firme ao mesmo tempo, insistindo que a vontade de Deus para todos cristãos e cristãs é que se santificassem por meio do casamento. E citava desde o Gênesis:
— “Não é bom que o homem fique sozinho” — passando pelas epístolas de São Paulo — “Sem amor eu seria como um címbalo que tine...” — De modo especial, voltava-se para as mulheres:
— “Vigiai e orai, pois, não sabeis a que horas chega o Noivo” — e fazia a exegese: — “Sim, nós mulheres devemos ser prudentes, mantendo a chama de nossa fé acesa com o combustível do amor, assim como a Igreja, noiva do Senhor, espera a sua vinda! ” 
O último bloco de sua pregação era a exibição de fotos da realidade sul-sudanesa, mostrando a necessidade de se transformar a realidade de refugiados em zonas de conflito.
— “Esse trabalho pastoral” — destacava ela — “era reconhecido inclusive pela ONU, ressaltando o papel congregador das igrejas cristãs ao levar a esperança de dias melhores àqueles que perderam tudo.” — N’esse momento, bastante emocionada, exortava a todos que devolvessem a Deus um pouco de tudo que receberam, contribuindo com a missão:
— “Eu não peço por mim ou por minha igreja, pois, nossa presença lá não é como movimento cristão. Estamos lá junto com aqueles que sofrem, sujeitos à violência e à perseguição”. — e as carteiras se abriam!... E a comoção diante das crianças desvalidas, com seu olhar de urgência, desmanchava mesmo os mais cépticos, afinal, eles estavam fazendo algo de concreto!
A pastora, elegante-mas-sóbria, deixava o púlpito e caminhava d’uma extremidade à outra do palco, microfone à mão, conclamando a todos que orassem em línguas com ela para que Deus enviasse mais operários para aquela messe... E toda a assembleia irrompia em solfejos desconexos n’uma linguagem ininteligível que a pastora chamava e “suspiros inefáveis vindos do coração”. Tinha início uma grande catarse colectiva, onde homens e mulheres se emocionavam às lágrimas, desejosos da santidade que faria de suas pequenas escolhas no dia a dia grandes movimentos na construção do Reino de Deus.
Após o culto a Pra. Júlia Köller — como a celebridade que ali, de facto, era — se viu cercada por fiéis desejosos de autógrafos em seus livros ou fotos para postar nas redes sociais. Pacientemente, ela atendia a todos, deixando-lhes sempre palavras positivas e um sorriso. Acompanhando tudo discretamente, Tereza se mantinha em contacto contínuo com os organizadores do evento de modo a assegurar o sucesso de cada detalhe. Afinal, mais importante que o evento em si era sua repercussão em ambientes virtuais: Tudo minuciosamente registrado, editado, postado, curtido, comentado e compartilhado. As redes sociais tinham mais alcance que exibir o culto na TV, com seus segundos caríssimos para traços de audiência... Júlia entendia que que aquele processo de criação e propagação de conteúdo exigia um dinamismo excepcional diante do qual as igrejas cristãs tradicionais se assemelhavam a verdadeiros dinossauros no limiar da extinção. Em inícios do século XXI, a fé das pessoas havia se tornado algo muito próximo do entretenimento e o neopentecostalismo — compreendia a pastora — estava na vanguarda do cristianismo.
Cada vez mais envolvida com a rotina de eventos, Tereza assumia um papel de assessora e conselheira da pastora que a alçava à direção executiva da igreja em seu trabalho pastoral e missionário. Com efeito, trabalhava de dez a doze horas por dia, mas não estava mais confinada à rotina do escritório e às picuinhas do jogo de poder das promoções. Era amiga, assistente, membro da igreja, assessora, secretária executiva e, quando estavam a sós, amante... N’essas ocasiões, Júlia se revelava frágil e carente. Dizia-lhe que ela, Tereza, fora enviada por Deus para que pudesse superar o Sudão. Com efeito, ela tinha chegado ao seu limite após tudo o que vivera por lá. Amar Tereza, mais que um caso, fora sua salvação.
Tereza intuiu, desde o primeiro beijo que, embora o amor entre mulheres fosse novidade para si, não o era para a pastora. Ela fora muito decidida em seu assédio; muito segura do desejo e das emoções que sentia, enquanto Tereza... Sim, deduziu que a pastora já havia tido casos com mulheres antes, inclusive pela naturalidade com que a acariciava. Tereza, embora a desejasse profundamente e ansiasse por seu toque, era muito mais desajeitada que sedutora. Os brinquedos sexuais eram um capítulo à parte: Jamais Tereza se imaginara usando um dildo, um plugue ou mesmo um vibrador! A pastora lhe apresentou um universo de práticas sexuais que lhe era completamente desconhecido. Todas as noites no Rio, após os compromissos pastorais, as duas passavam horas se descobrindo. Tereza finalmente se sentia amada e desejada após anos de frieza e desencontro nas relações — não apenas com Afonso, mas mesmo com os outros homens conhecera antes de casar ou durante a separação que tiveram — Ela e Júlia se completavam com uma delicadeza lasciva que a fascinava.
As duas semanas no Rio foram um grande sucesso, em todos os aspectos. Foram doações de vulto, convites a toda sorte de eventos, aparições na mídia, ampliação das vendas de livros... Os números, atualizados dia após dia, davam conta d’uma tendência na pastoral evangélica capitaneada por aquela igreja: A força das mulheres jovens inspirando a conversão de famílias sem qualquer tradição religiosa ou mesmo avessas ao neopentacostalismo evangélico. Com efeito, homens de terno expulsando demônios de palco e exibindo relógios de ouro em carros importados faziam pensar se os “operários da fé” faziam por merecer salários tão altos enquanto cristão sofriam mundo afora. Enfim, era uma nova proposta para essa mensagem que se reinventava há séculos, o Evangelho.
A pastora tinha sólida formação teológica e era respeitada por sua profundidade na abordagem das verdades da fé. Crescera n’um lar luterano e sempre militara com inteligência contra tudo e contra todos que se lhe relativizassem a grandeza da verdade cristã e a importância da mulher no plano de Deus. Não desconhecia, contudo, os filósofos existencialistas e as demais tradições religiosas, cristãs ou não. Sua grande paixão intelectual, inobstante, era a Psicologia. Era uma entusiasmada estudiosa do comportamento humano, o que fizera d’ela, com o passar dos anos, uma pessoa cada vez mais tolerante e compreensiva quando comparada aos seus pares. Tinha a mente naturalmente aberta para acolher as pessoas, mesmo as mais desesperadas e confusas. Sua capacidade de argumentação calava as críticas machistas que sempre relegavam as mulheres na igreja a papeis secundários:
— “N’isso” — evocava Júlia nos púlpitos — “as igrejas neopentecostais são muito um sinal profético para toda a Cristandade!” — E continuava sua digressão destacando a experiência d’um trabalho pastoral, onde marido e mulher se complementavam — “A mulher cristã, de facto, deve estar ao lado do homem cristão, nunca abaixo!”.
Tereza — embora não fosse mais uma neófita — sempre se admirava da força da pregação da pastora. E sua presença mais frequente nos cultos e eventos da igreja apenas aprofundaram essa admiração. A sensação de que faziam algo errado se diluíra após os primeiros encontros diante do desespero de Júlia e da solidão de Tereza. Mesmo casadas, logo infiéis, enxergavam n’aquele encontro humano um enamoramento sincero. Vinculadas pela igreja, porém, a um discurso religioso que condenava o amor entre mulheres, as duas perceberam que tal contradição era apenas aparente diante do esforço honesto que empreenderam por toda a vida para viverem em conformidade com suas consciências.
O iminente rompimento de seus respectivos casamentos mostrava que a blindagem que pregavam não era capaz de impedir algo ainda mais poderoso que o desejo de viver um casamento cristão: Um grande e inesperado amor. Apesar da vontade de mandar tudo para o alto, Júlia ainda se sentia responsável pela missão no Sudão do Sul e não podia simplesmente abandonar Carlos Vinícius e a igreja para ficar com Tereza. Tinham, portanto, de viver essa vida dupla ao menos até que os pastores pudessem se reencontrar para redefinir os rumos da missão e mesmo da igreja. Seria um escândalo se simplesmente rompessem. O ideal era esperar que se reencontrassem longe do Brasil, fosse na Europa; fosse na África.
Voltando para São Paulo, Tereza decidiu se desligar da empresa de seguros onde trabalhava e assinou contrato com a igreja de Júlia. A partir de então, as duas seguiam juntas por toda a cidade, nos mais diversos templos evangélicos, levando as urgências da missão no estrangeiro às comunidades cristãs, enquanto Afonso pegava as meninas na creche e a esperava em casa. Mas, ao menos uma vez por mês, a pastora e Tereza seguiam para alguma grande cidade e passavam a semana toda em trabalho pastoral, ampliando o alcance da mensagem de sua igreja. Usufruíam, n’essas viagens, de muito mais liberdade para ficarem juntas, sempre com muita discrição.
A pastora construíra ao lado de Tereza uma intimidade lasciva, mas plena de ternura. Tereza se apaixonava perdidamente por aquela bela e culta mulher e era correspondida. Não fossem a saudade das filhas e o medo do escândalo seriam plenamente felizes n’aquelas viagens. Júlia entendia, porém, mais do que Tereza, que aqueles eram momentos preciosos porque fadados ao um fim próximo. Tudo dependeria do planejamento anual da igreja e do desenvolvimento das actividades missionárias. Mais cedo ou mais tarde, ela seria chamada para retornar ao exterior. Lá, mesmo que Tereza viesse como missionária junto com a família, seria impossível esconder a relação das duas de seus respectivos maridos.
Os olhos da pastora, embora brilhassem de desejo por Tereza, sempre mantinham certa melancolia e temor pelo futuro. Afinal, elas eram felizes juntas, mas até quando?

CAPÍTULO 7
“Retirar-se para ouvir a própria voz é fundamental para o cristão. É por meio da consciência que Deus nos fala. Portanto, quando o casal decide celebrar a vida retirando-se do quotidiano, ele se reconhece no amor profundo do casal em que o próprio amor de Deus se faz imagem e semelhança. “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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— “Cancela ou remarca para mim todos os eventos agendados para os dois últimos finais de semana do mês” — disse a pastora à Tereza na secretaria da igreja:
— “Fui convidada a palestrar n’um encontro de igrejas no Centro de Convenções da Bahia!” — Logo concluiu, muito entusiasmada:
 — “Quero que d’esta vez Luna e Letícia venham conosco”. — Tereza, surpreendida com o convite da pastora, ainda questionou:
— “Mas não vai ser muito corrido lá?” — Ao que a pastora respondeu:
— “Apenas na noite da conferência.” — Disse ela — “Depois, quero descansar uns dias em Itacaré para as meninas aproveitarem a praia”. — Tereza não sabia o que dizer... Era ao mesmo tempo muito gentil e cuidadoso o convite da pastora, mas Afonso ainda tinha de ser convencido. Ela ligou para ele explicou a situação. Ele a princípio achou estranho, mas se convenceu que seria legal para as meninas. No final, não se opôs. Duas semanas depois, desembarcavam em Salvador.
O Centro de Convenções era um prédio extenso em estrutura metálica e pano de vidro de cujos andares superiores se tinha uma vista impressionante do mar. Contrastava com o calor constante da cidade o forte ar-condicionado lá dentro. Eventos em Salvador, mais do que em São Paulo ou no Rio, atraíam participantes do Brasil inteiro, fosse pela beleza das praias; fosse pela localização em relação dos grandes centros urbanos do Norte e do Nordeste do país. Mesmo convidados de mais longe, do Sul e do Centro-Oeste, se esforçavam em vir por causa das praias e do centro histórico da capital baiana. Tereza acompanhou a pastora até o palco junto com Luna e Letícia e se postou com elas na primeira fileira de assentos do auditório lotado. Mesmo depois de tantos eventos, ainda se emocionava em vê-la discursar. Como ajudara a escrever o texto, acompanhava a sua cópia enquanto a pastora se apresentava:
— “Caríssimas! Caríssimos!”
“O espírito do Senhor DEUS está sobre mim.” Isaías 61
1 O espírito do Senhor DEUS está sobre mim; porque o SENHOR me ungiu, para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos;
2 A apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os tristes;
— “Sim, eu fui enviada em missão para proclamar a Boa Nova aos que sofrem. Não fui ao estrangeiro para minha glória, para me exaltar diante de vós, mulheres e homens de Deus. Ao contrário, fomos eu e meu marido ao Sudão porque o clamor d’estes sofredores se fez ouvir mesmo aqui, do outro lado do mundo, entre as prósperas igrejas cristãs do Brasil.” — Júlia correu os olhos sobre a assembleia e lhe avaliou a reacção. Prosseguiu a pastora:
— “Fomos ser presença de Jesus Cristo n’uma zona de guerra, uma terra arrasada! Um lugar que muitos mapas ainda não indicam existir sequer: o Sudão do Sul, o mais jovem país independente do mundo! Trata-se d’uma ex-província de maioria negra e cristã cujo processo de secessão do país de etnia árabe e maioria muçulmana que conhecemos no colégio redundou em milhões de mortes nos últimos cinquenta anos do século passado. Um conflito que a ONU e a UA acompanham há décadas em vista dos seguidos genocídios e crimes contra a Humanidade que ali têm lugar.” — Vendo o estranhamento das pessoas àquele tema, alternou em tom mais coloquial:
— “Devo confessar que também eu sabia muito pouco sobre essa região quando senti o chamado de Deus para ser missionária lá. Quem conhece minha vida pastoral com meu marido sabe que sempre procuramos ajudar casais a viver de maneira santa e feliz. O casamento blindado foi o primeiro carisma que identificamos em nossa vida pastoral. De modo que não foram poucos que estranharam esse ímpeto que senti quando, apoiada por meu marido, nos decidimos a iniciar essa missão cristã no Sudão do Sul” — Júlia decidiu tornar o tom ainda mais emotivo:
— “Gostaria de compartilhar com vocês como senti esse chamado: Eu assistia o noticiário da BBC e passava um especial sobre o conflito no Sudão do Sul. Eram sucessões de atrocidades e desastres que arrastavam uma nação já muito pobre para a violência e a miséria extremas. No meio d’estes relatos terríveis, o repórter mostra a história d’um senhor de sessenta anos que trabalhava n’uma construção. Ele fora autorizado a construir nas terras pacificadas do campo de refugiados e levantava com toda dificuldade uma espécie de cabana. Quando perguntado sobre seus planos e o que estava construindo, aquele homem que já perdera esposa, filhos, irmãos e irmãs. Completamente desenraizado, recomeçava a vida n’uma terra que lhe era estranha, dizendo: — “Estou construindo uma igreja cristã. É preciso congregar essas pessoas que aqui chegam refugiadas de todas as partes e lhes oferecer ao menos a esperança de dias melhores.” — E o repórter insistiu:
— “Mas, não é mais importante construir escolas para as crianças ou mesmo uma casa para tua nova família?” — O velho acabara de se casar novamente. O repórter perguntou:
— “Por que uma igreja?” — O outro respondeu:
— “Porque sem a fé em Deus, o que resta são os homens e sua maldade cheia de razões. Para quem perdeu tudo, perder até a esperança d’algo melhor — n’essa vida ou na próxima — é entregar-se à morte.” — E o repórter se calou. — Findo o relato, a pastora voltou-se para os presentes:
— “N’aquele momento eu senti um ardor: — o peito em chamas, como os dois discípulos diante do Senhor ressuscitado”. — Esclareceu a pastora e disse sozinha em voz alta — “É lá que também eu devia construir uma igreja cristã.” — Após alguns segundos em silêncio, ela concluiu seu discurso:
— Isso me fez missionária. Isso me trouxe aqui n’essa noite: Peço que vós, mulheres e homens de Deus, me ajudeis permitindo-me pregar esse projeto missionário em vossas igrejas! Que eu possa continuar lutando para que eu e meu marido possamos levar a esperança de dias melhores a esses cristãos — e despediu-se:
— “Que a paz de Nosso Senhor permaneça em vossos corações”.
— “Amém” — irrompeu a assembleia de pastores e pastoras por todo o auditório.
Enquanto a pastora se recolhia ao camarim do auditório, Tereza era abordada por assessores de igrejas das mais diversas denominações cristãs. Eram convites para pregar em igrejas de todo o país! Se confirmados, levariam a mais seis meses de andanças pelo Brasil antes que a pastora voltasse para a África. Tereza se alegrava com cada convite, embora já considerasse seriamente a ideia de acompanhar a pastora inclusive na missão. Isso, porém, Afonso jamais aprovaria: Ir com Luna e Letícia ainda pequenas para uma zona de conflito nem por um terreno no céu com assinatura de Deus no contrato! Tereza temia pelo futuro de sua relação com a pastora... Estava cada vez mais envolvida por aquela mulher, apesar de todos os senões: Afonso, o marido d’ela, a igreja, a missão e, sobretudo, Deus.
Tereza trabalhava com o presente, vivia no presente. Não conseguia vislumbrar qualquer futuro onde elas pudessem viver juntas. Em função do trabalho, estavam sempre em contacto e se viam todos os dias. Por vezes, mal se permitiam um olhar mais profundo, um resvalo de mãos... N’outras, almoçavam juntas e passavam a tarde toda no apartamento d’ela, nuas e lânguidas. Eram horas e horas de brincadeiras eróticas n’uma intimidade delicada em que Tereza descobria-se plenamente amada e desejada. Tudo o que decidiam fazer juntas era leve, sem dramas ou conflitos. Jamais se beijaram novamente na igreja ou onde pudessem ser surpreendidas, passando a todos uma imagem de eficiência profissional. De facto, o ritmo de compromissos da pastora exigia mais planejamento e atenção que qualquer coisa com que trabalhara antes.
Tereza, apesar da promessa de Afonso, se desdobrava para pegar as meninas na creche e lhes ajudar à noite com os deveres, enquanto o pai d’elas se mostrava cada dia mais distraído. Não se sentia culpada pelo caso com a pastora, mas sabia que seu casamento, blindado ou não, não fazia mais qualquer sentido. Não podia ela, contudo, jogar tudo para o alto, separar-se de Afonso e ir criar as meninas na África ou qualquer outro lugar com uma pastora evangélica casada que ensinava a blindar casamentos! ...
Por mais que pensasse, se não via como viver com a mulher que amava, muito menos sem ela.
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Após o evento, Julia, Tereza e as meninas voltaram para o hotel para no dia seguinte seguirem para Itacaré. Era uma viagem diferente, pois, começava com a travessia por balsa de Salvador até a ilha de Itamaracá. Apenas lá, alugaram um carro e seguiram por uma rodovia que passava por paisagens exuberantes do litoral baiano. Como estavam em junho, todas muito vazias, quase desertas. Como tivessem o dia inteiro para chegar a Itacaré, foram parando ao longo dos quase 250km do percurso. A própria Itaparica, Valença, Ituberá, Camamu... Era uma cidade praiana mais linda que a outra! Luna e Letícia — duas paulistinhas acostumadas às praias urbanizadas da Baixada – ficaram extasiadas com aquele litoral agreste e tropical de coqueirais. Em Ituberá, pararam para almoçar e, descansando na orla da cidade, deixaram as meninas brincar na praia. Caminhando pela areia Tereza olhava emocionada a alegria das filhas quando Júlia comentou:
— “Seria uma pena vir aqui sem elas, não é?” — Tereza não se conteve e a abraçou:
— “Muito obrigada, meu amor!” — Júlia a abraçou ainda mais forte e lhe sussurrou no ouvido:
­— “Basta um sorriso teu para eu me sentir amada...” — e concluiu a seguir — “E não há sorriso melhor que esse teu junto das duas!” — Tereza arregalou um sorriso de orelha a orelha e lhe sussurrou:
— “Meu amor...”
Demoraram-se por lá até passar a preguiça do almoço e voltaram para estrada. Em menos de uma hora e meia depois chegavam a Itacaré.

CAPÍTULO 8
“Ainda que eu falasse as línguas dos anjos e dos homens, sem amor, seria como um címbalo de retine escreveu o apóstolo Paulo sobre o amor humano. Amar é um mistério: São insondáveis as razões pelas quais duas pessoas se apaixonam. Mas foi justamente por meio dessa experiência humana que Deus quis nos ensinar sobre o seu próprio amor à humanidade. “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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— “Eu entendo, Tereza, que Cristo conhece os corações. Os cristãos, não: Só conhecem aparências.” — Disse a pastora, olhando para o mar de Itacaré enquanto as filhas de Tereza faziam castelos na areia da praia. E continuou:
— “Eu estou muito feliz de te ver feliz aqui com elas, imagino a falta que sentes...”. Tereza sorriu. A pastora ficou olhando demoradamente para as filhas de Tereza e soltou em meio a um suspiro:
— “Amo muito crianças, mas acho que nunca terei filhos.” — E Tereza atalhou surpresa:
— “Mas, por quê?” — e pastora respondeu:
— “Porque eu amo uma mulher” — D’essa vez Tereza e a pastora, às gargalhadas, choraram de rir até que, aos poucos, se emudecerem e por fim se olharem cúmplices. Tereza insistiu:
— “Ainda és muito nova, Júlia. Logo sentirás o chamado da Natureza...” — ao que a pastora se interessou:
— “Foi assim contigo?” — E Tereza — ”Isso é uma longa história...” e atalhou — “À noite te conto.” — E sorriu entre brejeira e maliciosa. A pastora continuou d’onde havia começado:
— “Acredito que Jesus enxerga o coração das pessoas e sabe que o que nós duas sentimos é verdadeiro. Não me sinto hipócrita por te amar e continuar meu trabalho pastoral. Faço o que faço pela missão.” — Tirou os óculos escuros e olhou diretamente para Tereza — “Eu sempre fui apaixonada pela igreja cristã e, desde muito nova, decidi dedicar minha vida ao Evangelho.” — Sentindo peso d’aquelas palavras, parou para tomar fôlego e continuou:
— “Mas eu era mulher e o papel das mulheres no Cristianismo sempre fora secundário. São raras as profetisas e heroínas na Bíblia; raras as santas e ainda mais raras as doutoras da igreja.” — lembrou à guisa de introdução. — “Ainda menina, eu já lia os escritos de grandes místicas como Catarina de Sena e Tereza d’Ávila. Quando tinha dezesseis, meu pai me enviou para o seminário luterano e eu me graduei em Teologia. Era uma das poucas mulheres e, mesmo entre as igrejas neopentecostais, ainda somos poucas pastoras.” — Sua voz se tornou meio introspectiva:
— “Eu percebi, desde o início, que se não me casasse ninguém escutaria o meu ministério. Foi então que comecei a namorar com Carlos, que já era um jovem pastor neopentecostal, e abraçamos a nossa primeira causa, a do namoro cristão casto: Mulher e homem se mantendo virgens até o casamento. Foi um sucesso!...” — Júlia não pode deixar de sorrir com aquela lembrança. Tereza reparou, mas não disse nada. Ela resolveu continuar sua história:
— “D’uma hora para a outra, as pessoas começaram a me escutar. Nós éramos convidados para toda sorte de programas de TV e pregávamos nas igrejas em cultos voltados para a juventude. Ficamos famosos como casal de pastores e nos deslumbramos: Casamentos dos sonhos, lua de mel luxuosa, enxoval de princesa... Ficamos sendo assunto de frivolidades por um tempo. Eu resolvi voltar a estudar e me graduar em Psicologia. As primeiras dificuldades no dia a dia de casada me fizeram interessar por terapia de casais. Eu não entendia como um casamento cristão entre pessoas de coração puro podia ter os mesmíssimos problemas dos casamentos comuns. Como era ingênua...” — e suspirou sorrindo, linda! Tereza a interpelou:
— “Querida, quando me beijaste, aquilo foi novidade para mim, mas não para ti. Ingênua fui eu que vivi esperando carinhos ardentes de mãos frias...” — a pastora sorriu, entendendo onde Tereza queria chegar:
— “Eu me casei virgem, Tereza, mas não demorei a entender que havia algo errado com nós dois. O ideal cristão ainda enxerga a sexualidade, mesmo no casamento consagrado, como algo negativo, pecaminoso. Quero dizer, não há pecado em ter relações com o marido, mas é pecaminoso gostar a ponto de pôr em segundo plano a vida de oração e, sobretudo, a vida pastoral. Cristãos almejam ser santos e as mulheres, mesmo esposas, são obstáculos a esse ideal. Eu percebi, com os anos de casada, que havia um profundo descompasso entre vida espiritual e vida sexual. Quando eu compreendi, pela experiência da terapia de casais, que a sexualidade era importante na manutenção dos vínculos de casal, eu comecei a me preocupar. Para falar a verdade, eu era muito frustrada com a intimidade que tinha com meu marido! Chegava a ter saudade do nosso tempo de namoro casto... Na cama, era raro, rápido e ruim. Muita demonstração de afeto nos púlpitos das igrejas e um desinteresse injustificável entre quatro paredes. Em última análise, o casamento consagrado era um ideal lindo, mas uma realidade difícil.” Tereza a interrompeu:
— “Entendo que o casamento nunca é como se sonha, mas quando descobriste a possibilidade de amar uma mulher?” — A pastora a olhou, percebendo que precisava parar de dar voltas:
— “Olha, Tereza, eu sempre quis ser pastora e acreditava muito na necessidade de ajudar as pessoas, mas cada vez mais sentia um vazio sufocante.” — A pastora se calou como procurasse as palavras.
