sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

A CARTA

A CARTA

A carta que escrevi n'esse caderno
Aqui deixei por anos, escondida.
-- Muita coisa difícil de ser lida... --
Enfim, só de encontrá-la me consterno.

Amor, seja infinito; seja eterno,
Não deixou senão dor em minha vida:
A carta, desesperada e irrefletida,
Como se o coração em desgoverno!...

Desolados, a forma e o conteúdo
Nas mal traçadas linhas d'uma escrita
De garranchos nervosos sobretudo.

Página que m'ecoou uma hora aflita...
Em silêncio queda hoje ao criado-mudo,
E guardada de todos se acredita.

Betim - 23 02 2000

MANUSCRITO

MANUSCRITO

Guardada em letras finas no papel
A memória dos tempos pubescentes…
Havia nas palavras reluzentes
Centelhas de emoções em carrocel.

Era o silêncio explodindo em escarcéu
Pela escrita da mão aos meus repentes,
Enquanto m’explorava inconscientes,
Ao tornar literatura inferno e céu.

Com o passar dos anos as ideias
Ali contidas têm me provocado,
Qual sonho persistente irrealizado.

Pelo sim, pelo não, guardo às plateias
Insuspeitas do mundo aquele esboço
Dos versos que escrevi ainda moço.
 
Belo Horizonte - 05 05 2000

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

PRESSÁGIOS

PRESSÁGIOS

De nada valerá vigiar o abismo...
Na noite escura caio embora sábio!
Logo uma fria virgem me abre o lábio
Como se a morte um súbito egoísmo.

Apenas sei do horror do cataclismo,
Turvando-me o sentido ainda inábil.
E houvesse de antiquíssimo alfarrábio
O oráculo sinistro que ora cismo.

Nada me evitaria o azar previsto,
Ainda que soubesse a sua origem
Ou em mero cogitar saber que existo.

Mas... Essas soledades tanto afligem!
Visto que a amplidão que enfim conquisto,
É sempre estar a um passo da vertigem...

Caeté – 15 07 2000

CABEÇA-DE-PONTE

CABEÇA-DE-PONTE

Por que esperar que o amor nos salve a vida,
Se, enquanto ciclo, apenas se repete?
Assim, desde qu’eu tinha dezessete,
Um novo vão de guerra e paz valida.

Outra vez, qual vanguarda destemida,
Desejo que o vazio mse complete.
Embora não entregue o que promete,
Trocando de senhor, nunca de lida…

Avança por meu peito tão inglório,
Palmo a palmo, ganhando território,
Até que o corpo inteiro me conquiste.

E enfim, a perpetuar a minha sina,
Inelutavelmente me domina,
Como se fosse tudo quanto existe…!

Betim — 27 02 2020

SALVE-RAINHA

SALVE-RAINHA

O primeiro mistério contemplado
É a vida que nasce pelo ventre...
Desde o inicio ao fim, o que está entre
É que de facto importa enquanto Fado.

Qualquer outro mistério está errado,
Visto que n'um Criador distante centre.
Meus lábios vos saúdam, oh Mãe, mentre
Em vós todas as mães têm o sagrado.

Só a maternidade -- nada mais! --
Merece dos mundanos os seus ais
Tanto quanto aos devotos os améns...

Ave, Maria: Mãe de tudo e todos.
Bem haja em vós o amor de tantos modos,
De crentes e descrentes... Parabéns!

Betim - 25 20 2020

LINHAGENS

LINHAGENS

Que imenso passado hei-de me inventar?
Que títulos, grandezas e heroísmos
Devo de casamentos e baptismos
Da poeira dos códices resgatar...?

Que novos ramos à árvore milenar
Fazer brotar de velhos feudalismos...?
De que ruinosas torres face a abismos
Todo o caos do Universo contemplar...?

Quantos antepassados memoráveis
Haverei-de elencar por condestáveis
À frente de milícias aguerridas...?

Ou senão, como grãs-autoridades
A serviço de reis e potestades
Deixaram pela História suas vidas!...?

Betim - 26 02 2020

sábado, 22 de fevereiro de 2020

GRANDES OBVIEDADES

GRANDES OBVIEDADES

Ele fala de coisas muito ditas
Com ar de sumidade inaccessível...
Responsabilidades de outro nível,
O ocupam com olímpicas desditas.

