O HOMEM DO SACO
Andava bem cedo cedo para o trabalho quando vi um homem a carregar algo. Ele passou por mim na avenida que margeia o rio da cidade em que vivo. Trazia consigo um saco de pano alvejado relativamente cheio. Parei a certa distancia e o vi saltar a mureta da avenida para, após, avançar até a margem gramada. Lá, deitou cuidadosamente sua carga e, após longos minutos olhando para aquela coisa, partiu. Contudo, quando estava já a alguns metros do saco, parou, vasculhou os bolsos e tirou algo como um botão de rosa vermelha. Ele a cheirou e, voltando lentamente em direção ao saco, repetiu a muda contemplação. Por fim, lançou a rosa sobre. Abalou d'ali calmamente e, após galgar o barranco beira-rio, chegou à avenida, onde o perdi de vista rumo ao centro da cidade.
O leitor há-de convir que, pelo modo atípico que procedera, não parecia que tal homem se desfizesse de lixo ou de coisas velhas. Ao contrário, dir-se-ia que um ritual venerável acabara de acontecer diante dos meus olhos, tal a gravidade que o homem se impunha nos mínimos gestos. Temi pelo pior...
Não que a aparência d'aquele homem inspirasse qualquer forma de sofrimento mental ou de tendências violentas. Era um tipo de meia idade vestido com certo apuro que, inusitadamente, carregava um saco de pano que, nem grande nem pequeno, pouco parecera lhe pesar às costas. Mas, o que poderia haver naquele saco para inspirar tamanha reverência?
Distraído da urgência em chegar ao trabalho, dei livre curso à minha imaginação. Fora uma cena tão bizarra que tenho certeza de que o leitor, tal como eu, deva se lembrar das histórias de quando criança acerca d'um personagem sem rosto que assombra filhos e, sobretudo, pais: O homem do saco. Crianças pequenas desaparecidas sem testemunhas, como que tragadas pelo chão. Ele, a entidade misteriosa, era o culpado quando culpado não havia, ao menos não um identificável. O saco, embora médio, podia ter um bebê já morto ou abandonado ali para morrer.
Qual o quê, isso não! Estávamos à luz do dia em uma avenida de certo movimento. O que eu havia visto decerto mais alguém vira, apesar de ainda não ter amanhecido de todo e da neblina rarefeita que tomava os baixios. Ademais, não percebi a menor sombra de medo ou receio na quase teatral despedida que o homem se impôs ao saco e seu conteúdo. Não teve pressa em se evadir do local e tampouco parecia temer a interrupção de quem quer que fosse em seu demorado contemplar do saco sobre a grama à beira do rio. Nada fez para se esconder e nada parecia ter a esconder.
Podia, sem embargo, ser alguma espécie de relíquia. Aquele homem deixara ali algo que era ou fora valioso para si. Cartas, fotos, documentos, lembranças?... Sim, havia de ser! Seu aspecto ensimesmado que então eu recordava me fez tomar outra opinião desse homem e seu saco. De facto, ele parecia se despedir de algo ou alguém ao se demorar. Tomado pela curiosidade, fiz menção de ir até a beira do rio, porém contive-me: Aquilo não era da minha conta! Não devia me envolver, fosse o que fosse, mesmo que lograsse fazer uma descoberta. De qualquer forma, logo algum transeunte deveria passar e ver o que havia no saco. Eu tentava pensar em outra coisa, mas simplesmente não conseguia! A imagem de alguém a passar, parar, abrir o saco e se rejubilar com o achado me perturbava profundamente. Afinal, era uma oportunidade.
Àquela altura minha imaginação não tinha mais freios... Já não eram papéis velhos de recordos infelizes que jaziam ali, pensava eu, eram jóias! Pois sim: Agora, com toda a certeza, eu compreendia a insólita cena... Agora sim percebia claramente o que vi... Agora podia dar fim a tais elucubrações vadias. Deveras, o homem do saco tinha o olhar perdido dos amorosos e a angústia dos que renunciam a grandes esperanças! Era um olhar de dor mal contida sob solene sobriedade. Haja o que houver naquela saco, tem a ver com seu olhar melancólico, concluí.