Sem aviso, Júlia se levantou e foi até onde Luna e Letícia estavam para brincar com elas. Depois d’alguns instantes, entrou no mar e, com água até os seios, esperou. Tereza percebeu que aquele era o ponto mais difícil para a pastora e respeitou seu súbito interesse pelo mar. Levantou-se e foi atrás d’ela, após recomendar às meninas que não saíssem da areia. Avançou pela água fria e se juntou à pastora. Disse-lhe:
— “Meu amor, se te dói, não precisas contar mais nada” — e a pastora, sorrindo, lhe respondeu:
— “Estou com frio. Abraça-me...” agora foi a vez de Tereza sorrir:
— “Que manhosa... Eu toda preocupada contigo e tu querendo me atiçar! — e a pastora:
— “Não, me amor, eu só quero te sentir comigo. Eu sei que tenho que te contar tudo, mas é difícil para mim.” — Tereza foi até ela e a abraçou por trás, dizendo-lhe ao ouvido:
— “Apenas diz que me amas. Nada mais me importa.” — A pastora virou-se e, olhando-a, disse:
— “Eu te amo, Tereza. Muito!” — E desvencilhando-se d’ela, mergulhou no mar.
Tereza, profundamente emocionada, viu a pastora emergir alguns metros à sua frente... Como era linda! Nada parecia ameaçar aquela paz. Olhando-a, com as filhas alegres e seguras ao fundo, Tereza teve para si que aquele era o quadro mais bonito de sua vida... Um instante ao mesmo tempo belo e significativo cuja intensidade facilmente a levaria às lágrimas: Era simplesmente impossível ser mais feliz. A pastora voltou para perto de Tereza e lhe beijou. Um beijo furtivo, rápido, mas o bastante para as lágrimas deslizarem por sua face. Lágrimas de alegria.
Elas saíram do mar e buscaram Luna e Letícia para elas também se banharem um pouco. As duas faziam uma festa incrível cada vez que a Tereza e Júlia as levantavam com os braços para que pulassem as ondas. Tudo simples, como devia ser. N’aquela praia quase deserta, pareciam distantes demais das guerras da África, das mazelas do Brasil e de toda a maldade do mundo. Pareciam retornadas ao Éden, como se tudo fosse bênção d’um Deus que as compreendia como jamais os homens seriam capazes. O sol começou a se pôr e a tarde caiu em meio a um céu de lilases e azuis profundos. Em paz.
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Voltaram para a pousada e deram banho nas meninas. Lancharam e se deitaram com elas para assistir um filme infantil. Muito cansadas do dia na praia e da viagem do dia anterior, as duas pequenas não demoraram a dormir. Tereza e a Júlia foram para a varanda que dava para a praia. Abriram uma garrafa de vinho e fatiaram queijo. O mar quebrava no costão e a brisa lhes refrescava a pele que ardia. Elas retomaram a conversa da tarde:
— “Ainda estou esperando a história do tal chamado da Natureza, querida...” — adiantou-se a pastora. Tereza sorriu:
— “Não há muito o que contar... Minha história é muito comum comparada à tua.” — A pastora a interrompeu:
— “Meu amor, és tudo para mim, menos uma pessoa comum.” — Mais animada, Tereza continuou:
— “Minha mãe teve três filhos. Eu fui a única menina e a caçula. Quando tinha quatro anos, meu pai saiu de casa e minha mãe trabalhava o tempo todo. Passei a infância inteira ouvindo minha mãe dizer que os homens sempre vão embora...” — Júlia se lembrou do relato d’ela no grupo de mulheres: O medo do abandono... Tereza rememorava:
— “Vivíamos com muita dificuldade, mas bem. Meus irmãos, que conviveram mais com meu pai, adoravam-no. Minha mãe não podia falar d’ele que eles o defendiam. A mim, ficava a impressão de que meu pai não me amou: Jamais se interessou por mim. Cresci me prometendo que quando tivesse a minha própria família, custasse o que custasse, meus filhos cresceriam com o pai. Ora concordava com minha mãe de que meu pai fora um fraco; ora concordava com meus irmãos de que minha mãe o afastara de nós”. — Tereza interrompeu a narrativa e observou a pastora. Ela se mantinha interessada e atenta. Por fim, Júlia lhe encorajou:
— “Continua!”. — Tereza respirou fundo e lhe disse:
— “Eu nunca fui namoradeira. Estudava muito e comecei a trabalhar fora com dezoito. Não saía. Não paquerava. Nada. Mas senti, sim, o chamado da Natureza desde muito nova: Era muito afogueada! Senti meu primeiro orgasmo com doze, sem me tocar, vendo um casal se beijando n’uma novela: Meu corpo começou a tremer forte e logo percebi a calcinha toda melecada...” — Tereza ficou corada com lembrança, mas continuou:
— “Fiquei muito envergonhada, mas queria sentir aquilo de novo. Assisti muita comédia romântica para ver beijos de cinema! Tinha paixões no colégio, mas nunca ficava com os colegas: Morria de medo de que se começasse a beijar alguém eu não conseguisse parar! Mas minha mãe, reparando em meu assanhamento, sempre me repreendia para não ter filhos nova e “acabar como ela”. Confesso que era o que mais temia na vida... Ser como ela: Sozinha, trabalhando por dois e desiludida do amor.” — Tereza sentiu a boca seca. Tomou um pouco de vinho e ficou pensativa: Nunca pensava n’aquelas coisas, mas pareciam ser as únicas capazes de explicar aquele casamento estranho que se insistia em viver com Afonso. A pastora a despertou de seu transe:
— “Tudo bem, mas casaste virgem?” — Perguntou Júlia — Tereza respondeu:
— “Não, minha primeira vez foi com um namoradinho da faculdade, com mais de dezoito. Namorávamos havia seis meses. Eu não aguentava mais de vontade!” — Júlia arregalou os olhos:
— “E, como foi?” — Tereza pousou a taça na mesa e respondeu — “Muito ruim. Ele parecia querer muito me tranquilizar e ficou bobo. Saber que eu era virgem o bloqueou... Gozou rápido.” — A pastora deu uma gargalhada, mas logo se conteve:
— “Desculpa, meu amor!” — Ao que Tereza lhe respondeu:
— “Tudo bem, foi engraçado mesmo.” — e as duas caíram no riso juntas.
Tereza se achegou na pastora e lhe deu um beijo de cinema, longo, embevecido... Ao final, disse-lhe ao pé do ouvido:
— “Era assim que queria que me beijassem...” — e a pastora gracejou:
— “D’esse jeito, eu que vou ficar com a calcinha melecada” — e as duas caíram no riso de novo.
Era bom falar d’aquelas coisas sem o drama que sempre carregaram, pensou Tereza consigo. Junto d’ela havia uma atmosfera de amor que a comovia. Jamais, para ninguém, havia dito coisas que eram tão importantes sobre si mesma e tão desimportantes para os outros. Não conseguia deixar de sentir especial quando ela lhe olhava. Era doce e provocador ao mesmo tempo. Sentia que, se pudesse levar Luna e Letícia, iria ao Sudão do Sul, ao Sudão do Norte e até o fim do mundo só para ter aqueles enormes olhos verdes sobre si.

CAPÍTULO 9
“Se as razões pelas quais duas pessoas se apaixonam são insondáveis, aquelas pelas quais permanecem juntas, por outro lado, são bem objetivas. É preciso que haja um projeto de vida compartilhado, o que envolve fidelidade, atenção, cuidado, partilha... Não se constrói uma relação sem que ambos sejam capazes de renunciar a seus caminhos pessoais para seguirem juntos n’um só caminho “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Amanheceu. Tereza se banhou enquanto Luna e Letícia não acordavam. Ela e a pastora haviam passado quase a noite toda conversando na varanda. Tereza ainda se esperava o relato d’ela... Antes que saíssem para tomar o café da pousada, porém, a pastora já lhe batia na porta para acompanhá-las. Tereza abriu a porta e a abraçou. A pastora entrou na suíte de Tereza, beijando-a:
— “Bom dia!...” — Lembraram-se das meninas e se contiveram. Enquanto as duas dormiam, Tereza foi novamente com a pastora para a varanda e olhavam para o mar. A pastora começou a falar:
— “Aquele lugar, Tereza, não é para idealistas.” — e, voltando-se para ela, concluiu — “Eu fui para o Sudão levar esperança e acabei perdendo a minha...” — Tereza a consolou:
— “Não digas isso, meu amor, é melhor deixar o passado para trás.” — a pastora respondeu:
— “Não tem como, Tereza, eu prego uma mentira. A viagem foi um grande fracasso: Meu marido, primeiro enlouquece e depois surta. A tradutora, a quem me entreguei n’um último esforço de manter minha sanidade, me abandonou assim que chegamos à zona de conflito. Todo o dinheiro que levamos, dinheiro de doações da igreja, perdido em subornos de autoridades e milicianos... Dinheiro que provavelmente comprou armas e munições contra as pessoas que viemos ajudar! Eu mal pus os pés no Sudão do Sul e quase fui morta... Só não me estupraram e mataram porque era estrangeira. Tomaram tudo o que me restara e me largaram n’um posto de observação da União Africana...” — a pastora se emocionara — “É terrível a ideia, mesmo tendo a fé que eu tinha, de que iria morrer n’uma terra estranha onde ninguém se importa.” — a pastora se continha as lágrimas a muito custo — Só me restou voltar ao Brasil e continuar meu trabalho pastoral para voltar ao Sudão e tentar fazer algo minimamente significativo lá. Mas, por Deus, eu não quero voltar lá! — Júlia pegou em suas mãos e a olhou nos olhos:
— “Eu estou com medo, Tereza, de me tornar uma fraude, um falso profeta...” — Tereza apertou suas mãos e disse:
— “Meu amor, eu iria até o fim do mundo contigo...” — ao que a pastora lhe interrompeu:
— “Eu não suportaria te ver lá, meu amor, sofrendo por minha causa.” — E concluiu — “Eu já arrastei meu marido para essa loucura... Não tenho o direito de fazer isso contigo.”
— “O que aconteceu com ele?” —  Perguntou Tereza.
— “Basicamente” — disse a pastora — “Desenvolveu uma severa síndrome do pânico. Enclausurou-se no quarto de hotel de Khartoum alegando que seria morto tão logo saísse. Começou a gravar vídeos e escrever cartas pastorais como se fosse o próprio apóstolo Paulo... Afinal, vimos coisas muito feias tão logo chegamos ao Sudão: Atentados a embaixadas, ataques a quartéis da UA, assassinatos de estrangeiros... O Sudão simplesmente não é um lugar seguro para cristãos ou ocidentais. Para tirar meu marido d’aquele hotel, foi preciso sedá-lo e levá-lo de ambulância até o aeroporto... Eu o enviei para a Alemanha onde um professor meu dos tempos do seminário luterano o acolheu. Ele está em Lübeck hoje, fazendo tratamento psiquiátrico”.
Tereza a observa com o olhar perdido no mar. A pastora continuou seu relato:
— “A partir de então, eu estava por minha conta e risco em Khartoum, sozinha, procurando um jeito de chegar ao Sudão do Sul. Eu procurei as poucas igrejas cristãs que possuem representação do Sudão e todos com que conversei foram categóricos de que eu deveria partir o quanto antes. Mas, eu ainda esperava por um milagre...” — e a pastora voltou-se para Tereza, tomando coragem para continuar:
— “Eu acreditava que se chegasse ao Sudão do Sul, mesmo sozinha, eu poderia ajudar as pessoas lá ao menos levando meu relato missionário para o Brasil. Quando estava quase desistindo, um milagre aconteceu: A jovem tradutora que me acompanhava desde o Egito — chamava-se Leilah, “como a noite”, em árabe — se propôs a ser minha companheira de viagem pelo interior do Sudão”. — Tereza, que já ouvira aquele nome, intuiu logo o que viria... Júlia se levantou e se debruçou sobre a murada da varanda:
— “Eu a levei para o hotel e a fiz trabalhar n’um plano para que chegarmos ao Sudão do Sul. Foram várias semanas de preparação. Eu estava muito fragilizada e, após perder muito dinheiro subornando um agente público que no fim não nos ajudou, eu tive uma crise nervosa. Leilah cuidou de mim e ficamos próximas. Após me recuperar um pouco, eu percebi que sentia atração por ela. Eu estava sozinha, n’um país muçulmano e tinha de começar uma viagem longa vestida de burka... Eu estava com medo de morrer e queria que ao menos uma pessoa ali se importasse comigo. Àquela altura, ela era a única pessoa com quem conversava. Eu a convenci a beber comigo e a beijei. Ela correspondeu ao beijo e fez amor comigo. Parece loucura, mas, n’aquelas circunstâncias, eu achava que deveria pôr minha vida nas mãos d’alguém que se importasse comigo.” — Júlia parou novamente, reflexiva. D’essa vez Tereza a espevitou:
— “E então?” — Júlia conseguiu continuar:
— “Passamos mais duas semanas n’aquele quarto de hotel enquanto eu me recuperava para seguir com o plano d’ela. Eu me entreguei àquela paixão e finalmente vivi algo realmente bom na sexualidade... No meio de todo o turbilhão, a última coisa com que deveria me preocupar se era lésbica ou infiel ao meu casamento”. E continuou:
— “O facto é que o apoio de Leilah me deu forças para seguir com o plano de ir ao Sudão do Sul. Ela comprou maquiagem para escurecer minha pele e lentes para os meus olhos. Ensinou-me algumas palavras em árabe, mas me recomendou que ficasse calada o tempo todo. Não poderíamos comprar um carro e ir para a zona de conflito porque mulheres sozinhas simplesmente não viajam assim no Sudão... Chamaria a atenção e seríamos presas. Tivemos de pegar toda sorte de transporte coletivo precário adaptado — picapes, caminhões, vans... — umas mil baldeações!” — Era a primeira vez que Júlia conseguia contara aquela história toda para alguém. Omitira a maior parte de Carlos Vinícius quando o encontrara na Alemanha... Ao mesmo tempo em que se sentia aliviada por verbalizar, ficara emotiva revivendo aquilo tudo:
— “Leilah ficava com todo o dinheiro que ainda tinha. Eu dependia d’ela para comer e ter onde dormir. Mais de uma vez dormimos ao relento, esperando condução... Quando finalmente chegamos à fronteira sul-sudanesa, era uma vila com algumas dezenas de pessoas onde um soldado guardava uma cancela no meio do nada. Não havia qualquer movimento n’aquele lugar; ninguém atravessava aquela fronteira. Leilah arranjou um quarto na casa d’uma viúva para passarmos a noite. No dia seguinte, acordo e Leilah havia desaparecido: Nenhum bilhete, nada. Foi embora com todo o dinheiro que levávamos! Eu passei o dia inteiro olhando para aquele soldado postado no meio do nada... — Tereza, embora lamentasse por Júlia, animou-se com aquele inusitado desenredo. A pastora continuou, ainda mais reflexiva:
— “À noite, levando a água e a comida que pude, atravessei a fronteira no escuro e andei cerca de trinta quilômetros para o Sul. Bem longe, avistei algo parecia ser um ajuntamento de casas. Estava exausta. Eu fui em direção da tal vila. Cheguei lá enquanto amanhecia! Havia passado a noite toda caminhando... Antes que chegasse às casas, porém, fui cercada por homens de etnia árabe. Eram milicianos. Aquele lugar era uma faixa desmilitarizada onde não havia nem soldados sudaneses nem pacificadores da UA – a União Africana, uma espécie de órgão supranacional que actua em crises no Continente. Mas não era o Sudão do Sul ainda! Aqueles homens me puseram sob custódia”.
Tensa, Tereza olhava estupefacta, à espera do pior... A pastora seguiu com a narrativa:
— “Após alguns dias, decidiram me largar nos arredores d’um posto de vigia da UA. Eu tive de caminhar até a entrada do posto na mira de armas... Chegando lá, perguntei se alguém falava inglês. Apareceu um oficial nigeriano e eu me identifiquei como missionária cristã brasileira... Ele não acreditou, pois, eu não tinha documentos. Só depois que lavei o rosto e comecei a falar português que acreditaram. Tive de prestar depoimento sobre como havia chegado ali. Liberada, arranjaram transporte aéreo de Malakal para Kampala, Uganda. Lá, eu contactei a igreja e me mandaram dinheiro para encontrar meu marido na Alemanha. Chegando em Lübeck, vi que ele estava bem melhor, mas agora obcecado com a ideia da missão. Eu lhe disse que não voltaria ao Sudão de jeito nenhum. Ele, todavia, me ordenou que retornasse ao Brasil para conseguirmos recursos para, enfim, fazermos a missão. ” — Agora, a pastora chorava:
— “Eu te juro, Tereza, eu não quero voltar lá de jeito nenhum... Estive, inúmeras vezes, a um passo de ser morta. Mas devia isso ao meu marido... Devo coerência ao meu ministério. Devo obediência à igreja: eu fui enviada em missão! Sei que a cada dia que passa eu estou mais perto do Sudão... E, sem nenhum drama, duvido que volte de lá com vida. Às vezes acho que foi egoísmo meu me envolver contigo, Tereza, mas eu não podia voltar para lá sem me sentir viva, amada... Estes dias ao teu lado, meu amor, eu levarei comigo como os melhores da minha vida”.
A pastora e Tereza se abraçaram e choraram juntas até perderem a noção do tempo. Passados alguns minutos, acordou a filha mais nova e, parada diante das duas, ficou chamando pela mãe... A pastora se levantou assustada e foi para o banheiro. Tereza sentou-se com, Letícia:
— “Estás chorando, mamãe?” — e ela respondeu:
— “Querida, a amiga da mamãe está muito triste com um problema muito complicado, mas está tudo bem agora” — e, lavando o rosto, acordou Luna, que já se espreguiçava na cama, e saiu com as meninas para tomar o café da manhã.
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Não disseram mais palavra sobre o Sudão, o futuro ou seus esposos... Passaram outro dia na praia, sob o sol molenga de julho. O mar continuava frio demais para se demorarem na arrebentação e as meninas brincavam, ora a chapinhar nas ondas se espraiando; ora pulando ondinhas com Tereza e a pastora. Sem lágrimas, sem temores, outro dia de descanso.
Almoçaram na cidade e foram até a ribeira da foz do rio das Contas. Era entre bairros pobres, apertados, onde as pessoas d’ali moravam à espera dos veranistas. Do mirante da beira, um largo de planície verde, lindo, dominado pelo rio já cansado de ser rio e entregue ao mar, onde saveiros navegavam com velas brancas e os coqueiros se sucediam.
Demoraram-se ali. Comeram um piau assistindo os barcos irem e virem, sem pressa alguma. Por fim, permitiram-se andar de mãos dadas no calçadão da praia, enamoradas ao fim de tarde, enquanto as filhas de Tereza brincavam na areia. Ninguém as conhecia ou se importava com elas. O dia passou sem que elas notassem.
Quando se encaminhavam para pousada, porém, Tereza recebe um telefonema. Era Afonso...
A princípio, nada fazia sentido n’aquela ligação: Afonso, delegacia, detido, flagrante, crime sexual... Apenas uma coisa estava clara: O passeio em Itacaré havia acabado! Ainda da pousada, Tereza liga para um advogado em São Paulo para que seu marido fosse liberado na delegacia para responder em liberdade. A pastora estava solícita, mas não podia fazer muito: Envolver advogados da igreja em crimes sexuais era um prato cheio para escândalos. No entanto, ajudou Tereza a encontrar um advogado e ofereceu ajuda com o que precisasse.
Tereza pediu a Júlia para que ficasse com as Luna e Letícia por algumas horas quando chegassem em São Paulo para que ela tivesse oportunidade de ouvir Afonso sem elas. Voltaram para Salvador o mais rápido que puderam e tarde da noite pegaram um voo para Congonhas. Tereza deixou as meninas de madrugada no apartamento da pastora para dormirem direito e foi encontrar com Afonso que, àquela hora, já estava no apartamento d’eles.