Nosso herói tem ideias esquisitas
Acerca da miséria ser punível,
Visto que a Ordem apenas lhe é possível
Enquanto as leis com sangue são escritas.

Como qualquer tirano, todavia,
Insta que a sua errática utopia
Seja aceita sem mais contrariedades.

Em sendo-lhe arbitrário o verdadeiro
Discusa sobre o nada o tempo inteiro,
Se limitando a grandes obviedades.

Betim - 22 02 2020



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

BAFORADAS

BAFORADAS

Quando passei por ele, eram fumaças...
Sim, fumava e falava sem parar.
Ora deixando ideias soltas no ar;
Ora profetizando pelas praças.

Às vezes, de antever certas desgraças,
-- Com causa-e-efeito lógica a explicar--
Lembrava a chaminé d'algum lugar
Vomitando seríssimas ameaças:

-- "Menino, passe ao largo dos romances!"
-- E de forma sisuda, quase brava --
"O tempo não espera até que avances..."

Com tal ortodoxia s'expressava,
Que embora a se irritar com minhas nuances,
Em seus lábios a História esfumaçava.

Betim - 20 02 2020

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O LUGAR DOS RATOS

O LUGAR DOS RATOS

Sempre haverá quem veja a realidade
N’aquilo que convém ao seu talante.
Ou crê que, apequenando, se agigante,
A despeito de ser ou não verdade…

Se s’esgueira aos esgotos da cidade
A roer reputações feito barbante,
Logo esmaga o inimigo vacilante
Ao largo de qualquer honestidade.

Nas sombras, rastejando sobre o lodo…
Projectava nos outros seus delitos,
Medindo por si mesmo o mundo todo.

Escória!… Seu lugar é nos detritos!
Onde com toda forma vã de engodo
Logra prevalecer entre conflitos.

Belo Horizonte — 19 02 2020

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

PESOS DE PAPEL

PESOS DE PAPEL

Antes que voem páginas avulsas,
Empilhadas por toda a escrivaninha,
Pôr pesos sobre as folhas me convinha
À espera de lufadas mais convulsas.

Granjeando tanto aplausos que repulsas,
Minhas rimas contêm em cada linha
'Inda a bossa do bronze que as mantinha
Presas às emoções n'elas expulsas...

Por mais leve do que o ar, minha poesia
Ainda manuscrita busca o espaço,
Como fosse dar asas a meu traço.

Com efeito, em tamanha fantasia
Busca querer fugir ao conhecido
E ir direto da Escrita para o Olvido.

Betim - 17 02 2020

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

UM PÉ D'ÁGUA

UM PÉ D'ÁGUA

Invernou… Chove na roça.
Melhor tomar uma pinga
Quando a quarta s'endominga
E o dia anoitece em poça
De goteira que respinga!…
Mais do que pobre na chuva
Clamo contra os elementos
Pelos terríveis momentos,
Sem capa, galocha e luva,
Enfrentando os quatro ventos.

Trotava n’uma égua baia
De marcha um tanto ligeira
Mesmo n’aquela lameira:
Vinha n’um caia-não-caia;
N’um sobe-e-desce ladeira…
Enquanto a tarde baixava,
Eu e a égua à beira-rio
Fomos tinindo de frio,
Pois tanto sob chuva brava
Quanto sob vento bravio.

Longe avisto a propriedade
De gente rica e importante.
O dono andava distante
N'alguma distante cidade…
Sem família pela herdade,
Ninguém me vê no aguaceiro.
E eu… Vejo selas de couro,
Mais duas esporas de ouro
Junto à tulha do caseiro
Penduradas qual agouro…

Chego encharcado à varanda
E a estranhos peço pousada.
Ciosos de tão má jornada,
Tão-logo  a chuva se abranda,
Me levam a outra morada
Onde abrigado eu pernoite…
A chuva não dava trégua
Até que, légua após légua,
N'um rancho no antro da noite
Enfim amarrei minha égua.

Despeço-me do caseiro
Que por guia me trouxera
Àquela extrema tapera
Pr'os lados d'algum pesqueiro
Onde a escuridão impera…
Logo ajeito meus trastes
E me deito cerca ao fogo.
N'uns goles de cana afogo
Da solidão os contrastes
Do azar no amor e no jogo.

