sexta-feira, 22 de julho de 2022

NOVAS NOVENTA E NOVE TROVAS

PRIMEIRA

Mais do que pobre na chuva

Tenho de mim reclamado...

Já me serve feito luva

Carapuça de coitado!

* * *

SEGUNDA

A quem dorme em demasia,

Seus sonhos, vez em quando,

Lhe parecem que vivia

Enquanto estava sonhando.

            *   *   *

TERCEIRA

Em noite escura, má sorte,

Ouço o pio da coruja...

Sábio quem lembra da morte

Sem topar co'a dita cuja.

            *   *   *

QUARTA

A vida -- dizem -- é dura

Apenas p'ra quem é mole.

Ao homem de triste figura

Já não há que lhe console.

            *   *   *

QUINTA

Há, do outro lado da vida,

A própria vida espelhada

N'uma imagem refletida

Do nada ao infinito nada.

            *   *   *

SEXTA

No açude de teus olhos,

Sou um salgueiro a chorar.

Mal reparas os desfolhos

D'outro outono a me chegar!...

            *   *   *

SÉTIMA

Não há dia como a noute

Onde estrelas vêm e vão...

Eis: --"Oh Universo, eu sou-te!"¹ --

Dentro do meu coração.

           *   *   *

OITAVA

Esperando quem não vem

Fiz a vida mais comprida.

Quem me dera por meu bem

Esperar toda uma vida!

           *   *   *

NONA

Se mil mortes tem quem ama

Quantas vidas não teria?

Sem manter d'amor a chama

Resta-me a alma por fim fria...

           *   *   *

DÉCIMA

Quem maldades insinua

Atiça a ferida em brasa...

Dá-lhe que a porta da rua

É serventia da casa!

           *   *   *

UNDÉCIMA

D'aqui a pouco adormeço

Tamanho está meu cansaço.

Esqueço quanto conheço:

Modorro sob o mormaço...

           *   *   *

DUODÉCIMA

Atravesso o rio a vau

Depois de atolar na vargem,

Fincando no fundo um pau

Até chegar n'outra margem.

           *   *   *

TREDÉCIMA

Um galo na madrugada

Avisa vir vindo o dia.

Ninguém, porém, sabe a estrada

Por onde vem a alegria.

           *   *   *

QUATRIDÉCIMA

Dia sim; dia não, vejo

Outra esperança perdida.

Pouco vale meu desejo

Nos desencontros da vida...

           *   *   *

DÉCIMA QUINTA

De costas, olhando o mar

Está a mulher que amei.

Quem brilha no seu olhar

Confesso que já não sei.

           *   *   *

DÉCIMA SEXTA

Oficina do Demônio:

A mente vazia e errante

Tem um único neurônio

Onde o tédio é imperante...

           *   *   *

DÉCIMA SÉTIMA

A verdade é que a mentira,

Mesmo quando bem contada,

Pela verdade suspira

Querendo ser revelada.

           *   *   *

DÉCIMA OITAVA

Vão aos trancos e barrancos

A fazer horas mais ledas:

Intrépidos saltimbancos

Recolhem aos chapéus moedas.

           *   *   *

DÉCIMA NONA

-- "Meus filhos 'tão todos criados..."

Vive afinal como quis

Aquela cujos pecados

Guardou para ser feliz.

           *   *   *

VIGÉSIMA

Bem do século passado

Dizer se presta ou não presta...

Nem aquele que anda errado

Tem etiqueta na testa!

           *   *   *

VIGÉSIMA PRIMEIRA

Quem só de passado vive

Dizem ser algum museu.

Não esqueci onde estive;

Esqueci quem m'esqueceu.

           *   *   *

VIGÉSIMA SEGUNDA

Ando pensando na vida,

Como soubesse vivê-la...

Frustrado já de saída,

Talvez me faltasse estrela.

           *   *   *

VIGÉSIMA TERCEIRA

Depois de muito atropelo,

Da bateia tive trégua:

Com ouro em pó pelo pelo,

Eu levei e lavei a égua!

           *   *   *

VIGÉSIMA QUARTA

Não confies na multidão

Que porfia em bajular.

Vivem dando ao falastrão

Corda para s'enforcar.

           *   *   *

VIGÉSIMA QUINTA

Angu a dar com o pau

Na boca do que não come.

Fazia o bem sendo mau...

Negreiro: O home lobo do home.

           *   *   *

VIGÉSIMA SEXTA

Corre pela boca miúda

As safadezas da dona.