Quando Tereza chegou em casa, Afonso esperava sentado no sofá. O clarão branco da alvorada entrava pelas janelas e tudo estava em absoluto silêncio. Ele olhou para ela e perguntou pelas meninas. Tereza lhe explicou que as havia deixado com a pastora para que pudessem conversar a sós. Afonso desabou n’um choro convulso, quase infantil, profundamente constrangido. Após alguns minutos, Tereza pediu a ele que recompusesse e se explicasse:
— “Bem, eu realmente te devo explicações, Tereza.” — Ela o observava em silêncio:
— “Como sabes, fui flagrado no banheiro do shopping trocando carícias com um rapaz de dezessete — eu não sabia que ele era menor! — Pelo pai d’ele. O homem ficou louco: Chamou a segurança do Shopping, que chamou a polícia que me levou à delegacia onde fui preso em flagrante. O pai do rapaz não vai abrir processo para não expor o filho, mas a polícia fez ocorrência de atentado ao pudor. Vou ser fichado como criminoso sexual...” — Tereza finalmente conseguiu dizer algo:
— “És gay, Afonso? ” — Ao que ele reagiu insultado:
— “Não! Gay, não... Isso é uma espécie de fetiche que envolve coisas como perigo e novidade, uma prática chamada “banheirão” ” —  Tereza perguntou:
— “O que é isso, banheirão?” — Afonso lhe responde ainda muito constrangido:
— “São homens que ficam com homens. Geralmente casados. Marcam encontros em banheiros públicos e subornam zeladores para que interditem o acesso. Os caras passam cerca de vinte a trinta minutos se tocando lá dentro.” — Ao que Tereza o interrompeu:
— “É sexo casual? Com estranhos?” — E ele confirmou:
— “Sim, mas tem regras: É proibido penetração e sexo oral. O objetivo parece ser tirar o risco de DST n’um comportamento sexual promíscuo.” — Ao que Tereza concluiu:
— “Então és homossexual?” — Mas Afonso resistia:
— “É diferente, Tereza, homens que fazem sexo com homens podem se identificar ou não o universo homossexual”. Eu prefiro dizer que são homens promíscuos que fariam coisas semelhantes com mulheres se elas se permitissem. E Tereza argumentou:
— “Mas existem mulheres promíscuas... Muitas, inclusive, são bem acessíveis, se prostituem...” — Afonso a interrompeu:
— “Pagar por sexo é a coisa mais broxante do mundo.” — E continuou ele:
— “É muito difícil de explicar, Tereza, mas acho que a sexualidade masculina se alimenta de novidade” — Tereza o interrompeu:
— “Eu compreendo melhor do pensas, Afonso, mas não posso ignorar a gravidade do facto. Isso expõe a mim também.” — Ele permaneceu calado — “Eu sentia que estavas infeliz, Afonso, mas não te abrias comigo”. — Ele atalhou:
— “Eu tentei falar, Tereza, mas não é algo que se conta para a esposa... Eu cheguei a te chamar para conversar, mas vieste com essa história de igreja e casamento blindado. Percebi teu esforço em salvar o casamento, mas para mim a vida a dois que temos se resume às meninas. Depois, teve esse teu lance com a pastora...” — Tereza se sentiu desmascarada:
— “Como assim?” — E Afonso pôs as cartas na mesa:
— “Eu leio as mensagens de namoradinhas que as duas trocam...” — E ainda provocou — “Posso ser promíscuo, mas não sou hipócrita de subir n’um púlpito e pregar a cura de casamentos enquanto se tem um caso com uma executiva da igreja, também casada!” — Afonso deu sua cartada. Tereza ficou ruborizada, mas se defendeu:
— “Afonso, aquilo que eu não compreendo, eu respeito. Eu lutei por esse casamento por dez anos. Eu não procurei por isso: Apenas aconteceu. No início era somente admiração por Júlia. Mas, quando vi que não me enxergavas mais como mulher, percebi que ela me enxergava...” — E continuou procurando ponderar as palavras:
— “Eu não te julgo, Afonso, seja como homossexual; seja como homem que transa com homens, apenas te peço que não me julgues a mim ou a ela. Eu apenas preciso saber como ficamos? Vais embora? Vendemos o apartamento e quitamos as prestações do financiamento? O que fazemos?” — Afonso coçou a cabeça, visivelmente constrangido:
— “Eu não consigo te responder isso agora. Vou pegar umas roupas e passar alguns dias no estúdio.” — Tereza respondeu:
— “Não é preciso por enquanto, Afonso, as meninas querem te ver!...” — E continuou, solidária — “Eu te quero muito bem. És o pai das minhas filhas e foste um grande amor para mim. Mas nunca me amaste como eu queria...” — insistiu ela — “Eu preferia que ficasses aqui. ”
— “Aqui?!” — Insistiu perplexo — “Eu imaginei que querias apenas um pretexto para me tirar da tua vida.” — E Tereza concluiu:
— “Já estás fora da minha vida há meses, Afonso. Apenas não éramos capazes de admitir...” — Ele ainda perguntou:
— “E a pastora?” — Tereza o olhou nos olhos, franca:
— “Ela tem problemas muito maiores do que se preocupar com onde o pai das minhas filhas mora”. — Cinicamente, ele lhe observou:
— “Bem, parece que é conveniente para ti manter-me em casa...” — Tereza explodiu:
— “Não confundas tolerância e apoio com conveniência, Afonso. Casais separados vivendo sob o mesmo teto é mais comum que nota de dois reais! Eu tenho todo o direito de viajar, a trabalho ou não, durante os dias de convivência de minhas filhas com o pai. Se te tolero aqui, é porque te reconheço tão dono d’este apartamento quanto eu. Se não quiseres viver aqui, eu tampouco viverei. Vou para casa da minha mãe com as meninas e tu ficas no estúdio. E vendemos pela proposta que aparecer.” — Afonso pareceu se render:
— “Parecem-me bem razoáveis teus argumentos, Tereza. Traz as meninas que vou conversar com elas. De qualquer forma, vou passar uma semana fora da cidade e pôr a cabeça no lugar.” — Ela estranhou sua resolução:
— “E o teu trabalho?” — Afonso trabalhava como artista gráfico, mas odiava. Se dependesse d’ele, ficaria só no estúdio:
— “Talvez peça as contas na gráfica. Sei lá... Tem muita coisa errada em minha vida. Eu estou muito envergonhado: Ficar fichado, responder processo, quase dormir na delegacia... Eu quero dar um tempo fora e esperar que ninguém ouça falar d’isso.” — Tereza assentiu:
— “Sim, parece melhor mesmo.” — E continuou — “Afonso, o que estou tentando te dizer é que podes contar comigo.” —  Como ele permanecesse em silêncio, perguntou:
— “Como começou esta história de banheirão? Desde quando esse lance de homens que transam com homens?” — Afonso engoliu em seco e respondeu:
 — “Não houve nada de especial, penso. É sempre a mesma coisa: A ocasião faz o ladrão. Eu comecei a pedalar, mais para ter uma coisa diferente para fazer, emagrecer... Eram caras parecidos comigo, isto é, casados há mais de dez anos, fora de forma. Eu comecei a reparar que um dos rapazes ficava me secando, sendo gentil demais.” — Afonso mentia... Inexplicavelmente, parecia-lhe mais digno ser seduzido por um conhecido do que ceder a um encontro noturno com um casal de desconhecidos, como de facto acontecera: — “Um dia, terminamos o pedal n’um clube. O tal cara que me secava me cercou e acabou rolando. Eu me senti estranho no início, mas acabei gostando e querendo de novo. Depois da terceira vez, perdeu a graça. Era repetitivo, previsível. Comecei a teclar com caras em sites de encontros. D’ali para os grupos de WHATSAPP foi um pulo — Tereza interrompeu:
— “Grupos? Tem grupos d’isso? — Afonso se desinibiu:
— “Tem de tudo: Banheirão, sauna, cinema pornô, dark-room, glory-hole, surubas em apartamentos no Centro... Geralmente homens casados. Alguns homofóbicos até. ” — Tereza perguntou, incrédula:
— “Como um cara pode ficar com homens e ser homofóbico? ” — E ele respondeu:
— “É a coisa mais comum. O cara tem uma visão de que se ele for activo, ele continua macho. “Viadinho” para eles são só os passivos”. — E concluiu:
— “Sexualidade sempre envolve jogos de poder, estruturas de mando. É maluco mesmo, mas é assim.” — Ela então o cercou:
— “E tu, Afonso, quando pretendias me contar que tens uma vida paralela promíscua e que eu poderia pegar doenças contigo.” — Perguntou Tereza muito séria. Afonso, constrangidíssimo, respondeu:
— “Eu sempre faço sexo seguro. Nunca me exponho. Faço exames e nunca deu nada. Estou saudável.” — Tereza o fuzilou com os olhos:
— “Mesmo assim, eu tinha o direito de saber que me deitava com um promíscuo. Afonso, isso foi muito errado.” — Acuado, Afonso revidou:
— “Tão errado quanto teres um caso com a tua chefe...” — Tereza desistiu de vez d’aquela conversa:
— “Minhas escolhas jamais puseram a tua saúde em risco, Afonso. Eu e ela não somos nem nunca fomos promíscuas”. — E concluiu — “Eu vou trazer as meninas aqui para que fales com elas. Quando não estiveres, vou pegar minhas coisas e ir para minha mãe. Para mim, Afonso, já deu!”.
Tereza saiu do apartamento e deixou Afonso sozinho.

CAPITULO 10
“Quando um casal se separa, deve procurar aprender com aquela situação, seja ela provisória ou não. Não se deve perder a esperança, ao contrário, deve-se ficar ainda mais atento aos detalhes, fazendo uma profunda autorreflexão sobre como se sentem um em relação ao outro. É n’esse momento de crise que a maioria dos casais decide se restaurar pela fé e se blindar dos malefícios d’um mundo de superficialidades.“
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Afonso preferiu ficar no estúdio. O que, aliás, era seu plano desde o início. Tereza teve de atravessar aqueles dias consolando as meninas e procurando ela própria lidar com o luto da separação. Letícia, a mais nova era quem mais se entristecia... Sentia-se culpada por estar tão feliz com Júlia, enquanto as filhas sentiam a falta do pai.
Cumprindo sua promessa, mudou-se para a casa da mãe, na periferia, e colocou o apartamento à venda. Desfazer-se de seu lar foi-lhe especialmente doloroso, mas sabia que se não o fizesse aconteceria tal-e-qual a primeira separação: Ele voltaria para casa e continuariam brincando de irmãos com filhos. D’essa vez, contudo, havia Júlia... Não podia perdê-la em nome d’um casamento de aparências.
Procurou focar no trabalho da igreja, mas mesmo lá já não sentia bem. Sua separação de Afonso foi vista como um escândalo entre os casais restaurados... Do dia para noite, seus testemunhos passaram, no final, como hipocrisia diante da assembleia. Teve de deixar até de acompanhar Júlia aos cultos, tal o burburinho crítico que lhe faziam. Procurava desde então focar no planejamento do trabalho pastoral. Os cristãos, diferente de Cristo, era como Júlia dissera “Só veem aparências...”. Tereza sabia em seu íntimo que sua tentativa de restaurar o casamento fora sincera. Não queria nem imaginar se descobrissem seu envolvimento com a pastora...
Júlia procurou lhe dar espaço para reorganizar a vida, embora os compromissos da igreja as reunissem diariamente. Preferiam se ver no apartamento d’ela, evitando se encontrar na igreja. Em público, jamais eram vistas juntas.
Afonso sabia d’elas, mas também elas sabiam de seu segredo... Uma indiscrição anulava a outra. Se reveladas, acabaria como um bate-boca de ressentidos com as meninas sofrendo no meio. Um pesadelo que não interessava a ninguém.
A mãe a recebera com olhos fatalistas como se dissesse “eu não te disse?”. Tereza voltava ao seu quarto de solteira enquanto Luna e Letícia dividiam o quarto que fora de seus irmãos. Morar com a mãe, contudo, era importante para que pudesse continuar acompanhando a pastora pelo país. Em todo caso, Tereza tinha de esperar a venda do apartamento para fazer qualquer plano. Sentia-se pronta, inobstante, para acompanhar Júlia ao Sudão ou aonde quer que ela fosse com fumaças de que se manteria ao seu lado mesmo durante a missão,
Júlia, contudo, mantinha-se categórica:
— “Lá não é lugar para ti, meu amor, muito menos para as meninas. Se eu tiver de ir ter com Carlos será para convencê-lo de que é inútil voltar ao Sudão enquanto não houver uma zona pacificada garantida pela ONU...” — advertindo no fim — “O que não significa estar seguro...” — Júlia tentava tirar da cabeça de Tereza qualquer ilusão de ir para África:
— “O que aprendi lá é que inimigos e aliados podem mudar todos os dias. É um cenário complexo, mutante: Há milícias também entre as etnias meridionais, grupos cristãos armados... Na África, nada nunca é simples; não são azuis contra verdes, cristãos contra muçulmanos... São desesperados contra desesperados, uns mais bem armados e outros menos.” — E insistia diante d’uma Tereza confusa;
— “As fronteiras foram abstrações arbitrárias desenhadas por projetos colonialistas, sem qualquer vínculo com a história e os costumes. Por todos os lados, etnias rivais foram reunidas indiscriminadamente em territórios. Há dezenas de Ruandas espalhadas pelo continente...”
— “E os governos?” — Insistiu Tereza:
— “Em geral, líderes comprometidos com essa ou aquela etnia chegam ao poder e se mantem oprimindo as demais. ” — Respondeu a pastora — “Há muita corrupção de agentes públicos em todos os níveis. Todos se sentem na obrigação de depenar estrangeiros. Muitos, inclusive, acreditam que dificilmente os recursos enviados para melhorar a vida das pessoas se tornem no final algo diferente de armas, drogas e munição. ” — E concluí desalentada — “É o próprio inferno de boas intenções...”
As duas passaram aquela noite juntas assombradas pela ideia de serem subitamente separadas pela missão. O pastor Carlos lhe chamava por SKIPE semanalmente pedindo relatórios financeiros e discutindo o planejamento da missão. Ele não estava disposto a desistir. Júlia teria de confrontá-lo pessoalmente.
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Eram quinze horas em Lübeck; onze da manhã em São Paulo. Júlia estava diante do notebook. Há dias enviava relatórios financeiros atualizados e planilhas detalhadas com balancetes de custos da igreja e, sobretudo, as doações arrecadadas. Embora fossem valores muito significativos, ainda estavam longe da meta estabelecida. Carlos Vinícius se impacientava cada vez mais. Após a assinatura do cessar-fogo entre as forças do governo e as forças antigoverno, havia pressão de todo tipo para que aquela missão começasse a apresentar algum esforço executivo. O “casal missionário do Sudão do Sul” era cada vez mais questionado em meio às igrejas. Já havia quem falasse em fraude financeira e mesmo em estelionato religioso!...
Desde a experiência inicial malograda, Júlia insistia que a formação de missionários fosse prolongada, pois, era preciso ter pessoas fluentes nos idiomas meridionais do Sudão e, sobretudo, em árabe-de-Juba. Além do inglês, obviamente.
Júlia buscava a todo custo ganhar tempo. Pelas notícias que recebia, acolher os missionários, formá-los e enviá-los com segurança para os nichos pacificados pela ONU e pela UA era tarefa para anos. Pr. Carlos, contudo, parecia ignorar aquela realidade. Nem parecia que ele mesmo estivera em pânico diante da iminência da morte. — A pastora procurava argumentar:
— “Se os missionários fossem enviados pelo corredor humanitário que se negociava com os milicianos e com os exércitos que actuavam no extremo sul do território sul-sudanês, junto à fronteira de Uganda, talvez conseguissem estabelecer uma presença continuada na missão depois do fim da estação das chuvas, quando é impraticável transitar pelas péssimas estradas do lugar. Antes, impossível.” — Carlos rebatia:
— “O meu Deus é o deus dos impossíveis!...”.
A verdade é, pressionado, ele procurava aproveitar o breve estabelecimento com o governo de Uganda d’um corredor humanitário para criar uma base de operações da missão evangélica em solo sul-sudanês. Uma vez implantado como instituição actuante na região, o importante seria fazer o dinheiro assistencial chegar enquanto as tropas da ONU mantiverem a patrulha e a segurança em torno de Juba, a capital, e das vilas adjacentes na Equatória Central. O acordado com as autoridades responsáveis pelo cessar-fogo na região e o estabelecimento do corredor assistencial era construção d’um hospital de campanha e uma escola infantil em Moyo, Uganda. A localidade escolhida para a construção igreja cristã pentecostal fora Kajo Keji, teria de funcionar primeiro em tenda e depois ser levantada em mutirão com as comunidades.
O plano, no papel, parecia bom. Na prática, porém, a localidade de Kajo Keji fora seguidas vezes alvo de violência d’uma parte e d’outra entre 2015 e 2017... A bem da verdade, boa parte da população da região já havia se deslocado para Uganda, gerando uma grave crise de refugiados no Norte d’esse país. Pr. Carlos escolhera o lugar sobretudo pela proximidade com Moyo, onde estivera pessoalmente e percebera um ambiente amigável às igrejas cristãs, com as mais diversas denominações cristãs ali presentes e prósperas. Nada parecido com sua experiência em Khartoum.
Pr. Carlos esperava levantar nos próximos dias — mediante seus contactos na Europa — uma soma capaz de pagar de os custos de transporte e de segurança privada — Sim, a missão deveria manter constantemente equipes de segurança privada para viabilizar suas actividades, tanto em Uganda quanto no Sudão do Sul — esperava, portanto, com as doações arrecadadas e com os missionários enviados do Brasil calar a boca dos pessimistas que duvidaram d’ele e de sua igreja. Não havia tempo a perder.
O grupo de pessoas da igreja se dividia entre missionários, corpo assistencial, equipe logística... Totalizando apenas de 20 pessoas. A pastora viria chefiando a missão no Sudão do Sul, ao passo que Pr. Carlos estabelecia uma base logística na Uganda, do outro lado da fronteira, a cerca de vinte e cinco quilômetros de distância. O rei movia a rainha para a vanguarda enquanto se encastelava atrás das torres, tal-e-qual n’um movimento de roque do xadrez...
O tempo médio que um missionário passava na África variava de 12 a 20 meses. Raramente voltavam para outro período. A tensão de viver n’uma zona de conflito afectava as pessoas de maneira diversa, mas profunda. Na prática era estar na guerra sem treinamento militar e sem armas. Inobstante, ainda era muito melhor que se estabelecer em Khartoum e atravessar um país hostil que só queria se ver livre d’aquele no-men’s-land no centro do continente.
Desde que fora enviado para a Alemanha por Júlia, Pr. Carlos estivera em Uganda duas vezes. Tivera muito sucesso no contacto com as igrejas cristãs do país e visitou campos de refugiados sul-sudaneses em Palabek, mantido por padres salesianos. Ao mesmo tempo, na Alemanha, conseguiu acesso a operadores de fundos missionários de várias instituições religiosas, além da promessa de ajuda de instituições assistenciais, uma vez implantado o pequeno hospital de campo.
Aquele era o Carlos Vinícius que todos conheciam e admiravam: O homem que fazia as coisas acontecerem.
Por isso, sobretudo, se impacientava tanto com os resultados limitados de Júlia. A atenção e as doações brasileiras eram fundamentais para que, uma vez estabelecido o corredor humanitário, sua igreja mantivesse a missão com mais recursos e novos missionários. Era preciso que fossem ousados para aproveitar a rara oportunidade. Tudo no Sudão do Sul mudava muito rápido. O cessar-fogo, negociado por meses e recentemente assinado pelos dois líderes beligerantes em Adis Abeba, na Etiópia, podia ser rompido a qualquer momento.
— “A situação do Sudão do Sul” — explicara Júlia à Tereza n’um de seus encontros a sós — “Era um caso típico do caos absurdo em que se transformara a África após a descolonização. Dividida em peças d’um quebra-cabeças o Continente tinha fronteiras totalmente arbitrárias. O Sudão, que havia sido colônia ao mesmo tempo de Egito e Grã-Bretanha tinha uma história recente de conflitos étnicos desde a independência do país, em 1956. Duas guerras civis sangrentas — a primeira entre 1955 e 1972; e a segunda, entre 1985 e 2005 — tornaram aquela parte da África um dos lugares mais pobres do mundo.” — Resumia a pastora. Mas ainda tinha mais guerra:
— “Quando parecia que tudo melhoraria, com o processo de secessão que originou o Sudão do Sul, concluído em 2011, a guerra civil entre etnias agora do próprio Sudão do Sul; os dinka, do presidente Salva Kir, e os nuer, do qual faz parte o vice Riek Machar. A ONU, presente em quase todas as regiões do país, reconheceu que processos de limpeza étnica têm sido impetrados por ambos os lados mediante fome generalizada, estupros colectivos e vem como o assalto e incêndio de vilas isoladas... O resultado foi o deslocamento de quase dois milhões de refugiados e a configuração d’uma catástrofe humanitária sem precedentes no século vinte um. É para esse lugar que estou indo...” — Tereza lhe observou:
— “E eu irei contigo!” — mais uma vez, Júlia tentou lhe demover d’aquela ideia:
— “Tens tuas filhas, Tereza, é muito perigoso”. — Mas ela insistia — “Irei aonde fores, meu amor. Minhas filhas ficam com minha mãe. Irei como funcionária da igreja. Tenho te acompanhado pelo Brasil. Tenho muita experiência com administração e suporte logístico. Sou fluente em inglês e posso aprender o que for necessário. Não estou abandonando minhas filhas, estou seguindo com meu trabalho.” — Júlia, porém:
— “Não posso permitir que me acompanhes sabendo que podes morrer lá, meu amor.” — Ao que Tereza:
— “Tu também, Júlia!” — E ela se calou.
Tereza a olhou nos olhos e disse:
— “Irei aonde fores, a não ser que não me ames.” — Júlia comoveu-se às lágrimas:
— “Eu te amo, Tereza. Mas não quero que morras por minha causa.” — Agora Tereza quedou silenciosa. Após alguns minutos, ela se levantou e se encaminhou para a porta e disse:
— “Eu estarei lá, pela missão ou não. Apenas será mais arriscado”. — E fechou a porta do apartamento atrás de si.
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Júlia encarava seu marido pela tela do notebook enquanto informava a adesão de sua secretária executiva, Tereza Dias, ao corpo logístico da missão. Relatou a sua importância nas viagens que realizou pelo país, bem como seu fervor pela igreja como fiel e ainda brincou:
— “Parece que minhas palavras de esperança pela África encontraram eco em seu coração”. — Carlos Vinícius comemorou aquela novidade enquanto estabelecia como data-limite para a chegada do grupo ao aeroporto de Kampala, capital de Uganda, ainda em outubro de 2018, já perto do fim da estação das chuvas...

CAPÍTULO 11
“Quem ama precisa respeitar a decisão do outro, ainda que lhe doa. Há uma eterna negociação no casamento e sempre um terá que ceder. É preciso que essa negociação não se transforme n’um jogo de poder, impondo ao outro sempre a sua vontade. “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Júlia decidira ir até a casa da mãe de Tereza para encontrá-la. A notícia de que partiriam junto com o grupo inicial de missionários para Uganda em outubro deveria ser dada pessoalmente. Lá, reencontrara as meninas e seu coração fraquejou “Como deixar essas crianças sem mãe? Em nome de quê? Deus? Amor? Humanidade?...” — e concluiu consigo — “Eu parto consciente que é meu mais profundo desejo ser missionária. Mas, Tereza, ela parte por minha causa!...” — Júlia se sentou no chão e começou a colorir com Luna enquanto Letícia recortava cartões. Tereza se demorava no escritório da igreja. Como haviam acordado, mesmo assuntos pastorais, como aquele também era, não seriam discutidos diante dos outros.
Tereza chegou em casa e abriu um sorriso enorme, de orelha a orelha, ao ver Júlia sentada com suas filhas. Abraçou, efusiva, uma após outra e se sentou também. Olhou furtivamente para Júlia e ela lhe sorriu. Apesar de sua saída intempestiva, estava tudo bem entre elas. Sem pressa alguma, dividiam lápis de cor e canetinhas enquanto coloriam livros de histórias bíblicas. Depois, prepararam café e suco para lancharem torradas com as meninas. Júlia as chamou para passearem n’alguma praça por perto e elas se animaram. Foram a pé mesmo. Na praça que Luna e Letícia costumavam a ir tinha um parquinho velho, no qual nunca se cansavam de ir. Quando finalmente ficaram a sós, Júlia fez sua última tentativa:
— “Tens certeza de que és capaz de deixar tuas filhas aqui para passares ao menos um ano na África?”. — Tereza sentiu o baque, mas respondeu:
— “Claro que será muito difícil para mim e, sobretudo, para elas. Entanto, acredito que partir para o Sudão seja algo que me tornará uma pessoa melhor. Sei que sofreste muito lá, mas também sabes que lá o que fazemos tem mais sentido.” — e concluiu — “Se precisas ir, irei contigo.” — Julia baixou os olhos, respirou fundo e voltando-se de novo para ela, começou a contar as novidades:
— “Eu estava disposta não permitir de modo algum que viesses comigo na missão, Tereza. Eu simplesmente não suportaria viver com a culpa de que te separei de tuas filhas, fosse por ano; fosse por...” — Não conseguiu concluir a frase.
