domingo, 13 de outubro de 2019

DESAGRAVOS E OUTRAS AGUDEZAS DO ESPÍRITO

DESAGRAVOS E OUTRAS AGUDEZAS DO ESPÍRITO

Injuriado, injustiçado, incomunicável… Quanto sofrimento há-de aguentar um coração? Parece bom aos que se veem como bons serem maus com os que veem como maus! Toda acto de força é uma fraqueza, sobretudo quando os violentos juram fazer uso d'ela para o bem. Eu não sou um violento. Ele também não. Pacifistas por princípio, preferimos morrer a matar quem quer que seja, pois, a manutenção de minha vida não justifica o extermínio de outra. Não sou santo; ele não é santo, mas, humanamente, não vemos sentido em dividir a Humanidade entre bons e maus, embora muitos o façam.

Em todo caso, uma vez acusado de se omitir diante de malfeitores e condenado por não combater suas maldades, os bons -- que nem são tão bons assim… -- julgaram por bem decidir que ele não devia ser contado entre os bons e lhe deram a pena que se concede aos muito maus, de sorte que, declarado muito mau, ele fosse contado entre os maus. Convém salientar que para homens como nós -- isto é, pacifistas -- os conceitos de bom e mau nos são quase indiferentes por inconclusivos ou circunstanciais. No caso, ele foi mau por se negar a ser mau com os maus, segundo os bons. Percebe-se que a bondade d'estes é uma caprichosa construção colectiva na qual todos aceitam seus papeis sociais e concorrem pelo bem comum dos bons enquanto os maus, uma vez identificados, são progressivamente excluídos do convívio social, quando não exterminados.

Ele sabe que eu sei que ele não é mau, mesmo com os critérios estabelecidos sob a égide da bondade do momento, que imputa, por exclusão, o rótulo de maus aos que relativizam ou mesmo condenam tal bondade de ocasião. Sem embargo, animais sociais que somos, submetemo-nos aos conceitos e valores d'esta sociedade para existirmos n'ela, portanto, respeitamos suas leis, regras, normas e etiquetas, ainda que as saibamos puramente convencionais. O que realmente não é convencional, é a vida humana; é o sofrimento humano. Existimos entre homens que acreditam na bondade -- e mais, que se acreditam bons!-- embora conscientes das limitações d'esta bondade. Afinal, os costumes mudam, mas a condição humana permanece. A única ética possível para homens como nós, cujas ideias já foram estabelecidas para além do bem e do mal, é de alinhar decisões, posturas e actitudes sempre entre aquelas que diminuam o sofrimento das pessoas ou seu desenvolvimento humano. Não há cor, símbolo, bandeira, camisa, hino ou distinção passional que seja capaz de distinguir para nós os homens entre "nós" e "eles", tanto quanto a distinção entre "bons" e "maus" tampouco nos servira.

O que existe são homens e todos sangram abertas as veias. Não entendo como se possa negar ajuda pela cor da camisa do outro… Ele também não. Isso nos faz objeto da incompreensão de uns e outros, visto que para muitos o grande exercício da vida é aprender a identificar os valores que regem este ou aquele indivíduo e lhe impingir um rótulo definitivo: Preto, branco, mestiço, veado, maconheiro, bandido, vagabundo, fracassado, parasita, acomodado, inútil, papa-hóstias, macumbeiro, ateu, safado, comunista, reacionário, babaca, otário, gado, milico, punheteiro, arrombado, lambe-botas, patriota, americanófilo, xenófobo, misógino, machista, feminista, conservador, caipira, caipora, favelado, sem-terra, reformista, esquerdista, direitista, centrista, fascista…

Enfim, tudo aquilo que os homens de bem não são. Homens bons não são nada além de juízes dos outros. Mas para se sentirem merecedores d'este patamar elevado do qual assistem os homens em seus conflitos quotidianos e pôr em funcionamento sua máquina de etiquetar, eles se tornam suprapartidários e apolíticos, não para fazerem filosofia ou poesia, como eu e ele eventualmente pretendemos, mas sim para purificarem o poder e exercê-lo sob um paradigma sobre-humano -- o que é uma desumanidade em si.

Eu e ele, ao contrário dos bons, abdicamos de julgar os homens quando nos vimos igualmente sujeitos a paixões e sofrimentos. Quem quiser observar o homem e entender suas acções deve ter em mente que esse ser entre os seres morre, adoece, ama, odeia, come, bebe, se droga e, sobretudo, pensa. Entre a dor e o prazer, existe por um certo tempo n'esse mundo. Isso implica em ter menos gente presa ou morta pela coletividade quanto for possível. Do mesmo modo, menos exércitos espalhados pelo planeta garantindo antes o fluxo de matérias-primas que a pacificação de territórios às voltas com guerras fratricidas. O que deveria ser excepcional, infelizmente, tornou-se a regra. A democracia para os bons é uma questão de demografia. N'um mundo de "nós" e "eles", os muros são mais importantes que as pontes, pois, os capitais devem circular livremente; as pessoas, não. Eu e ele sabemos que isso é uma distopia apocalíptica, mas os bons não se incomodam em dividir o mundo novamente e usufruir d'ele em ilhas exclusivas, inacessíveis aos maus.
O sonho dos bons, em última análise, é um genocídio. A diferença é que acreditam ter as mãos limpas enquanto se afastam do caos que consideram o mundo sem eles e que os maus vão acabar se matando uns aos outros. De longe, nas terras altas e frias do Norte, hão-de olhar horrorizados para as zonas de guerra mundo afora e educarem seus filhos com o mantra "vocês têm sorte", mostrando a precariedade da vida no mundo que abandonaram aos maus, ainda que estes sejam crianças famélicas.

Ele está preso; eu, não. Mas o que não temos em comum com os bons que o prenderam é a ilusão de somos bons ou melhores que os outros. Apenas somos, com nossas ideias e esperanças. O dia que os bons partirem de vez para as Ilhas Afortunadas que o dinheiro d'eles emancipou do resto do mundo e deixarem para os que aceitam a Humanidade como imperfeita, esse CU DO MUNDO que eles desdenham será ainda o nosso país. Um país que não barra ninguém na fronteira e se alegra em ser o mais diverso e colorido possível. Um país onde ninguém liga para o que outro faz ou é. Onde há pobres, sim! Favelados, sim! Analfabetos, sim! Sem-tetos, sim! Difícil porque não é óbvio como a cor da pele ou a boca que se beija… A distinção entre bons e maus tem de ser superada sob pena de sermos todos maus segundo os critérios dos que se autoafirmaram bons.

E estes, eu e ele o sabemos, um dia vão partir de vez em busca da ordem e progresso que não enxergam por aqui em algum lugar bem mais ao Norte.

Betim -13 10 2019

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