Depois de cear solitário
-- Mandioca e linguiça fritas--
Recordei minhas desditas
N'esse Fado obscuro e vário
Prenhe em passagens aflitas…
Lá fora, a chuva constante
Amaina e volve em pancadas.
E o mundo tão mais distante
Quando escutei as passadas
D'alguém pela noite errante:

-- "Ôoo de casa!"-- disse o estranho
-- "Ôoo de fora!" -- respondi
Foi se aprochegando ali
E na caneca d'estanho
Logo da pinga servi.
Ele não fez cerimônia:
Bebeu e comeu à farta,
Falou sem mais parcimônia
E, diante de minha insônia,
Mostrou-me enfim uma carta…

"A quem interessar possa,
O portador da missiva
Serviu comigo na activa
Das armas da força nossa…"
Sentados n'aquela choça
Nos fins dos confins do mundo
Passávamos por senhores,
Imersos em bons lavores,
Mesmo que dois vagabundos,
Pedindo alhures favores…

O outro, coletor de raízes,
Andava na mata virgem,
Ostentando nobre origem,
Sobre fundas cicatrizes
E farrapos de lentigem…
Costumado àquele rancho,
Se abrigava da invernada
Até volver para a estrada,
Tomando-se caminho ancho
Que desse em feira afamada.

Era chuva que Deus dava
Alta noite, às bategadas…
Das canecas emborcadas
'Pós que a língua tilintava
Nas bocas emborrachadas.
Meu visitante animado,
Contava causo após causo,
Quando, do nada, lhe pauso
E lh'envido, desafiado,
Uma prova de arrojo e auso:

-- "D'aqui à vila são horas
Debaixo de chuva e vento.
Na borda do mato, intento
Correr trilhas em desoras
E trazer da tulha esporas
Da fazenda dos maganos
Que me deram por retiro
Esta cova de vampiro…
Este abrigo de mundanos…
Onde revolto suspiro."

Foi dito e feito: Peguei
Meu poncho 'inda molhado
E saí a pé pelo eirado
Até que à estrada voltei
De novo todo encharcado.
Andando feito  infeliz
Curvado em chuva pesada
Sem ver na névoa cerrada
Mais que um palmo do nariz
Seguia por rumo a estrada.

Mas os céus, indiferentes,
Por sobre justos e injustos,
Se derramava entre sustos
A meus passos delinquentes…
Mais açoitando os arbustos
E as palmeiras recurvadas,
Em saraiva ora o aguaceiro
Enlameia o trecho inteiro,
Engrossando as enxurradas
Enquanto andava ligeiro.

No baixio, feito enchente
Passava acima da ponte
Um corguinho cuja fonte
Lacrimava tão-somente,
Agora, aqui bem defronte,
Em rio de correnteza
Se via afinal mudado…
Ao muro da ponte atado
Fui, sem susto nem reza,
Atravessar ao outro lado.

Logo eu topei a fazenda
Onde pedira licença.
A minha raiva era imensa!…
O meu rancor era lenda!…
Passei detrás da despensa
Sem ouvir cachorro ou gente
E na tulha penduradas
Vi as esporas douradas,
Que cobicei plenamente
Há poucas horas passadas.

Peguei com algum esforço
Sem ver nem ouvir viv'alma.
Decerto, com muita calma
(Porém sem nenhum remorso),
Pela alameda de palma
Chego à porteira em paz.
E volto por rumo ao rio
Que enchera todo o baixio.
Deixando as águas atrás,
Passo a ponte por um fio!…

Já amanhecia quando
Avistei o rancho de pesca
A brisa até correu fresca
Face ao sítio miserando
N'aquela grota grotesca.
O sol nascia no outeiro
E a chuva enfim dava trégua!
Contudo, meu companheiro
Foi sem deixar paradeiro
E nem rastro de minha égua…

Entrei no rancho aturdido
Sem saber o que fazer:
Aonde foi s'esconder
Não podia ser seguido…
Só na mesa pôde ver,
A carta mostrada então!…
Pegando o papel, aflito,
Havia no verso escrito:
"Ladrão que rouba ladrão…

Betim - 14 02 2020

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

MEANDROS

MEANDROS

Quão caprichoso o rio em fazer curvas,
N'um ir-e-vir sinuoso para frente…
Parece contemplar-se tão-somente
Pelo suave bailar das águas turvas.

E afasta as ingazeiras já recurvas
Às duas margens onde, frente a frente,
Se assistem no existir indiferente,
Ao sabor das seguidas contracurvas.