— “Enfim.” — prosseguiu Júlia — “Se isso acontecesse, não seria por que eu te fiz correr riscos comigo e te desviei da tua vocação primeira que é ser mãe d’elas.” — E olhando em seus olhos, disse-lhe:
— “Mas disseste uma coisa ontem que me mudou totalmente. Aquela frase “Irei aonde fores” fez que me lembrasse d’uma passagem do Livro de Rute.” — Júlia abriu um aplicativo no celular e leu para Tereza:
[i]14 ”Então, elas desataram de novo a chorar. Orfa beijou a sua sogra, porém Rute não quis separar-se dela.
15.”Eis que tua cunhada voltou para o seu povo e para os seus deuses – disse-lhe Noemi –. “Vai com ela! ”
16.”Não insistas comigo – respondeu Rute – para que eu te dei­xe e me vá longe de ti. Aonde fores, eu irei; onde habitares, eu habitarei. O teu povo é meu povo e o teu Deus, meu Deus.
17.Na terra em que morreres, quero também eu morrer e aí ser sepultada. O Senhor trate-me com todo o rigor, se outra coisa, a não ser a morte, me separar de ti!”
18.Ante tal resolução, Noemi não insistiu mais.“[/i]

— “O curioso” — disse a pastora — “é que a situação de Rute e Noemi n’aquele tempo é muito parecida com a que ainda hoje se percebe na África, ou seja, mulheres se deslocando d’um lugar para outro para sobreviverem”. E gracejou — “Essa é uma passagem muito usada na celebração de casamentos, mas, em geral, omitem que é uma mulher — Rute — declarando amor e fidelidade a outra mulher — Noemi, sua sogra. ” — As duas riram juntas. De facto, Tereza conhecia a passagem, mas jamais havia reparado n’isso. Olhando nos olhos de Tereza, Júlia começou uma espécie de confissão:
— “O amor é um mistério com que Deus nos faz conhecer a Sua face. Por amor, vale a pena viver. Eu tenho aprendido muito com o teu amor, Tereza. Logo eu, que passei os últimos anos ensinando as pessoas a amar “de modo reto”, ainda que a sabedoria de Deus que se furte à razão humana...” — e continuou a pastora:
— “Eu busquei um casamento perfeito, blindado pela fé, onde mulher e homem se respeitassem e fossem iguais. Eu e Carlos nos preparamos para o casamento e acreditamos ter encontrado um saber relevante para ser compartilhado com os casais cristãos. Escrevemos, palestramos, entramos na casa das pessoas pela TV... Mas a fama que adquirimos cada vez mais me incomodou e me fez buscar um modo mais autêntico de viver minha fé. Sempre sonhei em ser missionária na África, não em ser uma princesinha na mídia gospel”. — Júlia buscou a mão de Tereza sem ligar se estavam olhando:
— “Meu marido tentou me demover de todos os modos. Ameaçou inclusive impor sua autoridade bíblica de esposo para que eu mudasse de ideia. Eu apenas ri. Respondi que me divorciaria d’ele se se colocasse entre mim e minha vocação. Afinal, como obedecer a um marido, quando quem me chama é Deus através das pessoas que sofrem? Carlos Vinícius entrou em parafuso: O casal blindado cristão se divorciando por causa do chamado de Deus?... Era um escândalo que destruiria sua imagem diante da igreja, enquanto eu seguiria pouco me importando com essa fantasia doentia que fizeram em torno de nós dois”.
Escurecia. Já estavam ali há mais de uma hora. Resolveram pegar as meninas e voltar para casa. Tereza mandou as duas se banharem enquanto sua mãe preparava a janta. Tereza lhe pediu que desse comida às pequenas, enquanto ela e sua amiga conversavam. As duas foram para a varanda da velha casa e se sentaram n’um banco do mínimo jardim que sua mãe mantinha com tanto zelo.:
— “Essas plantas são o orgulho de minha mãe.” — Disse Tereza à Júlia ao se acomodarem. Ali, no escuro, observavam o movimento da rua, enquanto se davam as mãos sem serem vistas. Júlia continuou sua confissão:
— “Carlos, vendo que eu não mudaria de ideia, passou a enxergar a missão na África como um modo de adquirir ainda mais respeito e admiração entre as igrejas cristãs.” — Júlia sorriu, desdenhosa:
— “Ele percebeu que aquilo poderia ser uma oportunidade para ele próprio, pois, esse carisma de ajudar casais cristãos tem grandes limitações pastorais em si: Ser famoso por um livro de autoajuda que se torna conteúdo a se repetir indefinidamente pelas mais diversas mídias havia se tornado uma gaiola dourada para nós... Tínhamos de estar sempre felizes, jovens, bonitos e apaixonados mesmo não sendo real. Estávamos sempre em público, à vista das pessoas, exigindo de nós a imagem que lhes vendemos, não a realidade de dois seres humanos que vivem juntos”.
Tereza ouvia em silêncio. Muito do que Júlia lhe dizia já lhe era sabido desde o tempo em que era apenas uma fiel a frequentar os cultos da igreja: O pastor e a pastora sequer pareciam um casal quando estavam a sós na igreja. No púlpito, porém, eram homenagens românticas melosas que se repetiam no sentido de emocionar a assembleia e lhes inspirar, igualmente, o trato romântico em seus próprios casamentos. Até Afonso entrara n’aquela onda... Júlia voltou a falar:
— “Eu não cabia n’aquele retrato de “felizes para sempre”. Carlos, por outro lado, nem queria saber de buscar outros carismas para o trabalho pastoral: Envelheceriam dizendo e fazendo as mesmas coisas! Em casa, porém, mal nos falávamos... Ele é um homem metódico que se ocupa em planos de negócios e em usufruir das benesses do que conquistou. Buscou arduamente o sucesso, a aparência, a forma, enquanto eu busquei o conhecimento, a essência e o conteúdo. Formávamos uma dupla bem-sucedida na medida em que a ambição d’ele completava a minha em torno d’um objetivo comum, isto é, atingir as pessoas e influenciá-las. — Tereza reparou que a pastora remexia sua aliança enquanto falava. Júlia continuou:
— “Mas, talvez, até pela castidade antes do casamento, jamais fomos um casal ardente, apaixonado. — E olhou para Tereza:
— “Eu jamais vivi com Carlos, ou mesmo com Leilah, nada parecido do que vivo contigo.” — Tereza quis saber d’ela:
— “Como era essa mulher, essa Leilah?” — Júlia corou e sorriu, adiantando-se à Tereza:
— “A mulher que me ensinou a amar mulheres?” — E ela respondeu:
— “Sim, Leilah. A jovem egípcia que estudou na Inglaterra. Muito inteligente, muito bonita, curvilínea e... Muito sensual!...” — E gargalhou ao ver os olhos de Tereza faiscantes de ciúme:
— “Calma, meu amor, ela é passado bem no passado. Tenho boas lembranças com ela, mas, venhamos e convenhamos, aquilo acabou muito mal...” — e passou a relatar o tempo antes de Khartoum, ainda no Cairo, quando se conheceram e passaram meses fazendo turismo enquanto Carlos Vinícius peregrinava pela Europa e por Israel buscando investidores para seu projeto de missão e produzir conteúdo piedoso para as igrejas no Brasil. Ela e Leilah se aproximavam à medida que a viagem para o Sudão do Sul se impunha, tornando-se de amigas a amantes. Olhando a partir do desfecho, porém, não podia deixar de ver no plano de Leilah de entrar no Sudão por Khartoum, após todos os contratempos, uma espécie de armadilha:
— “Ela sabia que um país onde a xaria é aplicada como no Sudão não era amigável a estrangeiros como o Egito... De qualquer modo, sempre é muito difícil chegar ao Sudão do Sul, pois, os únicos aeroportos existentes no país são controlados pela ONU e o território é cercado por reservas naturais imensas dos países vizinhos. Inclusive por causa do prolongado período de guerras civis, as fronteiras são fechadas e apenas passam refugiados em deslocamento. Há pouco comércio internacional, com exceção do Sudão, ao norte, que mantem oleodutos para transportar o petróleo que os sudaneses extraem ali para os portos do mar Vermelho. O problema é que, por causa do conflito de Darfur, o Sudão se tornou ainda mais inflexível com os estrangeiros no país... Leilah nos levou ao inferno em terra que os muçulmanos criaram para os cristãos! ” — Júlia se emocionou com as lembranças d’aquele período:
— “Nunca imaginara viver tamanha tensão. Carlos surtou e eu, se não fosse por Leilah, também teria surtado. ” — Júlia continuou:
— “Tudo isso para descobrir, somente agora, que por Uganda tudo é infinitas vezes mais fácil. Leilah, por ser egípcia e muçulmana, escolheu aquele que era o melhor caminho para ela, não para nós! Isso até não ter outra opção senão me abandonar ainda ao norte da fronteira com o Sudão do Sul... Se tivéssemos conseguido chegar juntas a Malakal, subindo o Nilo, ela não teria como me deixar mais. Teria de entrar na zona de conflito junto comigo e correr os riscos que eu corri... ”
Tereza a olhou longamente. Era difícil de imaginar que uma mulher tão jovem já tivesse passado por tanta coisa. Ela pegou suas mãos, as beijou delicadamente e as pôs em suas faces. Estava arrepiada. Júlia a olhou e a beijou suavemente:
— “Sim, meu amor, por Uganda a gente consegue. Falei com Carlos hoje de manhã e lhe disse que irás conosco para Kampala. Será muito difícil, mas não passaremos o risco que passei.” — Os olhos de Tereza se acenderam:
— “Então vamos juntas?” — E Júlia respondeu — “Aonde fores, meu amor, eu irei”.

CAPÍTULO 12
 “Na saúde e na doença... Eis o juramento mais belo e o mais difícil de se cumprir. Amar na doença é ser capaz de enxergar, para além das aparências e circunstâncias, a pessoa pela qual nos apaixonamos. Quem não é capaz de nos amar quando estivermos caídos, será que de facto nos amou um dia? “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Carlos Vinícius, pastor neopentecostal brasileiro, caminhava pela rua junto ao porto de Lübeck. O verão da Alemanha, à maneira d’uma pintura impressionista, coloria de embarcações o velho porto báltico de águas frias e azul profundo. O marido de Júlia era um homem ainda jovem, circunspecto, olhando para a distância do mar. Recuperava-se bem do colapso nervoso, meses antes em Khartoum, quando fora embarcado sedado n’um avião comercial para Hamburgo. Acordara durante o voo, confuso-mas-aliviado de sair do Sudão, demorando para atinar que Júlia ficara sozinha em Khartoum. De Hamburgo, recebido pelo ex-professor de Júlia, foram para a casa d’ele, a uma hora de trem, em Lübeck.
Era inverno e a cidade pareceu-lhe escura e cinza. Conversando — meio em português e meio em inglês — o professor procurava apoiá-lo. Destacava a coragem e desprendimento que tiveram, ele e Júlia, em levar a igreja evangélica aos rincões da África Oriental. Com efeito ele próprio, luterano, lembrava-se do Brasil com carinho de missionário e admirava sobremaneira quem movido pela fé em Cristo se dedicava ao trabalho humanitário. Carlos, fragilizado, perguntava por Júlia. Ele não tinha muitas notícias... As semanas passavam devagar, com dias curtos e frios. Sua rotina era acompanhar o professor e sua família aos cultos na igreja luterana e fazer o tratamento psiquiátrico. Além da síndrome de pânico, precisava lutar com a raiva que sentia de tudo aquilo: Como pudera permitir que Júlia ficasse sozinha n’um país como o Sudão? Esperava pelo pior...
Seus temores foram sanados quando, após meses, a igreja no Brasil lhe comunicou que a pastora Júlia lhes contactara a partir d’uma base militar em Uganda. Enviaram-lhe recursos para que pudesse se encontrar com ele na Alemanha. Estava a salvo! Carlos Vinícius fez questão de publicizar sua gratidão, orando via SKIPE com a igreja no Brasil, com telão para a assembleia... Fotos de Júlia resgatada em Uganda eram projetadas em meio seu júbilo pela bondade de Deus. Eram, os dois, heróis do Evangelho! Imediatamente o pastor Carlos recobrou seu ânimo e contactou toda mídia gospel para repercutir o grande feito de Júlia enquanto ele próprio a esperava chegar, a qualquer momento, em Hamburgo.
Quando se encontraram, ainda no aeroporto, Júlia o abraçou e chorou compulsivamente. Estava muito abalada, mais magra e com o olhar perdido. Apenas horas mais tarde, já em Lübeck, conseguiu fazer o relato de suas peripécias pelo Sudão. Sentia-se profundamente fracassada por ter perdido todo o dinheiro que levaram n’uma viagem sem qualquer resultado prático. Pr. Carlos, por outro lado, exultava com sua aventura, gravando vídeos e mais vídeos para os fiéis do Brasil d’aquele milagre que era o retorno da Pra. Júlia. O professor que os acolhia chegou a se incomodar com tanta exposição de sua ex-aluna visivelmente fragilizada e rogou ao pastor que parasse de importuná-la. A exaustão de Júlia não passava e eles começaram a se preocupar com sua sanidade. Por fim, Júlia implorou para voltar a São Paulo e rever os pais e irmãos. Carlos Vinícius, porém, preferiu ficar. Planejava novas viagens a Uganda enquanto contactava operadores de fundos financeiros de igrejas cristãs na Europa. Enviou a Pra. Júlia ao Brasil, com pompa e circunstância em vídeos às igrejas, para que a auxiliassem no trabalho pastoral de levantar fundos em todo o país para a missão. Júlia, sem opções, concordou com aquele teatro.
Nada d’aquilo fazia sentido para ela. O que presenciara na África era uma situação caótica onde esforços missionários e humanitários redundavam em fracassos gigantescos. A guerra e a natureza minavam a resistência de quem quer que fosse, como se a miséria generalizada tivesse se tornado a única realidade possível n’aquele lugar. Por mais que dissesse a Carlos que não voltaria ao Sudão em hipótese alguma, ele não a escutava. Argumentava que ela havia lhe mostrado, por Uganda, a possibilidade de criar um corredor humanitário para atender, ao menos, o povo Kuku no extremo sul do país:
— “Sem muçulmanos por perto” — ele dizia — “Poderíamos fazer valer a força do dinheiro arrecadado” — e concluiu — “Há muitas igrejas cristãs em Moyo, no norte de Uganda. Pretendo fazer de lá uma base para operar ações pastorais e humanitárias em Kajo Keji”. 
Júlia ouvia, mas não entendia. Acompanhava os relatórios das Nações Unidas por meses e sabia que aquela região era uma das mais afetadas pela guerra civil em curso. Em sua breve passagem por Uganda, a pastora soube que o norte do país se tornara o destino de milhões de deslocados vindos de Kajo Keji e de toda a Equatória Central. Em abril de 2018, quando Júlia foi resgatada, falava-se em cerca de dois milhões de refugiados sul-sudaneses se abrigando em campos pelos distritos do Norte, inclusive Moyo, onde Carlos Vinícius pretendia ficar. As notícias eram de que Kajo Keji — um lugar que chegou a ter cerca de 160 mil habitantes — havia se transformado n’uma cidade fantasma! Mesmo agentes experientes do ACNUR — Comissariado das Nações Unidas para Refugiados — relatavam entre lágrimas a situação de abandono e destruição em que encontraram a grande cidade do povo Kuku em março d’este ano. Era difícil imaginar n’uma realidade d’estas como realizar qualquer trabalho pastoral que fosse. Esperava ao menos que, quando Carlos Vinícius conhecesse o norte de Uganda, aquela realidade o demovesse d’uma segunda aventura.
Chegando ao Brasil no início de maio, a Júlia voltou muito diferente para seu trabalho pastoral. Não via qualquer sentido em continuar pregando sobre casamentos blindados quando seu próprio marido não a escutava. Ela chegara no limite com aquela história: O colapso nervoso de Carlos em Khartoum ela até entendera, mas essa incapacidade de enxergar que ela também estava destruída por dentro a incomodava muito:
— Que comunhão de almas era essa — perguntava-se sozinha — “quando nada do que dissemos faz diferença para o outro?”. A contragosto, Júlia obedece a determinação de viajar pelo país arrecadando doações para a missão em Kajo Keji, conforme o novo plano do pastor, na esperança de que algum facto novo acontecesse e mudasse tudo, na África ou no Brasil.
Sem embargo, não demorou muito: As conversações pelo fim da Guerra Civil em Sudão do Sul tiveram início em Adis Abeba, Etiópia, no início de junho — enquanto Tereza e Júlia se retiravam para a semana com Luna e Letícia em Itacaré... —  e foram apresentadas para o mundo como um cessar-fogo imediato entre as tropas antigoverno e as do governo. A partir d’ali, o Pr. Carlos Vinícius não tinha mais dúvida de que estariam em Uganda ainda em 2018 para, em 2019, começarem a construir uma igreja pentecostal de Kajo Keji. Até o início das chuvas em abril, quando as estradas ficam intransitáveis, deveriam ter ao menos um teto para reunir as assembleias e pregar o Evangelho. Marcava a data de chegada a Moyo para outubro, quando começa a estação seca para transitarem nos cerca de 150km entre Kajo Keji e Juba, a capital do Sudão do Sul, para terminar de oficializar a presença institucional da igreja em solo sul-sudanês. Conforme acordado com as autoridades ugandesas, o posto de Moyo serviria para atender os refugiados do povo Kuku e ajudá-los a serem repatriados, n’um trabalho basicamente humanitário. De volta ao território sul-sudanês, entretanto, os refugiados seriam acolhidos pelo trabalho pastoral de Júlia e a missão se tornaria, enfim, uma comunidade.
Enquanto concluía seu passeio pelo porto de Lübeck, Carlos pensava na resistência de Júlia ao início da missão que justamente ela tanto quisera. Há meses que só ouvia desculpas e lamentações... Os preparativos para a missão somados aos esforços que envidara junto a autoridades ugandesas, sul-sudanesas e da ONU fora extenuante. Todavia, estava satisfeito com o desenrolar das coisas. Os relatórios que recebia da igreja eram mais animadores que as conversas com Júlia.
Aliás, desde que a encontrara em Lübeck, no inverno passado, sua esposa nunca mais fora a mesma. Havia agora uma relação quase profissional entre eles. O pastor tinha consciência de que há muitos anos seu casamento se transformara n’uma empresa onde ele e a esposa tinham papéis complementares. Após o Sudão, porém, os dois se distanciaram a ponto de não se reconhecerem.
Carlos Vinícius era pastor, mas nunca fora santo. Era filho d’um pastor neopentecostal da periferia de Guarulhos e tinha vontade de chegar longe. Não se pretendia profundo conhecedor da Bíblia ou de minúcias teológicas, mas era um empreendedor nato com faro para estratégias vencedoras de marketing. Ele entendia seu trabalho pastoral basicamente como o de um bom comunicador e se esforçava para passar credibilidade e coerência em seus sermões. Quando conhecera Júlia, ela era uma jovem pastora luterana culta e fotogênica cujo entusiasmo o impressionou: Embarcaram n’uma ampla campanha pelo namoro casto que tinha na relação dos dois, ambos muito jovens e religiosos, um apelo imenso. Ele gostava muito d’ela então, mas o assédio de fiéis — e mesmo de mulheres mundanas — era constante. Carlos tinha aparência de bom moço e se vestia muito bem. Sempre chamava a atenção e, quando tinha oportunidade, dava suas escapadas com muita discrição. Não via qualquer problema em dar às pessoas o que elas queriam: Se admiravam um jovem pastor se casar virgem, desmenti-los para quê?
A pastora só fora perceber algo de errado quando já estavam casados fazia anos... Basicamente, por causa dos contactos políticos que estabelecia para o prestígio da igreja, Carlos Vinícius se permitia virar a noite com eles em endereços duvidosos. E ainda justificava para Júlia:
— “Homens públicos, mesmo evangélicos, têm de se relacionar com todo o tipo de gente para ter poder. É preciso acompanhá-los aonde forem, mesmo que seja em noitadas.” — Júlia não se convencia, mas relevava. Tinha grande confiança no talento de Carlos para que a visibilidade da igreja e sua reputação se estabelecesse na mídia gospel e nos centros de poder. Sabia que Carlos jogava com ela e com eles... Não obstante, ficava cada vez mais incomodada com sua extensa agenda de compromissos e sua ambição desmedida. O facto é que o trabalho pastoral d’eles se tornara um grande sucesso e sua igreja se expandia por São Paulo e pelo país inteiro.
Júlia era a primeira a reconhecer ser sobretudo mérito d’ele tamanho resultado em tão poucos anos. Apenas não se identificava mais com o casal que estampava capas de livros e se apresentava na TV. A missão, mais do que uma evolução do seu trabalho pastoral, era sua salvação enquanto cristã. Não conseguia mais ver o casamento blindado como um fim em si mesmo... À medida que os anos passavam, percebia cada vez mais absurda a ideia de que o casamento seria, de facto, um caminho de santidade. Ao contrário, não conseguia se imaginar tendo filhos e envelhecer enquanto seu marido se tornava mais atraente e distante. Incomodava-a que se preocupasse tanto em se manter apresentável ao seu lado sem perceber nada em seu marido senão vaidade. Fosse como fosse, aquilo não era amor.
Longe, em Lübeck, o pastor Carlos olhava para o mar, mas enxergava as savanas de Uganda.
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Afonso chegou no final da tarde à casa da mãe de Tereza com Luna e Letícia. Era domingo e passaram o dia no Ibirapuera. Elas estavam muito alegres com o passeio e tagarelavam sem parar sobre tudo que viram. Sem pressa, Afonso demorava-se assistindo a festa das duas. Após alguns minutos admirando-se com os relatos, a mãe de Tereza as chamou para o banho. Tereza e Afonso ficaram sozinhos na sala e começaram a conversar sobre as meninas. Tereza então o abordou:
— “A igreja me chamou para trabalhar como membro da equipe logística que dará suporte aos missionários em Kajo Keji, Afonso, no Sudão do Sul”. — Afonso não esperava por aquilo:
— “Como é que é?! Mas, e nossas filhas?...” — Tereza respondeu — “Será por doze meses, durante os protocolos oficiais de implantação da missão. Não vou como voluntária ou missionária. É profissional”. — Irônico, Afonso atalhou:
— “Profissional?! Sei...” — e continuou — “Eu não acredito que uma mãe possa deixar as filhas para acompanhar a namorada pelo mundo!” — Tereza, indignada, o interrompeu:
— “Eu não as estou abandonando. Isso é trabalho! Elas vão ficar com minha mãe e espero que continues vindo vê-las normalmente. Em doze meses, volto e fica tudo como está.” — Afonso não se conformava:
— “Eu posso requerer a guarda d’elas...” — Tereza nem o deixou terminar:
— “Como? Se estás fichado por crime sexual? Na actual conjuntura, eu é que poderia requerer uma medida protetiva!” — Afonso redarguiu:
— “Isso é golpe baixo, Tereza!” — Mas ela não se intimidou:
— “Golpe baixo é dizer que uma mãe não pode aceitar uma proposta de emprego vantajosa por causa dos filhos... Ou preferes que elas venham comigo? Parte da missão ficará baseada em Uganda que, proporcionalmente, é um lugar mais seguro que o Brasil.” — Afonso percebera-se de pés e mãos atados:
— “Não! Isso não.” — E mudando de tom — “Olha, Tereza, pensa melhor... Isso é uma loucura. Essa mulher, mais cedo ou mais tarde, vai se reconciliar com o marido e te tirar da vida d’ela. Eles têm um império juntos! Achas que ela vai abrir mão de tudo por tua causa? Jamais!” — Tereza, então, a defendeu:
 — “Não devias falar tanto d’alguém que conheces tão pouco... Júlia é problema meu! Se estamos juntas ou não, isso não é da conta de ninguém” — refletindo, completou: — “Se tiver de ser abandonada, que seja lutando pelo amor d’ela, não desistindo de tentar por não ser conveniente para ti.” — e concluiu;
— “Afonso, isso era tudo que eu tinha a dizer. Obrigada por se preocupar comigo”.