Gente que mal se desnuda

Vive a vigiar sua cona!...

           *   *   *

VIGÉSIMA SÉTIMA

Não há no mundo quem veja

A loucura do que diz...

Porque precisa ou deseja,

Todo mundo é infeliz.

           *   *   *

VIGÉSIMA OITAVA

Acabo por desistir

De esperar mais esperanças:

Qualquer que seja o porvir,

Sombrias minhas andanças...

           *   *   *

VIGÉSIMA NONA

Contra tudo e contra todos,

Procuro uma rima plena.

Escrevo de muitos modos

Até que me valha a pena.

           *   *   *

TRIGÉSIMA

Tendo a poesia por pena,

Tem-se o poeta por culpado...

O leitor na tarde amena

Separa o certo do errado.

           *   *   *

TRIGÉSIMA PRIMEIRA 

Nas horas mortas da noite

-- Desoras de escuridão... --

Zurrava a mula no açoite:

Histórias d'Assombração!

           *   *   *

TRIGÉSIMA SEGUNDA

Relincha a égua na campina

Das vertentes morro abaixo.

Nem um palmo p'la neblina

Vê o rapaz cabisbaixo

           *   *   *

TRIGÉSIMA TERCEIRA

Sob sete palmos de terra

Descansam justos e injustos,

Nenhuma ama decerto erra

Apenas para dar sustos!

           *   *   *

TRIGÉSIMA QUARTA

Enxurrada que carrega

As terras do boqueirão

Dia após dia se achega:

Abismo e desolação!

           *   *   *

TRIGÉSIMA QUINTA

Lá para os lados do poente

Céus pesados e sombrios.

Um dilúvio, de repente,

Enchendo as ruas e os rios.

           *   *   *

TRIGÉSIMA SEXTA

Passa o dia em nuvens brancas;

Nuvens brancas pelo céu...

Velho Chico das carrancas,

Não me deixes ir ao léu!

           *   *   *

TRIGÉSIMA SÉTIMA

Pobrezinho, pobrezinho...

Foi o Romeu que morreu.

Lá na curva do caminho.

Mas antes ele do que eu!

           *   *   *

TRIGÉSIMA OITAVA

-- "Mas será o Benedito?" --

Pergunta a dona espantada.

O moleque correndo aflito

Apenas diz: -- "Não fiz nada!"

           *   *   *

TRIGÉSIMA NONA

Querendo-se espirituoso,

Fala pelos cotovelos...

Tem gosto bem duvidoso;

De arrepiar os cabelos!

           *   *   *

QUADRAGÉSIMA

Anda meio aperreado

Quem sai de afasto. Afinal,

Insiste pelo rumo errado

Para o bem para o mal.

           *   *   *

QUADRAGÉSIMA PRIMEIRA

Entra n'água e não se molha.

Vai no mundo e não se perde.

Voeja no vento qual folha

E cai na campina verde.

           *   *   *

QUADRAGÉSIMA SEGUNDA

Lume de quinta grandeza

Que anos-luz ilumina!

'Té a Terra, em redondeza,

Pelos seus polos se inclina.

           *   *   *

QUADRAGÉSIMA TERCEIRA

Muito antes d'haver estradas,

Atalhava eu pelo mato.

Sendeiro nas madrugadas:

Vereda a dar no regato.

           *   *   *

QUADRAGÉSIMA QUARTA

Para os lados do sertão,

Onde tudo é mais distante,

Comtempla-se a imensidão.

Chamar os passos do errante.

           *   *   *

QUADRAGÉSIMA QUINTA

Trocando pernas caminho

Alta noite pela rua.

Se tenho de andar sozinho,

Ao menos por sob a lua!

           *   *   *

QUADRAGÉSIMA SEXTA

As mulheres e seus amores

São curvas de se perder...

Se d'elas desejo ardores

Mil mortes sei eu morrer.

           *   *   *

QUADRAGÉSIMA SÉTIMA

Através da noite escura,

Rodei uma légua e meia.

Não valeu minha procura

Seguir quanto o peito anseia.

* * *

QUADRAGÉSIMA OITAVA

O silêncio de teus lábios

Diz mais que muitas conversas.

Só entendem os mais sábios

Ausências tão controversas.

* * *

QUADRAGÉSIMA NONA

Comprando gato por lebre,

Natural que alguém reclame

Assim que o encanto se quebre:

-- "Quem não a conhece que a ame!"

* * *

QUINQUAGÉSIMA

O nobre acto de pensar

Engrandece o de escrever.