Abaixo, n'um longo arco espraiado
Deixa passar a vau de lado a lado
Quem necessita o rio atravessar.

E, como s'entretendo co'o caminho,
Dá voltas entre as serras, de mansinho,
Sem pressa de chegar a qualquer mar.

Betim - 13 02 2020

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

NEM MAIS NEM MENOS

NEM MAIS NEM MENOS

O que sei é o que sou.
Não, eu nunca me limito:
Raio em fuga ao infinito;
Trovão que na noite ecoou...
Mais audaz do que bonito!

O que sou é o que sei.
Sim, aprendi a aprender
E escrever para me ler.
Se nem súbdito nem rei,
O melhor que posso ser.

Betim - 12 02 2020

A TEMPO

A TEMPO

Antes que seja tarde, eu quero ser
Aquele que escrevera sobre tudo.
Meus anos em carreira sei, contudo,
Visto à espera do câncer se viver:

Eu sinto a morte à espreita sem saber
Quando me ferirá seu olho agudo...
E é no afã de enganá-la que me iludo,
Tendo os dias e as noites a escrever.

É sabido, porém, que o Esquecimento
Nos devora do existir cada momento
Até que nada reste de quem fomos.

E embora bem escritas estas rimas,
Serão logo apagadas, sem estimas,
P'la traça que corrói todos os tomos!

Betim - 11 02 2020

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

AVATARES PESSOANOS

AVATARES PESSOANOS

Já sou um homem de meia idade. Estou acima do peso ideal, sou hipertenso e diabético, terrivelmente sedentário e céptico. Olho para o entusiasmo alheio com o pouco caso de quem sabe que aquilo não vai dar em nada e, mesmo se der em algo, não fará diferença alguma. Trabalho o máximo que posso, acumulo empregos e passo ao largo de vícios, mas não posso deixar de me assistir como um hipócrita que cumpre regras sem acreditar n'elas.

Penso ter chegado àquela altura da vida em que se pode dizer sem culpa: --"Tout s'arrange! Tout va s'arranger…" -- e sorrir cinicamente para o desesperado que desaba em seus braços. Sim, no fim vai dar tudo certo. Se não der, diz a filosofia de botequim, é porque ainda não é o fim. N'isso, eu concordo em gênero, número e grau: Qualquer tentativa de estabelecer o final d'uma história é arbitrário e explicita a escolha de quem manda. O final feliz é sempre um marco precário no qual a felicidade é congelada no tempo e no espaço à maneira de fotografia. Pode até ser verdade, mas é um instantâneo!…

Este estado de coisas me traz ao presente momento em que escrevo estas linhas. Eu pretendo aqui, nada mais nada menos, do que abusar da paciência do leitor lhe propondo um paralelo entre a heteronímia e ortonímia de Fernando Pessoa e o modernoso conceito de avatares disseminado pela tecnologia da informação e pela indústria de jogos electrônicos. Eu me dei ao trabalho de procurar saber como surgiu essa história d'um sujeito incorporar outra forma física com os atributos que melhor lhe parecerem no momento, assumindo outra e ainda outra quando lhe for conveniente. Parece que "avatar" vem do sânscrito e expressa o fenômeno religioso da adopção da forma humana por parte d'uma divindade. Isso me lembrou o VERBO CARO FACTUM EST ET HABITAVIT IN NOBIS, do Evangelho segundo João… Em todo o caso, foi uma forma encontrada pelo Hinduísmo para explicar como humanos e divinos poderiam interagir tendo estes naturezas e condições tão distintas. Isso explica, por exemplo, como Zeus poderia ter forma humana n'uma narrativa; de chuva de ouro, em outra; de águia… E isto tinha lá sua virtude, pois, deixava as pessoas de sobreaviso com a ideia de que até o mendigo que surge de repente n'uma encruzilhada poeirenta possa ser um deus disfarçado. É preciso fazer o bem sempre, afinal, nunca se sabe…

Etimologias à parte, avatares são feições escolhidas por alguém para se usar como perfil (ou perfis paralelos…)em jogos, redes sociais e grupos de discussão. Têm a grande virtude de proteger a identidade ortônima no mundo cão da web, mas também permite dar ao sujeito características ou histórias pessoais inverídicas. Revestido sob a aparência do avatar, nosso herói pode assumir no mundo virtual toda uma vida que podia ter sido. Ou senão, inventar pessoas que, ao interagir com outras pessoas, permitam-se experienciar com segurança situações extremas ou simplesmente inusitadas. No mundo maravilhoso dos avatares, um sujeito desleixado como eu pode ser uma mulher belíssima sofisticada, um rapaz canalha hedonista, uma travesti extravagante, uma criança confusa, um idoso depressivo e filosófico… Posso, enfim, parecer ser alguém que não sou e, d'este modo, ser de facto.