Afonso ficou atordoado. Jamais poderia esperar por algo como aquilo. Ao contrário, tinha esperança de que Tereza e Júlia rompessem em breve e sua ex-mulher lhe desse outra chance... As meninas voltaram do banho e foram abraça-lo. A mãe de Tereza, que gostava de vê-lo com as netas, pediu-lhe que tomasse um café enquanto Luna e Letícia lanchavam. Afonso agradeceu, mas aproveitou para despedir-se e sair.
Já na rua, Afonso procurava alinhar os pensamentos: “Talvez não fosse tão ruim... Não poderia ficar com as meninas, de qualquer modo. Minha vida era muito mais desconfortável no estúdio que no apartamento; não havia condições de criar as meninas lá. Por outro lado, tal como Tereza, também eu adiei por anos o momento de levar mais a sério minha carreira. O importante é que suas filhas ficariam bem”.
O caso de Tereza com Júlia lhe serviu de catapulta para se lançar d’aquele mundinho do casamento. Ela estava mais feliz e mesmo ele, Afonso, apesar dos pesares, também estava. Além do quê, tudo podia mudar n’esse meio tempo, pensava: “Júlia terá de escolher e, quando acontecer, não quero ser inimigo de Tereza por ter sido um obstáculo sua na vida. Melhor deixar como está! ”. Afonso seguiu até o carro, estacionado na travessa, e foi encarrar a marginal Tietê...
Júlia ligava, pouco mais tarde, perguntando como havia sido com Afonso. Tereza lhe disse que tudo bem, isto é, fora firme e ele teve de se resignar. As duas marcaram de ver no apartamento d’ela mais tarde. Tereza foi ficar com as meninas.
Tereza chegou já eram 22hs... O apartamento ficava na Vila Mariana, uns vinte minutos da casa de sua mãe. Esperara as meninas e mãe dormirem, mas avisara que sairia. Júlia estava linda, vestindo apenas um quimono rosa de seda e muito, muito perfumada...
Mal abriu a porta, Júlia já puxou Tereza para dentro e começou a beijá-la. Desajeitadamente, fecharam a porta e se arrastaram junto à parede do corredor, abraçadas, até alcançarem o estar. Tereza deixou sua bolsa cair sobre o carpete com as chaves do carro e o celular enquanto sofria o ataque de Júlia. Quando finalmente se viu com as mãos livres, estreitou o rosto de Júlia entre as palmas e pôs-se a beijá-la com mais delicadeza, como se tentasse dominar a situação. Logo, contudo, começou a sentir a mão de Júlia se lhe enfiar pela saia até alcançar seu púbis. Ali, avidamente, começou a dedilhá-la enquanto a beijava. Tereza se sentia amolecer, lânguida, àquele toque ao mesmo tempo forte e ritmado por cima da calcinha de renda azul marinho que usava. Perdera o controle da situação de novo, face à fome de Júlia em comê-la. Esta não se continha em sua sincronia de beijos e toques, misturando seu forte perfume à excitação de Tereza que se desmanchava em seguidos orgasmos. As pernas começaram a lhe faltar, tal o frêmito d’aquelas carícias, deixando-se escorregar as costas pela parede até ficar de cócoras, com Júlia agachando-se sem se parar de beijá-la. Por fim, Tereza não aguentava mais e pediu a Júlia que parassem um pouco. Ela se recompôs, levando-se enquanto Júlia, ainda agachada, lhe tirava a calcinha toda melecada. Ao ver o estilo da peça — pequena e delicada, com rendas e um lacinho de cetim — não pôde deixar de gracejar com Tereza:
— “Esta agora é minha!” — E, vestindo por sob o quimono a calcinha húmida, Júlia gracejava, exibindo-a. Ao que Tereza explodiu:
— “Rapariga! Quem vai melecar essa calcinha agora és tu! ” — E, inclinando-se sobre ela, deitou-a sobre o carpete e começou a lhe sugar os seios que irrompiam das frestas da roupa. Acto contínuo, Tereza reclinou-se ainda mais sobre Júlia, a enlaçou pela nuca com uma mão enquanto a outra lhe descobria o sexo pela abertura do quimono e lhe tocou por cima da calcinha rendada, tal como Júlia havia feito.
Ao contrário de Tereza, Júlia não gozava rápido nem seguidas vezes. Mas, quando atingia seu clímax, virava os olhos pelas órbitas n’um transe intenso e devastador. Era isso que Tereza buscava, dedilhando cada vez mais rápido seu clitóris com o polegar enquanto penetrava sua vagina com os dedos em concha, arredando a calcinha ali. Júlia enrubescia as faces e seu corpo tinha espasmos, sendo cruelmente castigada por Tereza que, fora de si, dizia coisas desconexas:
— “Mela minha calcinha, rapariga! Vai mexer com quem ‘stá quieto, vai!... Qual! Na hora de me virares o olhinho, não reclamaste... Mela! Encharca minha calcinha. Sim, é minha calcinha. Tu agora tens meu cheiro e eu tenho o teu... Eu sou tua e tu és minha!...” — De repente, Júlia projeta-se para frente e, completamente descontrolada, despeja um jato forte e quente de urina misturada ao gozo logo à frente de Tereza que, sem se tocar, chega ao seu terceiro orgasmo, caindo, desfalecida e molhada, sobre o carpete.
Aos poucos, recompondo-se, Tereza se lastima com Júlia:
— “Qual! Que bagunça aprontamos, querida...” — Júlia não conseguia se mexer. Apenas balbuciava qualquer coisa à guisa de concordância. Tereza se levantou e fez menção de pegar algo para passar no chão. Júlia a demoveu:
— “Não, meu amor, agora não. Vem cá...” — E, tomando-a pela mão, levou-a até seu quarto onde, pegando um lenço branco com um jota cursivo bordado em rosa, tirou a calcinha de Tereza, a dobrou com o lenço e lhe devolveu dizendo
— “Meu amor, quero que leves contigo aonde quer que vás.” — Tereza se entristeceu:
— “Isso é uma despedida?” — E Júlia:
— “Não, meu amor. É uma recordação! Quando eu não estiver contigo ou se por algum motivo duvidares do meu amor, quero que pegues esse lenço e, tocando essa calcinha, te recordes do prazer que me deste hoje. Tereza, eu te juro, jamais senti algo tão devastador em minha vida!”.
Tereza, sorrindo, pegou aquele lenço branco bordado com sua calcinha de renda dentro e terminou de se despir para amar Júlia em sua cama.

CAPÍTULO 13
“Uma coisa que nunca nos dizem é que por vezes o amor acaba, mas o casamento não. Sim, com o passar dos anos o corpo muda e a mente também. Do mesmo modo, o sentimento passional se transforma em algo mais generoso e gentil, familiar talvez. Não se deve desistir do casamento por causa dos erros do parceiro, mas sim o ajudar a se levantar. Os laços d’uma vida a dois são maiores que superficialidades.”
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Aterrissaram no mal afamado aeroporto de Entebbe, às margens do Lago Victória. Era sexta-feira, 12 de outubro de 2018. Embora distantes os dias de Idi Amin Dada, aquele lugar ficara estigmatizado como terra amigável ao terrorismo islâmico. O país tinha certa diversidade religiosa e até maioria cristã, mas os muçulmanos já foram poderosos ali, no período do referido ditador. Sem embargo, nada que se compare ao Sudão e sua radical observância da xaria.
Eram, conforme planejado, vinte brasileiros entre missionários, profissionais de saúde e funcionários da igreja, como Tereza. Júlia liderava o grupo, uma vez que Carlos Vinícius preferira se encontrar com eles em Moyo, já nas instalações adquiridas por ele na viagem anterior, vinte dias antes.
A missão — que tinha status de ajuda humanitária — havia obtido credenciais para actuar junto à fronteira com o Sudão do Sul, obtivera vistos de permanência de 12 meses prorrogáveis em até mais 6 meses para cada participante. Para tanto, com passagens de volta já agendadas e pagas, o período em território ugandês seria monitorado com visitas regulares a autoridades e proibições de toda ordem aos indivíduos da missão. Não poderiam, por exemplo, viajar senão em grupo com autorizações prévias para justificar o deslocamento. Tampouco poderiam adquirir propriedades senão aquelas vinculadas ao trabalho humanitário e jamais contrariar determinações do governo. Incidentes eram constantes entre missões humanitárias e as autoridades n’um país que recebera apenas nos últimos dois anos 1,4 milhão de refugiados, entre sul-sudaneses, congoleses e burundianos... Os distritos do norte de Uganda estavam apinhados de gente vinda sobretudo da Equatória Central, no Sudão do Sul. Eram cidades pequenas como Moyo, cuja população não chegava a vinte mil habitantes, que recebiam, do dia para noite, milhares de deslocados pela Guerra Civil Sul-Sudanesa doentes, famintos e, muitas vezes, feridos.
Comparada à escassez que havia no Sudão do Sul, Moyo tinha hospital e energia elétrica, além das muitas igrejas cristãs que havia Carlos Vinícius entusiasmado Carlos Vinícius em sua primeira viagem. A propósito, havia telefonia celular!
A viagem em si já era uma epopeia: Voo noturno pela South African Airways saindo de Guarulhos com escala em Johanesburgo chegando em Entebbe no meio da tarde do dia seguinte... Podia ser pior, pensavam. Mas, já em Kampala, a África se revelava com toda a sua força e contradição. O fim da estação chuvosa se aproximava deixando lamaçais por toda parte e uma humidade sufocante no ambiente:
— “Enquanto, pela altitude, Kampala tinha um clima algo mais ameno, em Moyo” — adiantava-lhes o Pr. Carlos Vinícius — “o clima parecia o de Manaus sem a floresta... Para dormir, só com um ou dois Diazepans.”.
A grande dificuldade era o caminho até Moyo, ou seja, quase quinhentos quilômetros de estradas com toda sorte de pavimentos. Por via aérea, a situação era esquizofrênica... Para aquela região, só havia voos regulares para Juba, capital do Sudão do Sul a cerca de 150km de Kejo Keji e mais 50km até Moyo... Ou seja, entrariam em território sul-sudanês para poderem chegar ao norte de Uganda, o que poderia até ser útil para reconhecimento da zona onde actuaria o braço religioso da missão não fosse o facto de que, historicamente, a estrada de Juba para Kajo Keji fosse simplesmente intransitável, sobretudo no fim do período chuvoso. Sem falar no estado de insegurança generalizado que a Equatória Central atravessara ao longo de todo ano de 2018.
Após contratar seguranças ugandenses e discutir com eles o itinerário, optaram por viajar de Kampala para Moyo n’um comboio de carros, caminhonetes e vans. Júlia resgatou parte dos recursos enviados pela igreja do Brasil — aos recursos europeus apenas Carlos Vinícius tinha acesso — e adquiriu, como propriedade da missão, duas caminhonetes toyota seminovas e um sedan azul marinho usado.
O trânsito em Kampala era caótico, com uma infinidade de ciclistas, motos de pequena cilindrada e pedestres competindo por espaço nas ruas com os automóveis e vans. Praticamente não havia transportes colectivos tal como se conhece no Brasil, sim uma multidão ruidosa de moto-táxis — as ruidosas boda-bodas... Havia, entretanto, uma espécie de caminhão-ônibus que chamou muito a atenção dos membros da missão... Mas muito poucos frente ao mar de vans e motocicletas que abarrotavam as ruas, avenidas e largos, estes últimos, verdadeiros estacionamentos a tomar todo o espaço público!
Após três dias, pegaram a estrada rumo ao norte. Na saída de Kampala, a longa sucessão de bairros pobres e mal urbanizados lembrava muito algumas cidades brasileiras... Em comparação com o Sudão, entretanto, Uganda era um país mais próspero e, sobretudo, acessível por causa da universalidade da língua inglesa e pela tolerância entre cristãos e muçulmanos. Seguiam lentamente o carro guia – no caso, o sedan azul – dirigido pelos seguranças ugandenses contratados pelo Pr. Carlos Vinícius.
Antiga colônia britânica, Uganda seguia a mão inglesa, mas — graças a Deus! — não o sistema de medidas imperial. Tirando a estrada principal, as ruas dos bairros periféricos eram quase todas sem pavimentação.
A rodovia, aliás, era cerca de um metro mais estreita que as brasileiras, tornando a direcção dos autos mais tensa. Junto aos acostamentos, sem qualquer sinalização, apareciam valas fundas e compridas para drenagem pluvial... Observava-se que, ao contrário dos bairros periféricos brasileiros, os ugandenses não viviam espremidos entre becos e barracos verticalizados. Quase todas as casas, mesmo as mais humildes, eram térreas — cobertas com os típicos telhados metálicos oxidados das cidades africanas — e tinham jardins ou quintais! Havia exceções, obviamente, que lembravam mais as áreas de ocupação urbana e conflito de invasão no Brasil: Barracos de tijolos assentados com barro cobertos por telhas quase sem caimento em meia-água, mas, ao menos nos arredores de Kampala, eram mais raros do que em São Paulo ou Belo Horizonte, por exemplo. Era muito comum se topar com igrejas cristãs das mais diversas denominações anexas a casas de família, assim como vendas de víveres ou lojas de miudezas de toda espécies. De quando em quando, terrenos às margens da estrada eram ocupados por grandes sacos de carvão empilhados, visto que os ugandenses pobres não cozinhassem com gás de cozinha, como no Brasil; ou em fogões elétricos, como na Europa. 
Assim, pelas janelas dos autos, o país era percebido em suas semelhanças e diferenças sob os olhos atentos do corpo missionário. A pastora Júlia que, viajava n’uma das vans, junto com outros membros, se sentia pressionada pelos atrasos e contratempos de toda espécie que enfrentavam desde que chegaram ao país, afinal, tudo era sempre mais caro e difícil do que planejado.
A viagem até Moyo estava prevista para dois dias, mas no primeiro só conseguiram avançar duzentos quilômetros... Trânsito muito lento na saída de Kampala, sucessivos pneus furados e motores superaquecidos foram a ordem do dia. Após confirmar com os seguranças do carro guia a impossibilidade de trafegarem mais do que aquilo, cancelou as reservas feitas para o pernoite em Gulu e, também por telefone, tratou de buscar hospedagem na localidade mais próxima, Kibumga.
Fizeram pousada n’um hotel muito dos modestos, contando com o grande luxo de ventiladores e água corrente. A medida que se afastavam da capital, o país se tornava cada vez mais precário em sua estrutura urbana e Kigumba era pouco mais que um entroncamento rodoviário superpopuloso.
Ao fim do dia, na lojinha d’um posto de gasolina de beira de estrada, Júlia sentou-se com Tereza e lhe entregou todos os recibos dos gastos enquanto procuravam refazer o planejamento da viagem para o dia seguinte. Ligou para Carlos Vinícius e fez o relato d’aquele dia na estrada e das últimas horas em Kampala. Haviam gasto muito com a aquisição d’aquela frota empoeirada que já dava sinais de fragilidade desde os primeiros quilômetros na estrada de Kampala a Gulu...
Júlia demonstrava preocupação enquanto Carlos Vinícius era só optimismo. De qualquer forma, Júlia precisava chegar ao extremo norte de Uganda com aquele povo todo atravessando um país que se tornava mais e mais agreste. Conversava com os seguranças ugandenses, procurando lhes sondar qualquer obstáculo ou dificuldade n’aquele itinerário que escolheram. A pastora, obviamente, confiava muito pouco n’eles. Tereza, ao contrário, estava mais animada com o transcorrer de tudo e procurava animar Júlia com o sucesso obtido até o momento. Afinal, sair d’aquele formigueiro em Kampala e organizar o comboio parecia-lhe um grande feito, mesmo ao custo que fora. As duas se comportavam com total discrição à vista dos outros, sequer viajando na mesma van. Aquelas reuniões contábeis ao fim do dia eram os raros momentos que passavam juntas, dividindo tarefas para o dia seguinte e trocando observações sobre o ânimo dos demais. Tereza tornara-se um apoio inestimável àquele corpo missionário, transitando entre as pessoas com uma liberdade e agilidade que Júlia não poderia se permitir. Era amiga de todos, inclusive dos seguranças ugandenses, procurando aprender o máximo sobre o pais e seus costumes. Embora conhecesse bem os missionários da igreja, em geral era mais reservada com eles que com os profissionais de saúde agregados ao corpo. Júlia e Tereza consultavam mapas e faziam ligações para autoridades ou colaboradores n’aquela base de operações improvisada enquanto a tarde caia bastante abafada.
Dia seguinte, partiram cedo para Gulu, a cerca de 130km ao norte contornando reservas ambientais. Ali, definitivamente, sentiam-se na África. Atravessavam vastas extensões de savanas entre ajuntamentos urbanos cada vez mais rarefeitos e distantes entre si. Após algumas horas de viagem, chegaram à ponte de Karuma, onde o rio Nilo é chamado de “Nilo Victória” por se tratar d’um trecho do grande rio entre o Lago Victória e o Lago Alberto. Embora Karuma fosse cercada de grandes mineradoras, aquele trecho encachoeirado atraía turistas e aventureiros para uma das paisagens mais conhecidas do país. A travessia pela ponte, contudo, fora meio decepcionante, com uma parada rápida à beira da estrada mesmo, sem explorar os arredores. Após chegar ao lago Alberto, sempre seguindo para o norte, o rio mais extenso do mundo passa a ser chamado “Nilo Alberto” até que em Nimile, na divisa entre Uganda e o Sudão do Sul, mude de nome novamente para Nilo Branco. Aproximando-se de Moyo, seguindo o curso planejado, o comboio cruzaria novamente o Nilo por balsa em Laropi.
Os guardas ugandenses contaram a Tereza que aquela região havia sido palco d’uma estranha política pública nos anos noventa pela qual aldeões e povos nativos foram obrigados a viver em campos mantidos pelo governo. Curiosa a política, porque não se tratava de refugiados, sim cidadãos ugandenses. O norte de Uganda sempre fora a região menos desenvolvida do país, desde os tempos coloniais. O poder central sempre temeu levantes separatistas na região e, de facto, havia mais tensão e silêncio nas paradas que faziam nos postos de gasolina e nos vilarejos que atravessavam. A despeito d’isso, a viagem transcorreu tranquila, chegando a Gulu sem mais problemas por volta do almoço. Embora fosse uma cidade grande e relativamente confortável, Júlia desejava continuar a viagem até Atiak durante a tarde, percorrendo mais 150Km. Os seguranças ugandenses se opunham... Atiak era um lugarejo muito modesto, ainda mais pobre que tudo que já haviam visto pelo caminho e, sobretudo, fora o centro de eventos que envolviam grupos separatistas e uma escalada de violência que por muito pouco não redundou na guerra entre sudaneses e ugandenses, em meados dos anos noventa. Lá tivera lugar um massacre que redundou na morte de cerca de trezentos civis bem como no aliciamento de meninos forçados a acompanhar os rebeldes como combatentes e ainda no sequestro de meninas transformadas em escravas sexuais. Era um povo de feridas profundas atemorizado por ex-guerrilheiros cujo bandismo ainda tornava a região bastante insegura. Deviam atravessá-la de manhã e pernoitar já Moyo para não terem problemas maiores. Mesmo assim, a partir da saída de Gulu, os seguranças preferiam viajar armados nas carrocerias das duas picapes enquanto membros da missão dirigiriam o carro guia no lugar d’eles.
Júlia ouviu os argumentos e concordou. Não podia correr riscos desnecessários e concordava com a dificuldade de permanecer em Atiak n’aquela noite, pois, o plano original previa exactamente pernoitar em Gulu e chegar Moyo no início da noite seguinte. Entre Atiak e Laropi, eram cerca de 67Km de estrada de chão e ainda o tempo de espera da balsa com que cruzariam o Nilo Alberto. Já do outro lado do rio, ainda teriam mais 25Km comendo poeira até Moyo. Atrasariam a chegada à base da acção humanitária em um dia, mas chegariam sem sustos.
Hospedaram-se em Gulu n’aquela tarde e actualizaram Carlos Vinícius da decisão. Este insistiu para que se adiantassem e contra-argumentou que a realidade em Moyo e em todo o norte só não era mais estável por causa dos refugiados sul-sudaneses em deslocamento pela região, mas Júlia se inclinou pelo posicionamento de seus seguranças. Foram conflitos e tensões como aqueles de Atiak que a fizeram preferir o Sudão ao invés de Uganda em sua primeira viagem à região...
Tomada a decisão de permanecer em Gulu, hospedaram-se no hotel que haviam reservado para a noite anterior e tiveram todos uma tarde livre. Todos, menos Júlia e Tereza que repetiram a rotina de se reunirem com a papelada da missão, notebooks e celulares em qualquer mesa que estivesse disponível para planejar o último trecho da viagem. Decidiram se revezar as duas na direcção do carro guia pelo itinerário de 185km que restava a percorrer. Na retaguarda e no meio do comboio, as picapes com os seguranças armados fariam a segurança das vans, logo, o carro mais exposto seria o d’elas...
— “Se morrermos, morreremos juntas.” — Brincou Tereza. Júlia só olhou.

CAPÍTULO 14
“Um casal se fortalece na adversidade. Quando atravessam juntos as dificuldades é que a lealdade, mais que a atracção física, prevalece. É preciso esperar a relação amadurecer, dar tempo ao tempo, para que se possa entender o tamanho que aquela pessoa que está diante de você terá em sua vida. ”
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Tereza e Júlia entraram no sedan tão logo o grupo se reuniu em frente ao hotel para sair. Eram 8hs e já haviam tomado o café da manhã. Estavam todos um pouco tensos por saberem aquele o trecho mais difícil da viagem até Moyo. A estrada de rodagem em que trafegavam seguia pavimentada até a capital do Sudão do Sul, Juba, passando por Nimile, onde o rio Nilo entrava em território sul-sudanês. Era a principal via de ligação do jovem país com Uganda e permitia o abastecimento da sua maior cidade. Logo, os primeiros setenta quilômetros entre Gulu e Atiak ainda seriam tranquilos. Entretanto, a partir de Atiak, o comboio deixava essa rodovia relativamente movimentada e seguia por uma estrada de chão batido. Esse trecho do percurso, segundo dos seguranças ugandenses, passava por extensas áreas pouco habitadas e tinha condições precárias de tráfego.