Quando me dei conta, já estava a caminho da beira do rio. Acto contínuo, atravesso a avenida, salto a mureta da guarda e ando sobre a grama sem tirar os olhos do saco que tanta imaginação me havia causado àquela manhã. Aproximo-me, lentamente. Paro. Miro o saco inerte sem que ainda nada em sua aparência denunciasse seu conteúdo. Relembro cada detalhe do antigo possuidor d'aquele saco na ânsia de encontrar algo que me preparasse para qualquer dissabor ao abri-lo... Todavia, nada me ocorreu. Tudo, -- o lugar, a hora, a postura do sujeito, a longa contemplação ao fim... -- tudo apenas indicava haver algo surpreendente dentro daquele saco a poucos metros de mim. Em tempo, estava sozinho e me asseverava constantemente de que não fora seguido ou observado. Súbito surge em mim um profundo sentimento de posse em relação àquele saco. Ele era meu! Eu o havia visto primeiro! Após vencer a minha própria desconfiança, estava ali pronto para usufruir das melancólicas lembranças de um amoroso abastado. Sim, devia haver jóias delicadas lá! Ex-votos d'Amor cuja presença ele não pôde suportar junto a si; presentes de dias felizes, mimos de passeios românticos... Enfim, caro leitor, um espólio de sentimentalidades!
Fui chegando perto do saco já quase triste por fatalmente sair do transe de que a imaginação me havia feito presa. Aquela emoção de profunda beatitude de ser o escolhido do Fado, fortuito descobridor de segredos! Paro diante do saco e identifico a rosa vermelha que o vi jogar. Agacho-me e a retiro sem maiores cuidados. Toco o pano e abro o saco. Observo. Está cheio de toda sorte de papeis rasgados, mas algo em seu interior parecia mais denso e pesado. As tiras de papel, para minha alegria, denunciavam profunda atividade emocional. Sim! Eram manuscritos, fotografias, bilhetes de teatro e cartões rasgados com violência por alguma alma passional... Era forçoso vasculhar o saco e achar o que tinha além de papel nele. Abro mais a boca, chacoalho. Tem algo ali! Enfio as duas mãos quase com violência e aperto a matéria oculta sob os papéis. Contudo, ela se desmanchou ao aperto... Não era um bebê morto ou qualquer violência absurda. Não era uma relíquia dourada... Era simplesmente um monte de merda! Instintivamente tirei as mãos do saco, mas era inútil, pois, a merda, presa à pele, impregnou minhas mãos. Quanto mais eu as agitava, mais fediam!
Olhei para o saco entristecido. Tudo fora um golpe, uma PILHEIRA! E, ainda que não se visse pessoa, eu podia ouvir uma gargalhada zombeteira dentro de mim... Fiquei aturdido. Não poderia sair dali naquele estado e tampouco havia com o que me limpasse. O rio, urbano, corria ao fundo de um canal inacessível.
* * *
Sem saber o que fazer, permaneci ali algumas horas, esperando que anoitecesse para que meu vexame fosse menor. Acho que de tão transtornado pelo engodo em que caíra eu sequer conseguia pensar com clareza. Meus olhos chispavam ódios e meus lábios maldiziam vinganças. Todavia, não tinha ninguém para culpar a não ser a mim mesmo, afinal, eu tomara a decisão de abrir o saco e vasculhá-lo! E esse pensamento apenas me entristecia mais...
Quer por curiosidade; quer por ambição, eu cai numa esparrela! Só me restava bradar contra o Fado por ter-me posto o homem e seu saco no caminho... E eu o fiz: Murmurei diatribes infindas contra os céus, contra o homem do saco, contra os amores do homem do saco, contra o próprio saco e, sobretudo, contra a merda no saco!