O poeta encontre o lugar

Onde as letras deem prazer.

* * *

QUINQUAGÉSIMA PRIMEIRA

Muita gente que se indaga

Sobre amar e ser amado.

Se amor com amor se paga,

Faz anos eu sou roubado...

* * *

QUINQUAGÉSIMA SEGUNDA

Tantas vezes já partido,

Um coração em pedaços

Fica aos poucos parecido

Com um rosto sem os traços.

* * *

QUINQUAGÉSIMA TERCEIRA

Pensando bem, todo o mal

Tem a ver com ignorâncias.

Somente um cara-de-pau

'Inda evoca as circunstâncias...

* * *

QUINQUAGÉSIMA QUARTA

Por sobre a lápide jaz

Um cupido em solidão

Marmóreo, repousa em paz

Meu flechado coração.

* * *

QUINQUAGÉSIMA QUINTA

Antes de mais nada, tudo

Que existe de bom na vida,

Perpassa o corpo desnudo;

Atravessa a alma despida.

* * *

QUINQUAGÉSIMA SEXTA

Nem mesmo o mais instruído

Há-de saber dos amores:

Não fazem qualquer sentido,

E deixam apenas dores.

* * *

QUINQUAGÉSIMA SÉTIMA

A pólvora no rastilho

À espera apenas da faísca...

Fatal do fósforo o brilho

Diante d'aquele que o risca.

* * *

QUINQUAGÉSIMA OITAVA

Diz que tem o dedo podre

Mais o coração de pedra...

Um vinagre azedo no odre

Ou erva daninha que medra.

* * *

QUINQUAGÉSIMA NONA

Ando ao largo de tristezas,

Procurando maravilhas.

Embriagado de belezas,

Estradão: Milhas e milhas.

* * *

SEXAGÉSIMA

O fabulista pretende

Uma verdade inventada

Em lugar do que s'entende

Por verdadeira jornada.

* * *

SEXAGÉSIMA PRIMEIRA

Mas, olhar para o passado

E jamais ver a verdade,

É querer, sem certo ou errado,

Distorcer a realidade.

* * *

SEXAGÉSIMA SEGUNDA

Ocorre que a Terra roda,

Indiferente de crenças,

Uma órbita elíptica toda

Em realidades imensas.

* * *

SEXAGÉSIMA TERCEIRA

Não vou enumerar factos

Ou argumentar quanto fiz.

Leva teus sonhos intactos...

E sê apenas feliz!

* * *

SEXAGÉSIMA QUARTA

Trocando os pés pelas mãos,

Magoou em vez de agradar.

Na companhia dos vãos

Prefere, por fim, estar.

* * *

SEXAGÉSIMA QUINTA

Não mereces ser amado

Se amas para ter amor.

Amor de graça é bem dado,

Nunca por prêmio ou favor.

* * *

SEXAGÉSIMA SEXTA

O que chafurda no esgoto

Vê no outro o próprio pecado...

Assim como faz o roto

Ao falar do esfarrapado.

* * *

SEXAGÉSIMA SÉTIMA

Anjos cantando na igreja

Têm um silêncio de pedra

Nas alturas -- "Olhe-veja!" --

Auréolas cobertas d'hedra...

* * *

SEXAGÉSIMA OITAVA

Verdes anos já passados

Entre amores e esperanças,

Agora os vejo embaçados

Pelas lentes das lembranças...

* * *

SEXAGÉSIMA NONA

Antes tarde do que nunca,

Co'as mandonices deu cabo:

Fosse varão ou varunca,

Manda hoje tomar no rabo.

* * *

SEPTUAGÉSIMA

Pouco se dá a quem vê

Que o rei está mesmo nu.

Desdenham-no, até porque

O apressado come cru...

* * *

SEPTUAGÉSIMA PRIMEIRA

Bem revoltado, sabia

Que não era brincadeira:

-- "Com mil demônios, enfia

O dedo no cu e cheira!"

* * *

SEPTUAGÉSIMA SEGUNDA

Canta a lira tabuísmos,

De gente bem desbocada.

Andando à beira de abismos

O poeta faz sua estrada.

* * *

SEPTUAGÉSIMA TERCEIRA

Cora o rosto a rapariga

Pelas rimas fesceninas.

Mas não cora qu'eu bendiga

Suas curvas femininas.

* * *

SEPTUAGÉSIMA QUARTA

Passou Natal não beijei;

Passou Ano Bom também.

Eu o ano inteiro passei

Sem achar quem me quer bem.