Júlia começou dirigindo. Era bom finalmente estar sozinha com Tereza. Pegou a sua mão e, sem tirar os olhos da estrada, murmurou:
— “Meu amor.” — Tereza sorriu e disse — “Agora sim, irei aonde fores!” — Júlia caiu na gargalhada. Estava uma manhã muito bonita e a estrada era boa. Júlia aproveitou que estavam sozinhas e pôs-se a filosofar, tal como faziam em São Paulo:
— “Eu quero conversar com Carlos tão logo chegarmos em Moyo, Tereza. Não vou mais fingir que sou esposa d’ele. Até aqui, era necessário continuar com a missão e cumprir os compromissos assumidos pela igreja. Assim que puder lhe falar a sós, vou romper com ele. ” — Tereza acompanhava com atenção. Júlia apertou sua mão mais forte — “Ele vai perguntar se eu conheci alguém e eu vou ter de negar para te proteger. Ele pode tornar sua vida muito difícil aqui. Se ele tiver de prejudicar alguém, que seja a mim somente.” — Tereza interveio:
— “Não tenho medo d’ele, Júlia. Mas, se preferes assim, tudo bem.” — Júlia continuou:
— “Ele vai reagir muito mal. Considera que está aqui por minha causa, mas não é: Eu implorei para não voltarmos ao Sudão! Ele não me escutou; não me escuta. Parece deslumbrado com o volume de dinheiro que está administrando e com o respeito que adquiriu junto às igrejas.” — E continuou — “Ele alardeia aos quatro cantos que está me apoiando n’esse chamado missionário, mas a verdade é que toda essa estrutura está sendo montada para ele voltar para Europa assim que puder. No que depender de mim, meu amor, vamos ficar aqui apenas os doze meses do teu contrato. Ele que me substitua depois d’isso!... Voltando ao Brasil, com discrição, eu me divorcio de Carlos. Não quero mais viver uma mentira n’esse casamento de conto de fadas. Ele que fique com a igreja d’ele! Eu trabalharei como terapeuta onde for possível. Qualquer lugar será bom, desde que estejas comigo.” — Tereza sorriu, mas logo uma sombra desanuviou seu olhar:
— “E se um dia também não formos mais felizes juntas? Estás renunciando a anos de muito trabalho... Quanto a mim, depois de tanto tentar fazer o casamento dar certo, chego a duvidar que viver junto seja algo bom para um casal” — Júlia concordou:
— “A vida a dois é sempre um desafio, Tereza, mesmo quando há muito amor. Eu entendo o que queres dizer.” — Mas atalhou:
— “A verdade é que não tem como saber se vai ser bom ou mau. Só vivendo.” — Tereza ainda insistiu:
— “E teu trabalho pastoral?” — Júlia deu de ombros:
— “Igreja cristã nenhuma no Brasil está preparada para a ideia d’uma pastora casada com outra mulher...” — Tereza arregalou olhos:
— “Casada?!” — Júlia corrigiu — “Casada, enamorada, enrolada... O que for! O facto é que não vou ficar mais me escondendo e te escondendo. Chega de mentiras.” — Agora foi a vez de Tereza apertar forte a sua mão:
— “Meu amor...”
Enquanto as paisagens de Uganda se sucediam pelo para-brisa, Júlia continuava filosofando:
— “O grande guia do ser humano é sua consciência. Ali habita Deus: Na interioridade da pessoa. Ao vivermos em comunidade, essa interioridade passa a ser mais ou menos exteriorizada. Decerto há comportamentos destrutivos que a vida em comunidade nos ajuda a controlar, mas mal se ouve a própria voz n’esse burburinho, eu penso. Ainda que isolar-se dos outros não seja, em si, uma actitude de crescimento pessoal, o extremo d’isso, ou seja, pautar a existência pelas expectativas ou moralidades dos outros tende a subverter a própria identidade. Era isso que eu vivia quando te conheci, ainda antes de vir para o Sudão. Ah, eu lembro bem de ti n’aquela época, lá no templo da Avenida do Estado, arrastando tua família para o culto... Eu tinha de fazer aquela pose de princesa gospel e ostentar uma relação dos sonhos com um admirável pastor com quem, na verdade, eu mal convivia. N’aquele dia, Tereza, eu estava no fundo do poço. Já havia chorado até as lágrimas acabarem e tomado calmantes para dar conta de sorrir. Tudo porque as pessoas tinham a expectativa de ver pessoalmente a pastora da TV. — Tereza riu lembrando que ela mesma fora ao templo exatamente por isso. Júlia tentou corrigir:
— “Não me entendas mal. Apesar de tudo, eu não sou ingrata. Sei que vivi coisas especiais e conheci pessoas que admirava por causa da fama, mas não me prendo a ela. É muito bom falar para uma assembleia e ser escutada; compreendida. Mas, se a gente não tomar cuidado, as palavras perdem o significado e o discurso torna-se vazio. Havia dias em que eu não sabia diferir se quem falava era eu mesma ou a personagem que construí para as pessoas.” — Tereza se enterneceu lembrando o primeiro encontro das duas:
— “Pois eu gostei muito da princesinha gospel! Era incrível para mim, que jamais havia me identificado com igrejas evangélicas, ver uma mulher que não deixou de ser feminina para falar de Deus e relacionamentos”. — Júlia admirou a observação d’ela:
— “Entendo. Foi exactamente isso que me animou no início. Eu fui criada n’um lar cristão com uma moral rígida de mérito e trabalho. Querer ser bonita não era algo bem visto, ou contrário, era subversivo; “o primeiro passo para o escorregão do pecado”. Quando conheci Carlos e começamos a militar pelo casamento casto, ele me fez ver que a televisão tinha uma linguagem própria, isto é, a fotogenia: As pessoas prestam mais atenção em quem tem melhor aparência... Isso me fez acreditar que havia chegado o momento das mulheres falarem e serem ouvidas nas igrejas. Foi assim que vesti aquela fantasia de terapeuta cristã na TV.” — Tereza concordou:
— “O problema de vestir fantasias é que, com o tempo, o corpo e a mente mudam, mas aquela coisa continua do mesmo tamanho. A gente simplesmente não cabe mais n’aquilo. No dia em que te conheci, eu só pensava no tanto que lutei para ter minha família. Eu não era feliz e Afonso também não feliz. Talvez insistíssemos por causa das meninas, mas nem por elas fazia sentido. Acho que era mais medo da dor pela separação que vontade de permanecermos juntos”. Júlia escutou Tereza enternecida e concluiu sua história:
— “E lá estava eu, cansada de ser admirada. Como a vida é curiosa, às vezes: Eu te conhecer justo n’aquele momento... Acho que não queria mais ser admirada, queria era ser amada”.
A rodovia era uma reta monótona apontando para o norte. Havia ainda muito movimento de caminhões de carga. O comboio, pela primeira vez n’aquela viagem, seguia sem problemas. Chegaram a Atiak bem antes do almoço. Como o trecho mais difícil era o seguinte, preferiram não demorar na cidade. Pegando o ramal que saia para Laropi, apenas os primeiros trezentos metros eram pavimentados... Pararam novamente.  Conforme planejado, os seguranças armados subiram nas carrocerias das caminhonetes. Seriam mais setenta quilômetros de poeira em meio às savanas de Uganda até as margens do rio Nilo. Havia uma estrada que ligava Atiak a Nimule, já no Sudão do Sul, mas ficava na margem direita do rio mais extenso do mundo... A travessia do Nilo Alberto pelo caminho de Atiak para Moyo seria feita por balsa em Laropi, onde um serviço regular e seguro embarcava autos e caminhões para outra margem do rio.
Tereza assumiu o lugar de Júlia na direcção do sedan. Como conduzia o comboio por uma estrada de terra, seguiu muito mais devagar, tomando cuidado com erosões e lombadas. Andaram quilômetros e quilômetros sem ver viv’alma. Na paisagem, apenas alguns plantios esparsos e casas isoladas acusavam a presença humana. No mais, eram savanas a perder de vista. Havia muita tensão por possíveis ataques e ali era realmente um lugar propício: Estavam longe de tudo; no meio do nada. Os seguranças contaram a Tereza que os conflitos com o “Exército de Resistência do Senhor” — um grupo paramilitar de inspiração cristã — foi um verdadeiro festival de horrores ao longo dos anos noventa. Massacres de civis, sequestros de meninas, aliciamento de rapazes, assaltos a escolas e universidades... A lista de atrocidades era extensa e revirava o estômago. Alguns casos, como o das “meninas Aboke” — no qual 139 meninas foram sequestradas d’um colégio interno católico — alcançaram certa notoriedade na comunidade internacional. Diante d’uma Tereza boquiaberta, os dois comentavam que o famigerado líder do movimento, Joseph Koni, continuava foragido até aquela data e provavelmente se escondera no Sudão do Sul... E advertiram:
— “Vocês estão indo para o olho do furacão!...”. — De qualquer forma, não seria difícil topar com refugiados sul-sudaneses vagando pelas estradas poeirentas do norte de Uganda ou mesmo de grupos desesperados por ajuda. Tinham de vencer o trecho até Adjumani para voltarem ter um pouco de tranquilidade. Passaram os ajuntamentos de Zapi e Lamack e, já nas cercanias de Adjumani, os seguranças ugandenses retornaram para a cabine das caminhonetes.
Almoçaram n’um posto de gasolina, embora já passasse das 14hs. D’ali até o terminal de balsas de Laropi, já às margens do Nilo Alberto, os plantios eram mais intensivos e as casas mais próximas. Tereza se sentiu mais segura, embora Júlia, percebendo seu cansaço, se oferecesse para dirigir depois que atravessassem o rio. Tereza, que dirigia incomodada com a possibilidade de a pastora afastar-se da igreja, aproveitou e retomou o fio da conversa que tiveram antes de Atiak:
— “Sei que teu amor pela igreja é sincero, Júlia. Temo estar te desviando do teu ideal...” — Surpresa, a pastora disse:
— “Querida, em relação ao cristianismo, eu tenho perspectiva histórica. Fui educada na igreja luterana e fui ordenada pastora. Isso é parte de mim enquanto eu viver. O neopentecostalismo é apenas uma maneira de ser igreja no século XXI, como tantas outras já foram tentadas. Houve um tempo em que tudo que eu queria era levar às pessoas do meu tempo o Evangelho de Jesus isento de preconceitos. Cedi em muito do que acreditava à visão de Carlos Vinícius movida pelo desejo de ser ouvida. No início, havia essa ideia de que, pela fé, pessoas que precisam de terapia, mas se negam a procurar ajuda, poderiam abrir um pouco a cabeça e tratar os outros com mais gentileza. Jesus, para mim, é alguém que primeiro acolhe, observa as necessidades do outro e depois o orienta a voltar à amizade com o Pai e com o próximo. Hoje, eu prefiro ser feliz primeiro e a partir da minha alegria revelar Cristo Ressuscitado às pessoas, que caber n’uma imagem que considerassem válida. É inútil ser capaz de influenciar positivamente milhares de pessoas quando a gente mesmo sabe que tudo à nossa volta é cenário. Não é que eu desdenhe a importância até semiótica da aparência, mas me incomoda tudo ser reduzido à interpretação alheia. “ — Júlia apontou para o espelho do auto:
— “Olha para nós duas: Nós nos amamos! Isso pode ser incompreensível para as pessoas — inclusive as de boa vontade — mas o facto é que eu me sinto feliz do teu lado”. — Júlia se entusiasmava:
 “Se vai durar um ano ou dez, eu não sei. O que sei é que me negar a te amar seria me impedir de dar o que tenho de melhor em mim para alguém que me dá o que tem de melhor em si... Se isso me torna escândalo para os cristãos por praticar algo que consideram uma abominação, eu só lamento que sejam incapazes de ver o amor de duas pessoas para preferirem enxergar a safadeza de duas mulheres”
Olhando atentamente para a estrada poeirenta, Tereza escutava e se enternecia: Como era sábia essa mulher! Como a admirava! Tinha até medo por si, de tanto que a amava. De facto, sempre que se sentia muito feliz Tereza era assaltada d’um pavor sem sentido de que tudo desmoronaria n’um piscar de olhos. Evitava olhar para Júlia enquanto ela falava para não se emocionar ainda mais... Ela falava de amor com uma tranquilidade que lhe passava paz. Finalmente, amar podia ser algo bom, prazeroso, cúmplice... Não precisava ser sempre o drama do abandono iminente que sempre vivenciou. Lembrou-se de suas filhas... “Tão pequenas, meu Deus!” Era difícil estar sem elas em qualquer lugar, mas, em Uganda, era quase cruel. Ligava para sua mãe e enviava vídeos para elas de cada lugar onde paravam. Queria que soubessem que estava sempre pensado n’elas, mesmo tão longe. Chorava antes de dormir, rogando aos céus que elas não a esquecessem ou pensassem que ela as esqueceu. Quando contou para sua mãe que precisaria d’ela para cuidar das meninas por um ano enquanto ela trabalhava no Sudão, ela não tentou demovê-la como Afonso. Escutou tudo em silêncio e apenas disse:
— “Vai com Deus, minha filha! Aqui vai ficar tudo bem. Elas vão à escola perto, passeiam com o pai, me fazem companhia. Tanta gente hoje em dia vai para o exterior tentar a sorte e deixa os filhos com os avôs, não é? Ficam com conforto e em segurança enquanto eles nem sabem como vão morar por lá... Já tu vais trabalhar com pessoas que precisam muito de ajuda. Antes isso que lavar pratos n’alguma lanchonete depois de tudo que estudaste. ” — Tereza recordava... No fundo, amar era querer bem, não impor o que se acha certo ao outro. Sua mãe jamais a deixaria para trabalhar longe como ela própria estava fazendo, mas não a julgou. Ao contrário, a apoiou dentro de suas possibilidades. D’olhos fixos na estrada empoeirada, escutando Júlia falar de amor, de Deus, do futuro... Tereza teve certeza de que sua vinda fora necessária e que tamanho sacrifício seria compensado com algo ainda maior. Olhou para o relógio: eram 16hs! O grande rio Nilo se aproximava e, após atravessá-lo, teriam ainda duas horas para chegar em Moyo. A longa travessia de Uganda, com tudo o que significou e exigiu, tornou Tereza e Júlia de amantes que eram n’um casal capaz de superar obstáculos. E eles não demorariam... 
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Quando chegaram às cercanias de Moyo já estava anoitecendo. Em Laropi embarcaram nas balsas e, na margem ocidental do Nilo Alberto, continuaram a viagem pela estrada de terra. Foram mais vinte e cinco quilômetros de poeira sem maiores surpresas, mas, mesmo assim, todos estavam exaustos. O tempo em Moyo estava quente e abafado. Não havia uma rua sequer pavimentada na cidade de cerca de vinte mil habitantes que era a porta de entrada de sul-sudaneses em Uganda. Todas as cidades por onde haviam passado desde Atiak tinham campos de refugiados e missões humanitárias semelhantes a que iriam iniciar em Moyo. Com alguma dificuldade encontraram na periferia o conjunto de edificações alugado pelo Pr. Carlos Vinícius para a base de operações da missão e, à espera d’eles, o pastor em pessoa ladeado de seguranças brasileiros e funcionários ugandenses. Ele estendia os braços e sorria em sinal de júbilo pela chegada de seus missionários. Abraçou Júlia emocionado e apertou a mão de Tereza com entusiasmo... Tereza ficou visivelmente constrangida, mas Júlia, percebendo, desviou sua atenção para as vans onde os demais membros haviam viajado, levando Carlos para cumprimentá-los.
Júlia agradeceu seguidas vezes os seguranças ugandenses, abraçando-os. Eles voltariam para Kampala no dia seguinte e preferiram passar a noite no centro da cidade para conhecer a vida noturna do lugar. Júlia brincou com eles e lhes recomendou juízo, pois, ambos eram casados... Os ugandenses riram, a abraçaram novamente e partiram. Carlos Vinícius os acompanhou até o portão, fez o pagamento acordado e lhes apertou as mãos. Voltando-se para Júlia levou-a até os seguranças brasileiros que o acompanharam desde que chegara a Uganda. O chefe da segurança era Clodoaldo, que Júlia conhecia desde o Brasil como “o homem da mala” por transportar valores para a igreja. Apertou-lhe a mão e, logo após se apresentou aos demais seguranças contratados pelo pastor. Júlia não gostava de Clodoaldo, mas Carlos Vinícius confiava cegamente n’ele. Comentava-se no Brasil que ele havia sido membro de grupos de extermínio em favelas. Outros diziam que era um ex-policial que fora injustiçado n’uma acção mais violenta. Facto é que não era santo.
Carlos Vinícius apresentou rapidamente o conjunto de prédios que perfazia a missão. Eram quatro edificações térreas e compridas de alvenaria de blocos de concreto aparente cobertas com telhados metálicos patinados de ferrugem. Elas juntas configuravam um partido arquitetônico em C em relação à rua, conformando o largo pátio central empoeirado onde pararam os autos do comboio. Para além das edificações, havia árvores plantadas e algum vergel; dentro do pátio, porém, era apenas terra batida e poeira. As paredes ficavam salpicadas d’aqueles tons terrosos do pátio até meia altura, como se uma tinta que uniformizava toda o ajuntamento. Era rústico e estoico, mas uma verdadeira hospedagem depois d’aqueles quase quinhentos quilômetros de estrada de Kampala a Moyo.
Foram todos conduzidos aos alojamentos onde homens e mulheres dormiriam separados, com exceção do casal de pastores. Cada alojamento tinha dez camas, escaninhos e um banheiro. Havia eletricidade regular, o que era excelente visto que em Kajo Keji seria apenas por gerador movido a diesel. Enquanto se acomodavam e tomavam banho, Carlos seguiu com Júlia para a cozinha para jantarem todos juntos a primeira refeição missionária. Júlia estava tensa e cansada, mas Carlos, expansivo, tentava a todo custo lhe arrancar alguma admiração pelo lugar que havia preparado para o grupo com menos de vinte dias no país. Júlia reconheceu seu esforço e lhe sorriu, mas avisou que precisavam conversar o quanto antes. Carlos foi ter com os funcionários ugandenses para que adiantassem o jantar.
Cerca de uma hora mais tarde, o grupo se reuniu no prédio que era usado como cozinha, despensa e refeitório. Todos receberam bandejas de inox e se serviram com feijão cozido e carne enlatada preparada n’um molho genérico. Não havia verduras ou frutas e quase todos alimentos vinham de muito longe. Essa, sem muita variação, era a comida que se servia a partir dos suprimentos enviados pela ONU às agências humanitárias. O primeiro grande esforço, diziam as autoridades, era alimentar os refugiados e depois oferecer-lhes atendimento médico. Carlos Vinícius, negociando sua permanência em Moyo e o acesso aos recursos humanitários, deveria oferecer aquela refeição a pelo menos quinhentos refugiados já cadastrados n’um dos campos da cidade. Foi assim que sua igreja conseguiu entrar em Uganda.
Os dois prédios opostos nas extremidades do partido em C o pastor havia designado o superior como salão para cultos religiosos e o inferior como escola dominical para as crianças; os dois prédios do meio, enfileirados, eram o centro médico, o da direita; e os alojamentos e escritórios, o da esquerda. Durante a semana, a escola funcionaria apenas duas horas com aulas de alfabetização a serem dadas por professoras ugandenses contratadas na própria cidade. Os cultos neopentecostais, por outro lado, seriam diários, logo ao cair da noite, visto que após as 20hs ninguém circulasse pelas ruas por causa da insegurança. Apenas nos bares do centro, junto aos humildes hotéis da cidade, havia algum movimento noturno em torno de televisores e caixas de música em reuniões exclusivas de homens bêbados. A maioria se recolhia cedo e saia apenas de madrugada para trabalhar ou ir à escola.
Carlos, desde sua chegada a Moyo, documentava tudo em vídeo e enviava à igreja no Brasil. A telefonia celular em Moyo era cara e o povo, em geral, não acessava pacotes de mídia, apenas falava. Os missionários e funcionários da missão teriam um plano corporativo local, mas se submetiam em contrato ao controle da política de conteúdo da igreja, sendo impedidos de enviar imagens de violência ou comentários sobre a política de Uganda ou do Sudão dos Sul. A linha de tolerância das autoridades ao trabalho humanitário era tênue e móvel, logo, teriam de evitar mal-entendidos. Os celulares pessoais deveriam ficar na missão junto com os passaportes enquanto credenciais de agentes humanitários e celulares da igreja seriam entregues aos membros. Tudo isso era contratual! Logo, imagens, áudios e textos enviados pelos brasileiros ficavam sob o escrutínio e propriedade da igreja... Para se comunicarem com a família e amigos no Brasil, apenas com os telefones pessoais e dentro das dependências da missão. Enquanto apresentava os demais prédios a Júlia, o pastor a actualizava contando seus planos para os próximos dias:
— “O grupo recém-chegado, conforme planejado, deve começar a ajudar no acolhimento dos refugiados cadastrados e no serviço das refeições já no próximo domingo, quando uma verdadeira festa de boas-vindas aos missionários será oferecida para marcar o início das actividades do posto humanitário de Moyo. Os refugiados vão participar de dinâmicas de grupo e palestras, ao passo que as crianças terão uma rua de lazer. Vão ser servidos, excepcionalmente, doces e sucos naturais além do almoço “à la ONU” enriquecido com verduras da região. Todos identificados e uniformizados com roupas distribuídas previamente pela igreja ao campo onde pernoitavam.” — O acesso ao conjunto do posto humanitário dependia d’essa identificação, explicava ele.
— “Será um grande dia!” — Concluiu o pastor, com entusiasmo. Ao que Júlia atalhou:
— “Muito bom mesmo, Carlos! Mas vamos nos juntar ao grupo para jantarmos com eles.” — e foram se reunir com os demais no refeitório. Todos já jantavam quando o casal se servira e sentara. De longe, Júlia viu Tereza conversando animada com uma missionária. Não trocaram olhares. Carlos estava diante d’ela. Sua intenção era sentar com ele assim que se recolhessem para lhe comunicar a separação.
Comia em silêncio enquanto o outro contava casos de seu tempo em Lübeck... Júlia, obviamente, não se sentia bem com a situação desde que se envolvera com Tereza, meses antes. Conversar com alguém sobre tudo menos o que se deveria falar era um fardo que ela não queria mais carregar. Fazia mais de um ano que não tinha qualquer intimidade com seu marido, desde que viajaram para o Egito. Terminaram de comer, esvaziaram as bandejas, se despediram de todos e finalmente foram para o quarto d’eles. Tereza ainda se demorou no corredor e viu quando a porta se fechou. Seu coração batia acelerado.
