ISTMO
Entre marés revoltas eu sou rocha
Lúcida e eternamente atormentada.
Elevação deserta em meio ao nada,
Que das ondas em fúria vã debocha.
Faixa de terra estreita que se arrocha,
Ligando uma península avançada
Ao continente como ponte-e-estrada,
Enquanto o extremo sol se põe em tocha.
Os dois mares que avançam contra mim
Erodem com violência minhas costas
No afã de que nova ilha houvesse enfim.
Resisto sem perguntas nem respostas
Aos trabalhos do mar se, ao cabo e ao fim,
À terra alheias linhas são impostas.
Ubatuba - 22 12 1996
Espaço para exibição e armazenamento de poemas à medida que os vou escrevendo. Espero contar com o comentário de leitores atentos e gente com sensibilidade poética por acreditar que o poema acabado não precisa ser o fim de uma experiência, sim o início de um diálogo.
sábado, 31 de outubro de 2020
ISTMO
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
MÚSICA INSTRUMENTAL
MÚSICA INSTRUMENTAL
De certo modo, a música instrumental é expressão sonora não limitada pelo verbalismo. Pode até pretender significados, mas o faz com a subtileza do não dito; com a liberdade do sugerido. Pode ser, mas também não ser. Aliás, difícil afirmar se triste ou reflexiva a música que toca sem palavras... Mas, exacto por não se sustentar em nenhum idioma, deseja-se universal sob títulos genéricos como "Concerto n° 2", ou coisa que o valha. A música instrumental paira acima de todo desejo de nacionalismo vernáculo ou de bairrismo provinciano, outorgando-se um vago limite onde, sem dizer nada, expresse-se tudo.
Não admira que essa ausência de densidade de significado permita, por via de regra, a prolixidade de sessões improvisadas por horas ou peças minuciosamente compostas para orquestras com dezenas de instrumentos. Melômanos, afinal, não se impressionam à toa. A diversidade das variações sobre o mesmo tema a desenvolver-se em peculiaridades insuspeitadas aguça a atenção do ouvinte atento ao mesmo tempo em que segue como música de fundo quase imperceptível na conversa do café... Há ouvidos e ouvidos! Sem embargo, a música continua tocando, vibrante, por instrumentistas em êxtase face a plateias que variam do mesmerizado ao indiferente. Tudo parece apenas uma melodia a se reinventar infinitamente.
Avessa à música popular e suas letras grudentas, o instrumental parece exigir uma imersão mais profunda do ouvinte, mas, sobretudo, do instrumentista. Ali, a música existe não para ser ouvida, mas sim para ser tocada. É a diversão dos músicos alheios ao público. Este, se for capaz, alcance o delírio coletivo que presencia... Nefelibatas da berlinda, os músicos se apresentam preocupados em tocar para si mesmos. Dir-se-ia que tocam para seus instrumentos soarem harmônicos n'um afã do belo pelo belo tão-somente. A arte ensimesmada que propõem é linguagem que não se exige sentido, sim sentimento. É abstrata como a pintura não figurativa: Não está ali para ser interpretada por terceiros. Essa obra que prefere sugerir a dizer desdenha as letras e os vocábulos para ser, sobretudo, agradável. Oxalá os homens e mulheres d'este tempo se permitam cada vez mais a beleza de músicas sem palavras e até sem título!...
Betim - 30 10 2020
TRÍPTICO
TRÍPTICO
O PAI - painel esquerdo
Havia nos seus olhos tamanha ânsia,
Mirando -- para além da morte -- o nada,
Que a alma se lhe fugia na mirada
A buscar um sentido na distância.
Era o próprio retrato da inconstância.
Por sob uma luz pouco afortunada,
Trazia agora co’a face enrugada
Um sorriso d’após segunda infância.
Esquecido à poltrona em que jazia,
Sentava-se curvado sobre o abdome
Enquanto perscrutava o fim do dia.
Mas tinha algo que nunca se consome
E como que a lembrar-se que existia,
Quedava a repetir o próprio nome...
***
OS DOIS IRMÃOS - painel central
Já costumavam ter seus olhos tristes
Um ar entre incrédulo e arredio,
Parecendo esperar o já tardio
Alvoroço da vida com maus chistes.
Indiferentes, jogam feito alpistes
Seus vinténs ao som d’algum assovio.
Pés descalços que ignoram qualquer frio,
Qual cavaleiros sem arreios ristes.
Tão meninos e já conhecem tudo
O que o mundo dos homens mente e malda,
Onde a dor mal se oculta ao rosto mudo.
Por essas e outras, olham ora à balda,
Simulando ser o avesso o que não são
Enquanto vem a idade da razão.
***
A MÃE - painel direito
Como a Virgem Maria de Caieiro¹,
Faz-se meias pelas tardes da existência.
Vã, a luz invernal vem com veemência
Sobre seu rosto, mãos e o talhe inteiro.
Amêndoas as pupilas... Ao candeeiro,
Brilham a paz da sua própria essência;
Têm-lhe a sabedoria da vivência.
Devotada a um ideal mais verdadeiro.
Vê-se, na parede, uma Anunciação,
Ao fundo da saleta aconchegante,
Dando sentido a só composição.
O mais são os detalhes d’este instante:
A luz, a lã, o riso expectante...
Aos olhos já em só contemplação.
Betim - 14 10 1998
terça-feira, 27 de outubro de 2020
BOTÃO DE ROSA
BOTÃO DE ROSA
Feriste-me a sangrar o peito em vez
De aceitar-me um botão de rosa aberto…
Passaste o nosso amor a descoberto
N’um misto d’esperança e insensatez.
Dar o que não se tem é intrepidez,
Mas a esperteza não valeu ao esperto.
O mercado do amor andava incerto…
Demasiado incerto a ti talvez.
Voltas ao meu jardim determinada
A reaveres a rosa desdenhada,
Aceitando-me o que antes rejeitaste.
Outro inverno, porém, desfolhou tudo.
N’aquele roseiral, hoje desnudo,
Outrora despontou a rosa em haste!
Betim — 09 09 1996