* * *

SEPTUAGÉSIMA QUINTA

Cagando e andando igual vaca

No pasto verde sem mais,

Está quem vai de ressaca

Ou já bêbado demais.

* * *

SEPTUAGÉSIMA SEXTA

Há tipos que só de longe

A gente pode aturar.

Se o hábito não faz o monge,

Faz a amizade o lugar.

* * *

SEPTUAGÉSIMA SÉTIMA

Sete vidas tem o gato;

Doze meses tem um ano.

Nada, porém, tem o ingrato

Que não seja dor e engano.

* * *

SEPTUAGÉSIMA OITAVA

Ai de quem confia no homem

E n'ele espera algum bem!

Suas esperanças somem,

Quando o outro nada sustém.

* * *

SEPTUAGÉSIMA NONA

Toc, toc, toc... Batem à porta.

Nem carece ver quem é.

O chegado pouco importa:

Ofereça-se café.

* * *

OCTAGÉSIMA

Tem gente que fala muito,

Mas tem feito muito pouco.

Criticam sem mais intuito

Do que deixar o outro louco.

* * *

OCTAGÉSIMA PRIMEIRA

Menor do que de facto é,

Aquele que se sabota...

Se de joelhos, não de pé,

Está no chão e nem nota.

* * *

OCTAGÉSIMA SEGUNDA

Deve estar co'a macaca hoje,

Tanto que fala e reclama.

Todo mundo em volta foge

E a danada em vão nos chama...

* * *

OCTAGÉSIMA TERCEIRA

Dizem que a última que morre

É a esperança do fiel.

Feliz de quem Deus socorre

E tarda em tê-lo no céu!

* * *

OCTAGÉSIMA QUARTA

Sabe Deus que tenho andado

Buscando um lugar ao sol.

Nas estradas do passado

Não reluz novo arrebol.

* * *

OCTAGÉSIMA QUINTA

Mentira tem perna curta...

Não vai longe o mentiroso...

Quem à verdade se furta

Não tem sossego nem gozo.

* * *

OCTAGÉSIMA SEXTA

Todos os gatos são pardos

Na noite escura que passa.

Todos os homens são tardos

No dia d'uma desgraça.

* * *

OCTAGÉSIMA SÉTIMA

Se a ocasião faz o ladrão,

-- Por demasiado humano ... --

Era todo cidadão

Sem carácter, salvo engano.

* * *

OCTAGÉSIMA OITAVA

Não era oito nem oitenta,

Sim outro triste pós-coito...

Um que jamais se contenta

Não será nem se oitenta e oito!

* * *

OCTAGÉSIMA NONA

Aparências enganosas

Iludem desiludidos.

Nas veredas amorosas

Permaneciam perdidos.

* * *

NONAGÉSIMA

Atravesso a noite imensa

A caminho da saudade.

O que se sente ou se pensa?

Lembranças da mocidade...

* * *

NONAGÉSIMA PRIMEIRA

Serás feliz. Tu terás

Novos amigos e amores:

Deixa os velhos para trás

E goza dias melhores...!

* * *

NONAGÉSIMA SEGUNDA

Aquele que foi amado

Jamais será um amigo.

Antes ser tão-só lembrado

Do que d'olhares mendigo.

* * *

NONAGÉSIMA TERCEIRA

Aproveita o dia de hoje.

Não contes co'o que virá.

O tempo célere foge

Para a noite onde nada há.

* * *

NONAGÉSIMA QUARTA

Isto é saber dos antigos

Pelos novos conservado.

A vida tem muitos perigos

A quem o tem desdenhado.

* * *

NONAGÉSIMA QUNTA

Se falam de boca cheia

De sua própria ignorância,

Lhes tenho vergonha alheia...

D'estes eu quero distância!


* * *

NONAGÉSIMA SEXTA

Valha-me Deus de querer-te!

Oxalá esteja eu só!

Eu vivo alerta e solerte

De quem não me tem nem dó.


* * *

NONAGÉSIMA SÉTIMA

Toma para ti teus sonhos

E deixa os meus para mim.

Olhos, os tenho tristonhos

A olhar para o nosso fim.


* * *

NONAGÉSIMA OITAVA

Quem muito quer nada tem;

Quem muito tem pouco faz.

Com pouco faz muito bem

O que vive bem e em paz.


* * *

NONAGÉSIMA NONA

Noventa e nove escrevi.

Há quem escreva bem mais

O que escrevi, conheci.

O resto são prantos e ais!

Betim – 30 11 2020 


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