Júlia foi até o banheiro e tomou um banho. Pôs um pijama e esperou Carlos terminar sua higiene. Ele veio lhe dar um beijo na boca e ela virou o rosto, dizendo:
— “Precisamos conversar. ” — Assustado, ele assentiu:
— “Tudo bem, mas o que houve? ” — Júlia se sentou na cama, respirou fundo e começou:
— “Carlos, eu sei que trabalhaste muito nos últimos meses, dedicado a essa missão. Mas, a verdade é que eu te disse, repetidas vezes, que não queria voltar ao Sudão” — Carlos ainda brincou, interrompendo-a:
— Mas não estamos no Sudão, querida, estamos em Uganda!” —  E riu sozinho. Júlia continuou:
— Eu não queria voltar à África. Não tinha estrutura psicológica para passar de novo pela agonia que passei no deserto e mesmo assim não me escutaste. Eu estou aqui agora apenas por causa dos compromissos que assumi pregando nas igrejas, senão jamais poria os pés novamente n’uma zona de conflito. Eu não sou soldado, sou uma pastora. — Carlos, mais sério, parecia não entender:
— “Mas tu que inventaste essa história de ser missionária. Eu estava bem com nosso ministério no Brasil. Tudo o que fiz no último ano foi para estar aqui para te apoiar, Júlia!” — Ela recuou:
— “Eu sei, Carlos, sei melhor do que pensas. Mas eu mudei muito depois do Sudão... Aquilo foi demais para mim”. — Carlos a observava, incrédulo. Júlia continuou:
— “Eu te pedi. Não, eu te implorei para não voltarmos. E que fizeste? Criaste uma situação com a igreja na qual eu voltava para arrecadar doações para a missão que eu decidira abortar! Eu circulei pelo Brasil pedindo dinheiro para um projeto que já não fazia mais sentido para mim. Eu descobri, do pior modo, que a África não é para amadores; para idealistas tampouco!” — Carlos resolveu intervir:
— “Júlia, estás cansada. Foi uma viagem difícil, eu sei...” — Júlia explodiu com ele:
— “Sabes o quê? Vieste com dinheiro e viajaste de jatinho! Tudo o que dinheiro pôde comprar de conforto e comodidade n’esse país tu compraste! O que fizeste foi turismo, não missão! ” — Carlos reagiu:
— “Estás sendo injusta comigo. Tudo isso aqui fui eu quem preparou para que tivesses onde chegar! ” — Júlia o desmascarou:
— “Mesmo?! Já estás de malas prontas para ir embora: Fui informada pela igreja dos teus compromissos na Europa a partir da semana que vem! Voltas para o Brasil antes do fim do mês!... Grande chefe de missão és tu!... — O pastor contemporizou:
— “Temos outros interesses na igreja além d’esta missão. A igreja não pode ficar acéfala. Logo, um de nós dois terá-de estar no Brasil.” — Júlia respondeu:
— “Não me subestimes, Carlos. A igreja está bem. Não é que tu não possas ficar aqui. Apenas não queres.” — Júlia se calou, contendo-se. Os dois ficaram parados, em silêncio, se mirando por alguns minutos.
Afinal, Júlia falou:
— “Eu não vejo como seguirmos casados, Carlos. Sei que uma decisão como esta não diz respeito apenas a nós dois... Tem a igreja, nossos ministérios e, agora, essa missão. Considerando tudo isso, eu tomei uma resolução: A partir de hoje eu não me deito contigo e não sou mais tua mulher!” — A ficha caiu para Carlos:
— “Conheceste alguém?” — Júlia permaneceu em silêncio. O pastor insistiu — “Sim ou não?” — Júlia lhe confirmou:
— “Sim, estou envolvida com outra pessoa. Isto é tudo o que precisas saber.” — E continuou com os termos da separação — “Eu me proponho a permanecer aqui por doze meses, no máximo, apenas para cumprir os compromissos que firmei ao pedir as doações. No fim d’este prazo, a igreja deve enviar outro corpo humanitário para esta missão. Eu voltarei com estes que trouxe comigo. Chegando ao Brasil eu entrarei com o pedido de divórcio. Eu não quero escândalo, Carlos, mas não tenho medo de passar por um se necessário”. — Carlos sequer escutava esses pormenores. Perguntou de súbito:
— “Quem é ele?” — Júlia respondeu:
— “Não importa. Não o conheces”. — Carlos resolveu mudar de tática:
— “Olha, Júlia, o último ano foi muito difícil para nós. Eu fiquei doente e, ao que parece, tu também. A diferença é que eu busquei tratamento. Agora não é possível tomar qualquer decisão. Como tu mesma dizes, estás presa a este lugar pelos próximos meses. O tempo cura tudo; há-de nos curar também. Somos jovens, ainda podemos nos perdoar e seguir em frente. Quantos casais nós não orientamos a fazer exactamente isso? Temos um vínculo sólido: Um casamento cristão! Podemos restaurar nossa relação em Cristo e levar o Evangelho às pessoas.” — Júlia, percebendo o que o pastor fazia, lhe cortou:
— “Durante muito tempo, Carlos, isso me bastava. Eu fazia vistas grossas ao teu excesso de trabalho; à tua ambição desmedida; à tua superficialidade... Sim, porque, de certo modo, eram os meios para o fim que eu me propus: Pregar o Evangelho de Jesus Cristo. Por resto, também eu me sentia parte do cenário d’um programa de TV onde prometíamos algo que ninguém devia prometer, ou seja, felicidade conjugal.” — Carlos fez nova ofensiva:
— “Vamos fazer assim, Júlia, eu cancelo minha viagem à Europa e permaneço aqui até o fim do mês. Melhor: Atraso minha volta ao Brasil e fico contigo aqui. Tens razão, meu amor, eu tenho estado ausente tempo demais. A igreja pode esperar um pouco mais...” — Júlia explodiu de novo:
— “Amor?! Será que não ouviste nada do que eu disse? Eu não te amo mais! Eu estou apaixonada por outro! Eu não vou me deitar contigo! Eu não sou mais tua mulher! Para de negar o que está acontecendo... Isto é real! Sou eu, Júlia, pondo um ponto final n’essa história de casamento blindado! Chega de mentiras, Carlos Vinícius! Eu sei que tua preocupação não é comigo ou com minha felicidade. Não, tua preocupação é com tua igreja e o dinheiro d’ela. Fica tranquilo, Carlos, eu não quero dinheiro. Para me ver livre d’essa situação eu assino qualquer papel; abro mão de qualquer coisa. Eu não preciso d’aquele mundo cor de rosa que inventaste para nós dois aparecermos na TV”.
Carlos se levantou da cama e saiu do quarto.

CAPÍTULO 15
“As datas especiais precisam ser celebradas. O casal precisa entender que renovar seus votos é voltar ao seu primeiro amor. Uma alma que não é alimentada pelo elogio é como um corpo que se torna anêmico: Não tem energia. É preciso que o casal se ampare para que, um cuidando do outro, consigam chegar cada vez mais longe. ”
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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A festa de domingo mobilizou todos os membros da missão com os preparativos e os convites. Estariam presentes o presidente do conselho do distrito e agentes da ACNUR - o Comissariado da ONU para refugiados.  Uma sul-sudanesa fluente em inglês lhes serviria de intérprete e faria a tradução dos pronunciamentos, pois, ao contrário dos ugandenses, sul-sudaneses da Equatória Central não falavam inglês, sim dialetos tribais e árabe. Clodoaldo e seus homens estavam vestidos de terno preto, usavam óculos escuros e se comunicavam por rádio. Espalharam-se formando um perímetro de segurança postados nas extremidades do pátio. Estavam armados.
Para ornamentação, esticaram barbantes que atravessavam todo o pátio com fitas plásticas verdes e amarelas pendentes. Trouxeram as mesas do refeitório para fora e as juntaram para perfazer uma longa mesa em frente do palco montado para os pronunciamentos. Os refugiados seriam recebidos com um café da manhã por volta das 8hs e acomodados em centenas de cadeiras plásticas perfiladas em frente ao palco. Logo, comeriam e depois começariam os comunicados. Tereza passou aqueles quatro dias na cozinha ajudando a preparar toda sorte de pães, bolos e biscoitos para encher aquela mesa...
O almoço seria a mistura a lá ONU enriquecida com uma galinhada de panela. Seriam servidos sucos preparados a partir de concentrados no almoço. A sobremesa seria um pedaço de goiabada. Na entrada, sobre o largo portão de duas bandeiras que dava acesso ao pátio, esticaram uma faixa com os dizeres HUMANITARIAN POST OF MOYO — WELCOME TO BRAZILIAN MISSION. Após o almoço, os missionários dividiriam os presentes em grupos usando diferentes cores dos cartões do credenciamento. Eram divisões por sexo e idade, onde as crianças eram encaminhadas para brincadeiras ao ar livre, os adolescentes para exibição de filmes no salão de cultos, as mulheres para oficinas de estética no salão escolar, enquanto os homens eram levados para um campinho próximo de terra batida para o futebol. Os idosos eram reunidos para um longo chá no refeitório onde mediante dinâmicas de grupo todos se apresentavam e trocavam experiências.
Estavam todos muito ansiosos em conhecer os refugiados do campo. Eram raras as autorizações que os sul-sudaneses tinham para sair do cercamento, de modo que deveriam chegar animados pela novidade d’aqueles brasileiros em Moyo. Muitos estavam em Uganda há meses e haviam saído de casa apenas com a roupa do corpo. Eram sobreviventes de ataques violentos e cruéis, aparentemente aleatórios, que ambas forças do conflito do Sudão ou um dos muitos grupos de milicianos actuantes na região perpetravam sobre comunidades carentes de tudo. Roubar e barbarizar miseráveis indefesos era algo incompreensível para os brasileiros, mas era a quotidiano d’aquele conflito: Tropas raramente mediam forças, não fazendo mais que vagar pelas florestas e savanas enquanto batiam retirada de posições ameaçadas. Quando a comida acabava, invadiam uma aldeia isolada e expulsavam os moradores, matando um ou outro.
As crianças e adolescentes, todavia, eram alvo de sequestro: os meninos para serem aliciados como combatentes; e, as meninas, como escravas sexuais. Uma verdadeira chaga humanitária d’aqueles conflitos da África oriental, os chamados “invisible children” eram uma realidade que minava a esperança d’um futuro sem guerras nos países da região. Havia muita mobilização de activistas em todo mundo acerca d’estes meninos e meninas, mas a realidade que pouquíssimos sobreviviam aos anos de combate e aqueles que o conseguiam tinham imensa dificuldade de serem reintegrados à sociedade. Muitos eram descritos como zumbis modernos, isto é, seres sem alma capazes de atrocidades gratuitas. Drogados, alcoolizados e excluídos de suas comunidades, vagavam até morrer ainda muito jovens.
Eles começaram a chegar tímidos e atravessaram a porteira do posto, receosos. Eram recebidos por três missionários sorridentes que lhes davam um folheto em inglês com informações sobre os atendimentos que seriam feitos no posto a partir d’aqueles dia. A maioria, entretanto, não sabia ler e chamava algum jovem para explicar aquilo. Mesmo os adolescentes, poucos tinham mais que noções de inglês.  As pessoas se aproximavam da mesa de café da manhã e eram chamadas por mais dois missionários para se servirem. Tereza havia se postado ali, junto das garrafas térmicas de café e leite quente. Pegava copos descartáveis e perguntava com um sorriso: — “Black coffee or white coffee? ” — E lhes servia o copo fumegante para que após se servissem dos pães e bolos sobre a mesa. Todos muito calados e observando cada detalhe. De vez em quando surgia um menino mais serelepe com um sorriso malandro pedindo mais. Tereza servia e ainda lhe pegava mais um biscoito. “No fundo, esse contacto olhos nos olhos era mais importante que as palavras.” — pensava ela. O serviço do café da manhã se estendeu por cerca de uma hora e logo a mesa se esvaziara. Todos comeram e beberam o quanto quiseram, sem maiores problemas. As mesas foram retiradas e os refugiados se assentaram. Tudo precisava ser célere, pois, logo o sol incomodaria a assembleia. Com o casal de pastores e as autoridades a postos, iniciaram os pronunciamentos.
Carlos Vinícius seria o primeiro a falar. Estava em mangas de camisa, mas bem barbeado e penteado. Dormira pouco nas últimas noites, abatido com a resolução de Júlia, ainda que ambos tivessem se ocupado em função d’aquele evento para se preocuparem um com o outro. De qualquer modo, algo do frescor e entusiasmo do pastor se perdera. Câmeras a postos, a sonorização ligada e autoridades perfiladas: A solenidade teria início.
— “Saúdo as autoridades aqui presentes. Nosso corpo missionário e, sobretudo, nossos irmãos e irmãs sul-sudaneses! E com grande alegria que recebemos todos vocês aqui hoje em Moyo, Uganda. Nós estamos aqui porque o clamor d’esse povo atravessou o oceano e se fez ouvir nas terras brasileiras. Viemos até a África de coração aberto, humildes, dispostos a nos colocar a serviço no que for preciso. O Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e o Governo de Uganda acolheram nossa proposta de ajuda humanitária e nos credenciou para que esse gesto de boa-vontade se convertesse n’uma ajuda efectiva àqueles que sofrem e buscam solidariedade em solo ugandês. Temos consciência da imensidão do desafio bem como da pequenez de nossa ajuda, mas, como cristãos, acreditamos que o pouco, com Deus, se faz muito! E esse pouco que oferecemos a partir de hoje n’esse humilde posto humanitário representa os esforços e orações de muitos brasileiros que sentem a dor do povo africano. ” — O pastor procurava manter a voz firme e o olhar um pouco acima das pessoas da assembleia para não se distrair com suas feições. Apesar da tradução simultânea, os refugiados não esboçavam qualquer reacção àquelas palavras de acolhida. Ao contrário, pareciam cansados de falatórios e incrédulos de boas intenções estrangeiras. O pastor Carlos tomou um gole de água e continuou:
— “Foram necessários meses de preparação e muitas viagens para que pudéssemos estar aqui hoje. ” — Declarou visando dar uma indireta para Júlia... As palavras d’ela diminuindo seu esforço e dizendo que ele viera à África fazer turismo lhe doeram muito. Ele viajara à Juba duas vezes e se encontrara com a missão da ONU no país para conseguir aquele credenciamento. Em Kampala, apresentou um plano de investimentos e obteve autorização para adaptar os imóveis que alugara para receber os suprimentos que a ONU disponibiliza para postos humanitários. Para quem viera um ano antes à África para construir uma igreja neopentecostal e sequer saíra do hotel, aquele posto humanitário credenciado pela ACNUR podia ser considerado um grande feito:
— “Reunimos um corpo de missionários cristãos no Brasil que, formado pela pastora Júlia Köller, minha esposa, se habilita para ajuda humanitária e para o ministério pastoral. Oferecemos aos sul-sudaneses nossa fé, nossa esperança e nosso amor em Cristo Jesus. ” — Júlia permanecia inalterada enquanto Carlos falava. Estavam vivendo em separação de corpos, mas apenas Tereza sabia. Para todos os efeitos, seria legalmente esposa de Carlos até poder voltar ao Brasil e se divorciar.
— “Preparamos este dia especial para nos conhecermos melhor. Nós, brasileiros, somos profundamente gratos à África. Temos em nossa formação enquanto povo o sangue, a cultura e a pele africanos. É preciso que se diga: Vocês estão sempre em nossas orações! Esse momento difícil que vocês atravessam, de guerras e conflitos, muito entristece nosso povo que, atento, buscou se mobilizar para trazer nossa solidariedade. Espero que todos nós possamos trocar experiências n’essa celebração da vida que a cooperação entre povos promove aqui hoje. Por favor, aproveitem esse dia de festa como mostra de que a alegria dos justos está calando o ódio dos violentos. Sejam todos bem-vindos à missão brasileira no posto humanitário de Moyo! ” — Carlos terminou sua fala e fora protocolarmente ovacionado. O sol começava a incomodar os presentes...
Júlia tomou o microfone prometendo ser breve. Estava com um vestido de algodão cru estampado à maneira africana. Usava uma faixa na cabeça do mesmo pano, à guisa de combinação. Ela desceu do palanque e, de microfone em punho, cumprimentava às pessoas da assembleia enquanto falava, circulando entre elas:
— “Sim, sejam muito bem-vindos, amadas e amados do Senhor! — Carlos Vinícius meneava a cabeça, pensando: “Como vão filmá-la assim?”. A pastora continuou se apresentando:
— “Eu me chamo Júlia e sou uma pastora cristã brasileira. Estou aqui para servir vocês; para aprender com vocês e, se preciso, sofrer com vocês. Não temos muito para oferecer e somos apenas vinte brasileiros aqui dando o nosso melhor para que o sofrimento de vocês possa ser mitigado. Quero que saibam, porém, que, embora sejamos pobres e poucos, somos pessoas carinhosas e alegres mesmo nas vicissitudes. Não quero me alongar, mas, de tudo isso que celebramos hoje, permaneça no coração de vocês nosso imenso desejo de estarmos aqui e ajudar. De facto, estar aqui é um sonho tornado real. Muito obrigada” — Igualmente ovacionada, Júlia entregou o microfone ao cerimonialista que dispersou a assembleia para a formação dos grupos por faixa etária e sexo. O sistema de som passou a propagar a pleno volume uma playlist de sertanejo universitário e pagode... Definitivamente, aquela era uma festa brasileira na África...
O sol já estava abrasador e todos se reuniam conforme programado. O almoço era preparado na cozinha do refeitório enquanto o casal de pastores aproveitava a presença das autoridades para reforçar seus contactos sociais. Tereza circulava entre as mulheres da oficina de estética, fotografando com sua câmera uma a uma àquelas senhoras e garotas para depois lhes imprimir em papel comum suas fotos. Elas sorriam, maquiadas e orgulhosas. Encantavam-se depois com as fotos impressas que guardavam como se tivessem, efectivamente, recebido um grande presente. Tereza se emocionava com a emoção de algumas, sorrindo mesmo com o rosto cheio de cicatrizes... Aquelas mulheres traziam no corpo a marca de abusos, estupros, sucessivas gravidezes, mas, sobretudo, grandeza. Tereza se sentia pequena diante d’aquelas mulheres tão experimentadas pela vida que, apesar de tudo, traziam em si uma dignidade impressionante. Algumas meninas, exageradamente tímidas e tristonhas, não conseguiam sorrir. Era fácil intuir porquê... Tereza respeitava a timidez d’elas e não insistia. Tentava se comunicar em inglês, mas eram sobretudo os olhares que lhe diziam como agir com cada mulher: Abordava se oferecendo para fazer as fotos contra um fundo neutro sob a sombra e disparava tão-logo elas se posicionavam. Fazia cerca de trinta fotos entre as mulheres e depois saía para baixar os arquivos do cartão de memória. Voltava logo, com as fotos impressas, provocando sorrisos espontâneos entre as retratadas e estimulando as mais tímidas se animarem a fazer também. Perdera a conta de quantas vezes fora e voltara até o escritório, mas tinha a certeza de ter feito algo que fizera alguma diferença no dia d’aquelas mulheres. O sorriso d’elas a recompensava.
O almoço fora servido dentro do refeitório que, com capacidade para apenas cem pessoas, recebia os grupos por turnos. Os suprimentos da ONU consistiam no chamado “superfeijão”— isto é, uma variedade transgênica enriquecida com nutrientes que era a base da alimentação dos refugiados — além da indefectível carne bovina enlatada com molho genérico. N’aquele dia havia ainda couve refogada com alho no azeite de dendê e uma brasileiríssima galinhada de panela! As bandejas de inox se sucediam enquanto os grupos caminhavam em fila junto aos panelões. Levou cerca de uma hora e meia para todos almoçarem.
Após, seguindo a programação, as actividades de lazer. O pastor vestiu um uniforme de juiz e foi arbitrar o jogo no campinho... Júlia ajudava a fazer a maquiagem das senhoras no salão das esteticistas enquanto Tereza fotografava tudo. O dia passou rápido, alegre. Despediram-se dos grupos às cinco horas e os refugiados voltaram para o campo cercado onde dormiam nas tendas armadas com material humanitário da ONU. Os missionários estavam exaustos, mas, pela primeira vez desde que chegaram à Uganda, dormiam orgulhosos de estarem ali.
Vídeos, fotos e áudios eram enviados exaustivamente para o Brasil e Carlos Vinícius celebrava o sucesso de sua festa. Tentava se acercar de Júlia para compartilhar seu entusiasmo, mas ela o repelia com frieza. Embora juntos fossem uma equipe muito bem-sucedida, Júlia estava cansada d’aquele exibicionismo todo. Até entendia que os missionários quisessem compartilhar aquele dia com a família e com a igreja no Brasil, mas seu marido ultrapassava todos os limites. Na verdade, se sentia mal em ser exposta como esposa d’ele. Era como se farsa não tivesse fim nunca! Apenas esperava que Tereza tivesse paciência para que pudessem ficar um pouco mais à vontade depois que ele fosse embora de vez para o Brasil. Sem embargo, ele parecia que se demoraria ali na esperança de fazê-la mudar de ideia. “Será malhar em ferro frio” — pensou Júlia enquanto se deitava sozinha na cama para começar tudo de novo no dia seguinte.
CAPÍTULO 16
“O Inimigo está sempre à espreita com sua violência e maldade. Quando estiverem em crise, afaste-se dos maus conselhos; das más companhias. Afaste-se, sobretudo, do álcool, que é um verdadeiro catalizador da violência. A mão que bate esquece que bateu; a face que apanhou, não. Se estiver com raiva, afaste-se. Espere se acalmar para depois conversar. “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Clodoaldo era um ex-policial militar que havia se notabilizado após dez anos de serviço na ROTA - Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, isto é, o afamado grupamento de elite da polícia paulista.  Era alto, moreno, muito forte e bem-apessoado, enfim, aquele tipo que se convencionou chamar de “um guarda-roupas”. Sua notória actuação contra criminosos nas favelas de Diadema lhe rendera tanto medalhas de mérito quanto processos disciplinares, dada a truculência de suas acções. Frio, atirava para matar, deixando estatísticas incômodas e cenas de crime inexplicáveis para seus superiores abafarem. Todavia, denunciado como matador d’um esquadrão da morte, tivera o caso encerrado após o sumiço de algumas testemunhas levar ao silêncio das demais. No fim teve de sair da ROTA e procurar novas oportunidades, tendo se tornado segurança da igreja há cerca de cinco anos. Obteve a confiança do Pr. Carlos Vinícius que, crescendo em Guarulhos, não tinha qualquer solidariedade pela bandidagem. A pastora, porém, evitava sua companhia.
Viera a Uganda junto com Carlos Vinícius e se tornara seu colaborador mais próximo. Fora inclusive ele quem escolhera os imóveis que a igreja acabou alugando para a missão e os mobiliou enquanto o pastor, ora em Kampala; ora em Juba, credenciava a missão humanitária para actuar em solo ugandês e sul-sudanês. Comandava um grupo de mais quatro seguranças, todos ex-policiais paulistas como ele, que se revezavam na segurança pessoal do casal de pastores e no transporte de valores da igreja. Viu malas e malas de dinheiro vivo virando dólares e saindo do país sem qualquer controle em aviões fretados. A missão em Uganda, no final das contas, era parte d’um grande esquema para evasão de divisas. Boa parte do dinheiro arrecadado com as doações e dízimos da igreja no Brasil jamais apareceria em qualquer balancete fiscal. Simplesmente evaporava nas mãos de doleiros, convertendo-se em moeda estadunidense. As doações oficiais dos fundos de igrejas europeias e brasileiras compunham a parte oficial da contabilidade da missão humanitária, mas eram as seguidas viagens de Carlos Vinícius em jatinhos, justificadas pela missão, que lhe permitiam sair com os dólares do país. Na África, o dinheiro era enviado para contas de offshores em paraísos fiscais ou convertido em euros e depositando na Suíça para resgate por toda Europa. Era para lá que Carlos Vinícius iria depois que a pastora chegasse com os missionários e desse início às actividades do posto humanitário... O rompimento com Júlia, contudo, fez com que mudasse de planos. Era muito dinheiro em jogo e precisava sanar aquela ponta solta que aparecera.