Penso ter passado um bom tempo assim, a praguejar contra tudo e todos, até que um menino se aproximou dali. Ele cuidava de cavalos de carroceiros que, enquanto não tinham carreto, levavam seus animais para pastar a grama da beira do rio. O menino se aproximou intrigado e me perguntou o que eu estava fazendo naquele lugar. Muito envergonhado, eu lhe contei a história do homem do saco que eu surpreendera horas atrás e de como ficara preso ali, ao que ele perguntou:
-- "Por que você não vai embora e deixa esse saco aí? -- e reparou melhor no pano alvejado -- "Você tem certeza de que só tem merda e papel nele?"
Eu olhei de novo para o saco e respondi:
-- "Eu estou com tanta raiva, que mesmo se houvesse ouro no meio da merda, eu preferiria jamais ter posto os olhos nesse saco!" -- em um desalento sincero -- "Não vale a pena se aproximar disso: Não tem nada de bom aí!"
O menino se aproximou do saco receoso. Sacudiu e olhou dentro. Torceu a cara ao sentir o fedor da merda remexida e deduziu, tal como eu, que não havia nada de bom ali. No entanto, ele insistiu:
-- "Vamos sair de perto disso!"
Ao que lhe contestei:
-- "Mas, e se outra pessoa passar e, pensando que tem algo no saco, ficar breado de merda também?" -- meu pesar era sincero... -- "Não quero que ninguém passe pelo o que passei. Além do mais, não posso ir embora pela avenida sujo assim!
-- "Uai! -- exclamou o outro -- "É melhor enterrar então." -- e concluiu: -- "O que não pode é ficar igual você está: Reclama que a merda fede, mas não sai de perto... Fica só lamentando com quem passa, ao invés de fazer algo de útil!". -- E foi-se embora.
* * *
O sol ainda estava alto. Fiquei olhando atônito para o menino que partia sem que eu tivesse como contrapor seu argumento. De facto, minha actitude era mesmo patética! Com as mãos sujas de merda e sem ter como lavá-las ou como andar pela rua, só me restava cavar o chão e enterrar o saco. Ademais, era uma maneira mais útil de passar o tempo enquanto o sol não começasse a declinar no céu.
Assim fiz, primeiro limpando uma clareira no gramado. As mãos, sujas de terra e de merda, fediam tremendamente... Começo a cavar o chão e, com muita dificuldade, abro um buraco raso. Despejo o conteúdo do saco no buraco que fiz e vejo o papel misturado com merda encher tudo. Agora, com o sol forte, o fedor era evidente. Não entendia como não pude percebe-lo mais cedo, antes de pôr as mãos no saco... Ou a certeza de achar algo me absorvera de todo; ou, com o tempo ainda frio, a merda não fedesse tanto. O facto é que agora, com o conteúdo todo ao ar livre, pude distinguir algo pequeno brilhando no meio daquilo. Talvez fosse um anel... Uma aliança... Ou talvez não fosse nada. Cheguei o rosto bem perto e era, de facto, um pontinho dourado a reluzir na massa escura fedorenta. Para saber o que era, só pondo a mão na merda de novo! O leitor deve se lembrar do que eu dissera ao menino -- "mesmo se houvesse ouro no meio da merda"... -- Olhei longamente o brilho faiscante no meio da merda. Teria de meter a mão de novo naquilo... Não o fiz: Deitei terra sobre merda, papeis e saco de pano e, com o monturo já alto, eu fui embora tendo a certeza de que era o melhor a ser feito.
Era um mal menor. Já havia perdido tempo e trabalho naquele dia. Aquela história de saco abandonado já me custara muito e eu sequer podia confiar no que vira, tamanha a minha raiva. Simplesmente, não queria mais saber. Apenas sair dali já me servia de consolo.
Mesmo assim, dia após dia, enquanto passar por aquela avenida a caminho do trabalho, eu olharei para um monturo que apenas eu sei reconhecer, matutando sobre o possível anel ali deixado. Sem esquecer, contudo, do dia inteiro que perdi às custas de um homem e seu saco.
Betim - 05 05 2016