sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

PÉS-DE-CHINELO

PÉS-DE-CHINELO

É interessante como na Sociedade de Consumo a condição humana do pobre é, por via de regra, precarizada… Embora se declare que todos os homens sejam livres e iguais em direitos, não são poucos os direitos negados àqueles que não podem pagar. O Direito não socorre os que dormem… Os que não pagam, tampouco! A própria Democracia sempre conviveu com tentação excludente de diferenciar cidadãos votantes dos demais habitantes da Pólis, fosse pelo nível mínimo de educação formal para votar; fosse pelo puro e simples voto censitário… Tocqueville, ou outro liberal de seu século, nos legou a exemplar historieta dos operários que, interessados em participar da República -- primeiro votando e, com certeza, buscando ser votados um dia -- inocentemente perguntaram às autoridades o que deveriam fazer para participar do sufrágio "universal". -- "Fiquem ricos! -- respondeu um notário d'antanho tentando ser espirituoso ou realista.

Sim, para votar na França liberal novecentista era preciso ter renda anual comprovada… "Pobres não sabem votar ou votam errado. -- argumentam uns. "Quem passa necessidade, forçosamente, há-de vender seu voto! -- contemporizam outros. A História nos mostra, entretanto, que as democracias se fortaleceram quando conseguiram incluir as pessoas mediante instrumentos de transformação social menos traumáticos e efetivos que as revoluções. Somente envolvendo as pessoas nas decisões é que obediência ou mesmo submissão se transformam em participação.

Não por outra razão a ideia de decência e decoro -- que tem a ver sobretudo com os costumes locais, não com reflexões éticas universais -- sejam inequivocamente sustentadas por condições materiais. Sim, a pobreza é indecente! Ser pobre é vestir-se e agir de modo inadequado segundo padrões impostos por quem pretende, a qualquer custo, se distinguir dos menos favorecidos. Tudo! Todo um estado de coisas é construído para que o pobre odeie sua condição e se sacrifique por todos os meios possíveis (os ilegais, inclusive…) para que deixe de ser pobre. Ser pobre é sempre ser pior. Pobre é estúpido, é ignorante, é irresponsável, é desonesto… É, na melhor das hipóteses, alguém a ser controlado, seja pelas forças policiais; seja pelos preceitos religiosos.

Evidente que esse bombardeio ideológico sobre os pobres com vias integrá-los às estruturas de Capital e Trabalho cobram seu preço na saúde mental. Não aceitar que a pobreza possa ser uma escolha consciente por certo estilo vida transforma os pobres em fracassados ou perdedores. Sob tal perspectiva, a sociedade é uma espécie de corrida com obstáculos onde todos, não importa d'onde ou quando deem largada, devem gastar suas existências no afã de chegar ao topo da pirâmide. Não admira que haja quem escolha "ficar rico ou morrer tentando"… N'esse estado de coisas, a pobreza é apresentada como algo tão incompleto e vexatório que o sentido da vida não possa ser outro senão obter mais e mais conforto material. Não que se pretenda aqui idealizar a pobreza: Perrengue é perrengue! Sem embargo, o que não se deve aceitar de modo nenhum é a idealização da riqueza. Se por um lado, apostar nos mecanismos de retribuição neurológicos como promoção d'um consumismo ostensivo desenfreado não promovem senão ansiedade n'aqueles que têm dinheiro para usufruir do mais novo e melhor; por outro, os pobres alternam entre a motivação e a depressão provocados por objectos de desejo inaccessíveis. N'um mundo onde se é o que se tem, aquele que não tem nada não é ninguém.

Isso me faz lembrar sobre uma velha anedota sobre a relatividade dos adjetivos para qualificar de forma distinta ricos e pobres diante de situações semelhantes… Adágio popular, virou até música de humorista:

"Rico correndo é atleta
Pobre correndo é ladrão
Rico com medo é nervoso
Pobre com medo é cagão
O rico mete na cama
E o pobre mete no chão"
"Pobre e Rico", por Ari Toledo.

Olhando sob este viés, digamos, material da existência humana, percebe-se que a formação da sociedade brasileira é, em linhas gerais, a História da inserção de grupos humanos estranhos ao Capital e ao Trabalho na estruturas de mercado. Ameríndios, africanos e mesmo europeus sujeitos as condições semifeudais do Antigo Regime habitavam um Novo Mundo no qual a carência material e tecnológica era tamanha que ter ou não ter dinheiro não chegava a ser percebido como algo relevante, afinal, viviam todos à base de mandioca e banana empenhados em exportar tudo o que fosse possível extrair d'esse chão.

Os relatos do Brasil colonial, por via de regra, apresentam homens e mulheres miseráveis ambientando-se a uma Natureza opulenta-mas-hostil. Com tal estado de coisas, a informalidade nas relações humanas se estabeleceu para consolidação do "homem cordial" que o brasileiro se percebe em seu afã de relativizar ou mesmo esvaziar os graves conflitos que uma sociedade extremamente desigual pressupõe. Não que nossa História não seja sangrenta, ao contrário. Mas a conciliação e o desleixo sempre andaram de mãos dadas na construção d'um imaginário tolerante. A cordialidade brasileira do "jeitinho" atravessa nossas constituições e instituições. No Brasil, até a disciplina militar conviveu com as "vivandeiras" enquanto políticos e juízes tutelam o povo inculto mediante o acúmulo de privilégios absurdos.

Nos seculos XVIII e XIX, a diferença prática entre a vida do brasileiro pobre e o rico não chegava a ser algo muito significativo. Embora os senhores de engenho e comerciantes se vestissem à europeia, o pouco dinheiro que circulava não lhes trazia grande qualidade de vida. De facto, à medida que a diferença entre ser rico ou pobre na exuberante natureza tropical se explicita, menos se questiona o estilo de vida do colonizador. Este, referendado pelas conquistas tecnológicas europeias -- importadas, literalmente, a peso de ouro -- senta-se à sombra das palmeiras para reclamar do povo preguiçoso e acomodado que o cerca… Em sua cabeça simplista de macho-adulto-branco, o rico advoga que todas as pessoas deveriam buscar, tal como ele, o sucesso material.

Pés-de-chinelo, somos convencidos diariamente pelos ricos que não há nada pior do sermos como somos. Logo, devemos trabalhar muito para termos "uma vida melhor", quando o que realmente liberta as pessoas e transforma suas vidas é a Educação que as forma, não a Riqueza Material que ostentam (até porque, muita riqueza por aí tem origem ilícita). Eu -- descendente de índios espoliados, africanos captivos e europeus desesperados -- confesso que não me sinto atraído pelos maneirismos dos burgueses metidos a besta. Prefiro-me um humilde de chinelo de dedo do que um deslumbrado que pensa que dignidade se compra com sapatos lustrosos.

Ademais, para quem está no topo a vista pode até ser um privilégio único, mas facto é que qualquer belvedere é exíguo demais para comportar as multidões que transitam nos degraus inferiores da sociedade. O que ideólogos do sucesso ignoram comodamente é não haver lugar para todos se todos chegarem lá. Vendendo esperanças, constroem uma ordem social baseada em ilusões que, frustradas, dão lugar a revoltas e crises cíclicas.
 
Afinal, é uma pirâmide essa sociedade que está aí…

Betim - 20 12 2019

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