Haviam passado duas semanas desde a festa de boas-vindas aos missionários e refugiados e tudo transcorria bem. Carlos Vinícius suportava a frieza de Júlia da melhor forma possível enquanto ela se entregava ao trabalho humanitário. Percebendo que havia muitos ugandenses sem ocupação em Moyo, a pastora decidira realizar o máximo de benfeitorias possível enquanto Carlos Vinícius ainda estivesse por lá, franqueando o acesso àquelas despesas excepcionais.
Contratara homens para trabalhar a dia na pintura e reparos emergenciais d’aqueles imóveis alugados. Contente com o resultado, mandou que capinassem o vergel dos fundos do terreno do conjunto de edificações e fizessem uma horta para que pudessem enriquecer as refeições que serviam aos refugiados. Curiosamente, após o primeiro dia de capina, reparou que os trabalhadores deixavam arbustos aqui e ali, contrariando o que combinara. Chamou um dos homens e perguntou o porquê d’aquilo. Ele respondeu que aqueles arbustos eram plantas medicinais. Era costume não capinar aquelas ervas quando as encontravam. Júlia se interessou pelas propriedades das plantas e o homem lhe explicou com satisfação como e quando colhê-las, bem como o processamento para que pudessem ser tomadas. Decidira aproveitar aquele costume para oferecer também fitoterápicos no atendimento médico do posto humanitário.
Enquanto isso, Tereza se ocupava com a papelada administrativa e fazia o registro fotográfico do dia a dia da missão. As duas se viam muito, mas nunca a sós. Júlia evitava ficar sozinha com Carlos Vinícius que seguidamente insistia para que recuasse de sua resolução em se separar. Irredutível, Júlia implorava para que a deixasse em paz.
Com a rotina do posto humanitário seguindo o programado, Júlia decidiu fazer uma viagem de reconhecimento em Kajo Keji. Acertou com patrulhas da ONU um ponto de encontro e se preparou para enfrentar outro trajeto de estrada de chão, mas d’essa vez em zona de conflito. Preparou um comboio com uma das caminhonetes, no qual seguiriam Clodoaldo e outro segurança, e o sedan onde ela mesma e Tereza dirigiriam. Embora fossem apenas vinte e cinco quilômetros, a estrada era muito ruim e o perigo de serem abordados, iminente.
Partiram logo cedo e, sem incidentes, chegaram a Kajo Keji às 10hs. Os militares do corpo de paz da ONU os esperavam. Era assustador atravessar uma cidade cerca de três vezes maior que Moyo inteiramente abandonada. Kajo Keji havia se transformado n’uma cidade fantasma após seguidos ataques de tropas e milícias entre 2016 e 2017. Era cercada de distritos onde o povo Kuku conciliava costumes tribais com as modernidades urbanas. Tinha até um aeroporto fora de operação desde 2015. Do mesmo modo, escolas, lojas, hospitais e igrejas, bem como as residências e as propriedades rurais... Os capacetes azuis lhes contaram que vinham àquela localidade com frequência e às vezes topavam com algum sul-sudanês que voltava de Uganda para colher uma plantação ou buscar roupas. Mas mesmo isso era muito arriscado.
O chefe da patrulha, um oficial sul-africano resumiu a situação nos seguintes termos — “A estrada que liga Juba a Kajo Keji fica intransitável durante as chuvas, de abril até outubro. Logo, a região fica isolada do resto do país. Enquanto a estrada não for recuperada, a presença de forças de segurança será esporádica. As tropas do exército nacional actuantes na região não protegem a população civil, guerreando entre a facção do presidente e a do vice. As milícias e combatentes que actuam no Congo e em Uganda se escondem n’essa região. Conflitos, sequestros e mortes são frequentes e ficam impunes”. — Resumiu ele. Enquanto Júlia conversava com os militares, Tereza fotografava as ruas vazias. Chegara a gravar em vídeo o relato no qual o oficial descrevia a desolação do lugar. Tudo muito triste.
O ex-policial, todavia, percebera que havia algo de incomum na proximidade entre Júlia e Tereza. Estranhara, aliás, que uma agente administrativa se colocasse em risco n’um lugar como aquele. Simplesmente não entendia porque ela viera com Júlia... Conversara com Carlos Vinícius na noite em que Júlia havia lhe pedido a separação. O pastor o tinha como confidente e contou que a esposa o deixaria para ficar com outro. Clodoaldo imediatamente se perguntou se o caso de Júlia não seria com uma das pessoas que viera com ela. Não disse nada a Carlos, porém, preferindo guardar sua suspeita para o que aparecesse. Vendo as duas juntas em Kajo Keji, pensou consigo “Onde há fumaça, há fogo!”.
A patrulha da ONU os acompanhou até a fronteira com Uganda e chegaram com segurança a Moyo ainda no meio da tarde. Júlia reuniu os missionários e lhes fez o relatório da visita: Kajo Keji era efetivamente uma cidade fantasma e não havia estabilidade na região para iniciarem qualquer trabalho por lá. Deveriam esperar os próximos meses para ver se os refugiados começavam a retornar a suas casas. Entretanto, com a volta da estação das chuvas em abril, provavelmente a situação se tornaria ainda pior. Seus esforços deveriam ser concentrados em Moyo. Clodoaldo reparou que Tereza não saíra de perto de Júlia o tempo todo e teve a intuição de segui-las depois que a reunião se dispersasse. As duas foram até a horta dos fundos da missão onde Júlia mostrou a Tereza os curiosos arbustos que os ugandenses diziam ser fitoterápicos. De longe e no escuro, ele viu quando as duas se deram as mãos e trocaram um rápido beijo. O enleio durou pouco mais de um minuto, mas fora o bastante para Clodoaldo matar a charada, isto é, Tereza era o outro vértice d’aquele triângulo... Fora imediatamente ter com o pastor.
Carlos Vinícius duvidou a princípio. Jamais imaginaria que Júlia pudesse ter se tornado lésbica! Aquilo era algo além de sua imaginação. Todavia, recordava que o tratamento que a pastora dera à executiva sempre fora especial. Era, de facto, um corpo estranho n’aquela missão: Os missionários eram em geral idealistas profundamente identificados com a igreja. Tereza, embora frequentasse os cultos, era uma mulher do mundo. Raramente expressava algum sentimento religioso e visivelmente evitava o pastor. No final das contas, até que aquela loucura fazia sentido... Clodoaldo aconselhou ao pastor a agir o quanto antes. Era preciso afastar Júlia de Moyo para que a pudessem intimidar Tereza, ameaçando a ela e sua família. Ele a conduziria até Kampala pessoalmente e poria n’um voo para o Brasil. Se voltasse, daria um jeito para que ela jamais chegasse a Moyo novamente. O pastor refletiu e concordou. Se Júlia voltasse e não encontrasse Tereza, as chances de fazê-la mudar de ideia eram maiores. Ademais, poderia acabar com a reputação de Júlia como pastora no Brasil se ela insistisse em ficar com Tereza. Era um importante trunfo aquela informação. Júlia até poderia desdenhar seu império, mas não o iria destruir!
Carlos esperou mais uma semana e marcou outro encontro com agentes pacificadores da ONU em Kajo Keji. A pastora iria novamente ao Sudão do Sul. D’essa vez, de última hora, Carlos pediu que Tereza ficasse para repassar todos os balanços financeiros para fazer prestações de contas aos fundos europeus e brasileiros. Era urgente, pois, precisava viajar ao Brasil ainda n’aquela semana. Júlia se viu d’este modo obrigada a viajar n’um comboio sem Tereza para aquele encontro que a reteria por dois dias em Kajo Keji. Segundo Carlos Vinícius, ela faria a inspeção de imóveis que poderiam ser adquiridos pela missão para um futuro posto humanitário do outro lado da fronteira. Tinha uma lista de prédios disponíveis que precisavam ser visitados enquanto a patrulha da ONU permanecesse por lá.
Júlia partiu de manhã cedo, pressentindo que algo estava muito errado n’aquela viagem. Reparou, por fim, que Clodoaldo não a acompanhara. Não sabia o que pensar d’aquilo, haja vista que ele era homem da confiança do pastor. Entrou no carro e olhou para Tereza de pé no pátio com outros membros da missão. Sentiu um aperto no peito.
Tão logo o comboio se afastou, Carlos Vinícius chamou Tereza à sua sala. Clodoaldo os acompanhou.

CAPÍTULO 17
“Blindar um casamento é saber-se capaz de qualquer coisa para salvá-lo. É preciso entender o que é realmente importante na vida e não hesitar em cumprir as exigências d’um casamento cristão. Quem prevalecer até o fim, contra tudo e contra todos, terá êxito... “
In “Os Casamentos Blindados” - Pr. Carlos Vinícius e Pra. Júlia Köller
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Carlos Vinícius se sentou em sua cadeira atrás d’uma ampla mesa de trabalho. Tereza se sentou em frente enquanto Clodoaldo se sentou n’um sofá de couro preto no canto do escritório. Tereza esperou em silêncio enquanto o pastor arrumava sua mesa para começarem a trabalhar. Mas, ao contrário do que Tereza imaginava, Carlos Vinícius não buscou nenhuma planilha ou relatório, começando a falar sem aviso:
— “Sabe, Tereza, eu adoro ser pastor evangélico. É melhor trabalho que existe. Para começar, o pastor é um homem de Deus; um servo do Senhor. Vive em sua presença e usufrui de sua amizade. Basta perseverar na fé, lutando o bom combate, que será contemplado com o Céu e as beatitudes do Paraíso. Só isso já valeria a pena, não é mesmo?” — Tereza não sabia o que falar. O pastor continuou:
— “Mas não é tudo! Afinal, o operário tem direito ao seu salário... E quanto merece receber um operário cujo trabalho é salvar as pessoas para Deus? Com toda a certeza, tem-de receber muito bem. Considero a importância do meu trabalho semelhante ao do médico, com a diferença que o doutor peleja para salvar o corpo, enquanto o pastor se esforça em salvar a alma. E o que aproveita o homem se conquista o mundo inteiro, mas perde sua alma, não é mesmo?...” — Tereza não entendia aonde o pastor pretendia chegar, mas não devia ser nada bom aquele estranho preâmbulo. O pastor se espreguiçava em sua confortável cadeira de chefe, intimidando-a com a situação:
— “Mas o melhor de tudo é a mulherada! Não é mesmo, Clodoaldo?” — Tereza enrubesceu, constrangida. Carlos parecia não ter limites:
— “Também, diante dos pinguços e babacas que a gente vê por aí, não me admira que as mulheres se encantem por qualquer homem de terno com a Bíblia debaixo do braço. Todas querem ser mulher do pastor!... Houve uma época, antes d’eu me casar obviamente, que eu flertava com todas as mocinhas na igreja onde meu pai exercia seu ministério. Eu era o “pastorzinho” da mulherada!” — E ria de satisfação...
— “Mas não é para menos: Pastor não tem vícios, não deve ser infiel, não se envolve com a malandragem... E se for ambicioso em salvar almas para Deus, ganha muito mais que a maioria. Definitivamente, é um excelente partido para casar! A minha sorte foi que encontrei uma pessoa ainda melhor que eu para ser minha companheira, uma pastora!” — Tereza começou a suar frio... Aquilo não iria acaba bem. Mas Carlos Vinícius sorria:
— “Sim, uma pastora!... Com curso de teologia e ordenada pela igreja luterana! Uma mulher culta, bonita e tão ambiciosa em salvar almas quanto eu. Seu único defeito, para mim, é não ligar para dinheiro. Eu lhe dei uma vida de princesa; um casamento dos sonhos! Eu fiz d’ela uma pessoa famosa, reconhecida na rua por dar bons conselhos. Eu a tornei uma das escritoras mais vendidas do Brasil! Juntos, somos imbatíveis... Poderíamos conquistar qualquer coisa que sonhássemos!” — Tereza agora sabia aonde Carlos queria chegar, mas quedou paralisada. Tinha consciência de que se gritasse o brutamonte do Clodoaldo a imobilizaria sem qualquer dificuldade. Precisava se concentrar em encontrar um modo de ganhar tempo. Com Júlia fora da missão, os dois se livrariam d’ela sem maiores dificuldades. O pastor continuou:
— “Mas como são insondáveis os desígnios de Deus, não é mesmo?! Ao invés de me adorar por pôr São Paulo e o Brasil aos pés d’ela — sim, adorar a mim, o seu marido — ela pôs-se a sonhar com missões no fim do mundo... Por anos me atormentou com essa loucura, até que me fez o ultimato: Ou viríamos para a África juntos; ou ela viria sozinha! Era o chamado do Senhor... Era a sua vocação, me dizia ela. Ela me deixaria, se necessário, para fazer a vontade de Deus... Eu não podia perdê-la. Vim com ela até a África na esperança de que ela desistisse, mas ela não desistiu. Eu fui até onde pude, mas o Sudão foi demais para mim... Ela me enviou para a Europa, ficou sozinha em Khartoum e nem assim desistiu. Vagou pelo Sudão, foi feita prisioneira e quando finalmente ela começou a se dar conta que aquilo não era para nós, as portas da grana grossa se abriram para mim na Europa! Até o tempo em Lübeck, eu só remava contra: Pouco me lixava para o Sudão do Sul... Foi lá também que eu me dei conta do tamanho que essa missão dará à nossa igreja por causa do trabalho humanitário. Afinal, se há pessoas dispostas a virem para cá e morrerem pelo Evangelho, porque não as ajudar? Sem falar das multidões doando fortunas a qualquer pessoa de boa-vontade que se disponha a vir a esse fim de mundo. Eu só posso agradecer a Júlia por me tirar d’aquele marasmo de “casamento blindado” e me trazer para a maior jogada da minha vida. Agora sim, minha vida começou de facto: Políticos e autoridades me fazendo convites para encontrá-los; recepções disputadas nas igrejas para me ouvirem falar de lugares que ninguém sabe onde fica; bilionários me oferecendo recursos para comprar seus terrenos no céu, limpado suas consciências com Deus. Uma maravilha!” — N’esse ponto, voltando-se para Tereza, ele a fuzilou com um olhar de ódio:
— “Mas qual não foi a minha surpresa, quando finalmente eu recebi minha esposa com a sensação de dever cumprido — realizando seu sonho. Ou melhor, sua vocação! — Ela me vem com quatro pedras na mão e me revela que está apaixonada por outra pessoa. E eu jamais poderia imaginar que essa outra pessoa era uma mulher! Muito menos uma separada mãe de duas filhas que mora com a mãe na zona Leste!... — Sim, nós sabemos onde você mora! — E pior, Júlia ainda a trouxera consigo para juntas escarnecerem de mim n’esse buraco empoeirado de Uganda!” — Tereza se levantou da cadeira, mas antes que se virasse uma mão pesada sobre seu ombro a fez se sentar novamente. Carlos continuou:
— “Fique sentada aí que eu ainda não acabei com você!” — E voltando-se para Clodoaldo, disse-lhe:
— “Leva essa zinha para o alojamento feminino! Você tem dez minutos, Tereza, para juntar as suas coisas e sumir d’aqui. Clodoaldo já está com seu passaporte, seus documentos e seu celular. Ele pessoalmente vai lhe levar de volta para Kampala e lhe pôr n’um avião para São Paulo. Ele sedará você se for preciso. Acho meio desnecessário ter de dizer, mas é bom deixar tudo claro: Se você tentar voltar para cá depois de chegar no Brasil ou contactar Júlia de qualquer modo, nós vamos atrás de você, sua mãe e suas filhas! É preciso que você entenda que o que está em jogo aqui é muito maior que você e Júlia. Eu estou determinado a ter minha mulher de volta, nem que tenha de matar você e sua família para ela desistir d’essa loucura. E olha, Tereza, não duvida de mim. Eu posso ser um homem de Deus, mas se eu tiver que ir no inferno, eu danço com o capeta!” — e voltando-se ao seu capanga:
— “Pode sumir com essa mulher imunda da minha vista, Clodoaldo.” — O segurança pôs a palma da mão em sua boca e a arrastou até o alojamento feminino que, àquela hora, já estava completamente vazio com as missionárias e funcionárias em seus postos de trabalho. Clodoaldo a virou para si e lhe advertiu:
— “Você tem dez minutos! Se gritar, eu lhe pego e você vai sem levar nada. Juízo!” — E a empurrou para dentro fechando a porta atrás d’ela. Tereza se desmanchou em lágrimas, deixando-se arrastar as costas pela porta até se agachar de cócoras... Pensando n’um meio de sair d’ali, procurou se levantar logo: Ela não podia perder tempo. Se tivesse que agir teria de fazer algo rápido. Olhou para os lados à procura de alguma saída para poder fugir d’ali, embora tivesse certeza que os seguranças do pastor já cercassem o prédio.
Enquanto procurava, reparou n’um pote cheio de remédios para dormir que as missionárias estavam precisando tomar enquanto não se acostumavam ao clima da África. Hesitou alguns segundos. Pensou em Júlia, em suas filhas, em sua mãe... Pensou no pai que a abandonara e nos irmãos que raramente via. Até em Afonso conseguiu pensar!... Foi até o pote de remédios para dormir e olhou seu conteúdo: Estava cheio! Devia ter uns cem comprimidos de benzodiazepínicos ali... Um ou dois eram o bastante para dormir por horas. Foi até sua mala e pegou o lenço branco com o jota cursivo bordado em rosa que Júlia lhe dera em São Paulo. Dentro, a sua calcinha de renda azul cheirava ainda o gozo de Júlia. Tereza a levou às narinas e respirou profundamente, como se quisesse reter o cheiro da mulher que amava. Dobrou-a novamente dentro do lenço. Foi até o banheiro e despejou o conteúdo quase completo do pote de comprimidos na privada. Deu descarga e encheu o copo de água. Foi até sua cama, pegou uma folha de papel e uma caneta esferográfica e escreveu seu bilhete suicida:
“A única certeza que tinha é de que seria abandonada um dia. Mais cedo ou mais tarde, o amor acaba e a pessoa amada — seja quem for — começa a se movimentar em direcção de algo que a apaixone novamente. A gente aprende, da pior maneira possível, que amar nunca é o bastante... Com o tempo, ou sufoca o outro ou extenua a si. Não há medida certa para amar, não há receita.”
“Tereza Dias”
Deixou o bilhete sobre a cômoda com cuidado e, pegando o copo d’água, engoliu uma a uma as sete pílulas para dormir que separara, deixando ainda três no pote para que achassem. Deitou-se o mais comodamente que pode na cama e, segurando o lenço de Júlia com as duas mãos sobre o ventre, esperou. Logo sentiu que adormecia, ainda dizendo em voz alta — “Meu amor!” — e desfaleceu sobre o lençol.
Quando Clodoaldo começou a bater na porta, Tereza já babava. Ele tentou primeiro ser discreto. Depois, contactou seus colegas pelo rádio para saber se ela havia tentado se evadir por alguma janela ou mesmo pelo telhado. Negativo. Impaciente já com a situação, começou a esmurrar a porta e mais pessoas aparecerem assustadas com aquilo. O ex-policial se justificou dizendo que Carlos Vinícius havia demitido Tereza e ele tinha ordens de levá-la de volta para Kampala em segurança. Logo logo, os missionários e os funcionários todos se aproximaram do corredor, esperando para, ao menos, se despedirem de Tereza. Por resto, o burburinho do pessoal do posto humanitário chamou a atenção de Carlos Vinícius que ficou pálido quando percebeu que situação fugira do controle. Os missionários, preocupados com Tereza trancada no alojamento, começaram a chamá-la, mas ela não respondia. Os minutos passavam e Tereza não saía, ainda que instada pelos colegas de que estava tudo bem. Insistiam dizendo que queriam apenas conversar com ela e abraçá-la. O pastor exigiu que Clodoaldo pusesse um fim n’aquilo rápido, levando Tereza embora a qualquer custo. O ex-policial forçou a porta e conseguiu arrombá-la quebrando o marco. Quando entraram, vendo Tereza e o pote de comprimidos vazio, uma das missionárias soltou um grito e desfaleceu. Foi um verdadeiro sururu! Todos, muito emocionados, lamentando Tereza... Encontraram o bilhete sobre a cômoda e não entenderam patavina. Carlos Vinícius, porém, reconheceu o lenço de Júlia em suas mãos e logo atinou que a mulher preferia morrer a deixá-la...
Os profissionais do atendimento médico logo se adiantaram para socorrê-la. Tereza foi levada para posto médico e submetida a uma lavagem gástrica. Porém, pela quantidade de comprimidos que havia no pote e pelo tempo que demoraram em fazer a lavagem, o prognóstico era bastante pessimista. Tereza ficou no soro por três dias, completamente apagada.
No dia seguinte, Júlia retornou de Kajo Keji e, transtornada, exigia uma explicação dos presentes sobre o que acontecera com Tereza. Carlos Vinícius a chamou para conversar no escritório, mas ela se negou dizendo:
 — “Isto é culpa tua! É responsabilidade tua!” — Carlos se defendia insistindo para que conversassem apenas os dois, no escritório. A pastora explodiu de vez:
— “Mas de jeito nenhum eu fico a sós contigo. Eu saí d’este lugar e Tereza estava bem. Agora...” — Carlos ainda insistiu:
— “Eu não tenho culpa se essa louca quis se matar!” — Júlia explodiu:
— “Dobre a língua para falar de minha amiga, chefe de merda! És responsável, sim, pelo bem-estar de todos n’essa missão. É teu dever! Mas, não. Claro que não! Apenas me esperaste sair para encurralar Tereza... E sob qual pretexto? Com que direito?” — Pondo as suas mãos sobre os olhos, irrompeu desolada:
— “Oh minha amiga! Minha amada amiga! O que esses dois demônios te fizeram fazer?!” — E se ajoelhou, pousando todo o peso do corpo sobre as pernas a chorar feito uma criança. Carlos e os demais apenas a olhavam, em silêncio.
Súbito, Júlia se levantou do chão e foi até o leito onde a amiga jazia desacordada e esperou sem ver as horas passarem. O médico da missão, porém, estava mais animado, visto que Tereza demonstrasse reagir cada vez mais a estímulos e, sobretudo, não morrera após as primeiras horas...
Júlia se sentou junto ao leito de Tereza e não saiu mais de lá. O médico lhe disse que ela poderia acordar a qualquer momento. 
Com efeito, depois de algumas horas, Tereza começou a mexer as pálpebras. Todos no quarto olhavam para ela, expectantes. Com dificuldade, Tereza abriu os olhos vendo um forte clarão branco no meio do qual, bem aos poucos, começou a divisar o rosto de Júlia em meio à forte luz: Seus enormes olhos verdes estavam rasos d’água, mas ela se esforçava para sorrir. A cabeça de Tereza lhe doía absurdamente, como se tivesse uma enxaqueca extrema. Os olhos demoraram a fixar as coisas e mesmo a mente a entender o que via. Por fim, ela falou:
— “Qual! Pensei que fosse o céu...”
Ao que Júlia, já às lagrimas, lhe respondeu:
— “Não, meu amor... Sou apenas eu”.
A outra ainda atalhou:
— “Mas é ...”
Tereza e Júlia se entreolharam. Sorriam.
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Peruíbe / São Paulo / Betim - janeiro de 2019

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