sexta-feira, 30 de outubro de 2020

TRÍPTICO

TRÍPTICO  

 

O PAI - painel esquerdo  

 

Havia nos seus olhos tamanha ânsia,  

Mirando -- para além da morte -- o nada,  

Que a alma se lhe fugia na mirada  

A buscar um sentido na distância.  

 

Era o próprio retrato da inconstância.  

Por sob uma luz pouco afortunada,  

Trazia agora co’a face enrugada  

Um sorriso d’após segunda infância.  

 

Esquecido à poltrona em que jazia,  

Sentava-se curvado sobre o abdome  

Enquanto perscrutava o fim do dia.  

 

Mas tinha algo que nunca se consome  

E como que a lembrar-se que existia,  

Quedava a repetir o próprio nome...  

 

*** 

 

OS DOIS IRMÃOS - painel central 

 

Já costumavam ter seus olhos tristes 

Um ar entre incrédulo e arredio, 

Parecendo esperar o já tardio 

Alvoroço da vida com maus chistes. 

 

Indiferentes, jogam feito alpistes 

Seus vinténs ao som d’algum assovio. 

Pés descalços que ignoram qualquer frio, 

Qual cavaleiros sem arreios ristes. 

 

Tão meninos e já conhecem tudo 

O que o mundo dos homens mente e malda, 

Onde a dor mal se oculta ao rosto mudo. 

 

Por essas e outras, olham ora à balda, 

Simulando ser o avesso o que não são 

Enquanto vem a idade da razão. 

 

*** 

 

A MÃE - painel direito   

 

Como a Virgem Maria de Caieiro¹,     

Faz-se meias pelas tardes da existência.     

Vã, a luz invernal vem com veemência     

Sobre seu rosto, mãos e o talhe inteiro.    

 

Amêndoas as pupilas... Ao candeeiro,     

Brilham a paz da sua própria essência;     

Têm-lhe a sabedoria da vivência.     

Devotada a um ideal mais verdadeiro.   

 

Vê-se, na parede, uma Anunciação,     

Ao fundo da saleta aconchegante,     

Dando sentido a só composição.   

 

O mais são os detalhes d’este instante:    

A luz, a lã, o riso expectante...     

Aos olhos já em só contemplação.  

 

Betim - 14 10 1998 

Nenhum comentário:

Postar um comentário