Montar avatares para ser sem ser é uma estratégia que tenho percebido em alguns de meus pares escritores. Em muitos ambientes virtuais onde tento me fazer presente com publicações, -- sempre ortônimas, advirto -- eu encontro pessoas que escrevem como se tivessem vidas diferentes das que fazem supor que tem. Desde já eu deixo claro: Não julgo! Eu também sempre percebi esses outros-eus em mim e em minha escrita. Todavia, jamais quis lhes dar uma identidade desenvolvida tal como Pessoa fez com os seus. Penso que ele, porém, o fez n'uma perspectiva estritamente literária. É muito interessante criar uma personagem e lhe dar um estilo de poesia absolutamente diverso d'aquele que o autor construiu para si com vias a poder escrever coisas que jamais escreveria ou que causariam tamanho desnorteamento em seus leitores que lhe suscitaria mais questões que a obra em si.

N'esse ponto, Pessoa foi genial. Quantos de nós, escritores, não nos sentimos presos ao estilo com que somos celebrados? Pessoa cria Caieiro e pode, assim, escrever como um naïf, isto é, despojado de sua erudição pacientemente adquirida para se reinventar na busca do poético em senso estrito, isto é, sem quaisquer efeitos musicais (métrica, ritmo e rima) ou gráficos (variedade de tipos de letras, pontuação, ortografia estilística…).
Isto é d'uma liberdade absurda, renovando continuamente o prazer da escrita. Antípoda a Alberto Caieiro, inventa Ricardo Reis, o helênico. Com Reis, pode se experienciar um poeta totalmente diverso -- sem rimas, mas perfeitamente ritmado, logo, mais erudito ainda -- onde a sofisticação lírica se percebe fria e perfeccionista no espírito apolíneo d'um poeta brasileiro cosmopolita que o lusitano Pessoa jamais se quis (desnecessário dizer que Reis é meu favorito…). Entrementes, todo o pessimismo de Pessoa deságua no prosaico Bernardo Soares. Como deve ser bom poder ser depressivo à exaustão e realista ao pormenor sem maiores consequências! Como deve ser fantástico envidar a vida até o limite da loucura e, no entanto, permanecer são e sociável na mesa do bar…

Heterônimos são, antes de tudo, estratégias de produção literária. É diferente de Transtorno Dissociativo de Identidade ou qualquer sistema de personalidade múltipla descrito cientificamente. Não, heteronímia é um modo de fazer arte, isto é, é um fenômeno que objetiva a produção de obras de arte pela alteridade do sujeito. A construção de personas criativas permite ultrapassar os limites definidos pelo estilo artístico ao mesmo tempo que permite ao artista ampliar seu público ampliando possibilidades de gosto:--"Não gostas de sonetos?! Podes ler quem em mim não os escreve! Gostas de experimentais, temos também!" -- Pessoa não era um psicótico por se outrar, sim um artista que incorpora personalidades diversas para criar obras que seriam consideradas estranhas pelo público de seu ortônimo. Multiplicidade de personalidades pode ser algo fascinante em si, mas é produto de sofrimento psíquico, não uma escolha consciente de experimentar ser outro como rapazinho que cria um perfil de mulher atraente para bisbilhotar salas de bate-papo de lésbicas…

Sem embargo, Pessoa criou o atormentado Álvaro de Campos e, por meio d'ele, pode sentir-se vanguardista da modernidade d'um modo que seu desejo de pertencer à tradição poética portuguesa jamais o permitiria. O autor de A TABACARIA, é um neurótico muito parecido conosco cá do Terceiro Milênio. Tal-qual ele, temos fumaças de grandezas irrealizáveis e sofremos com nosso lugar medíocre n'um mundo de imensas possibilidades onde o sucesso alheio nos é jogado às fuças a cada segundo. Tal-qual ele, nós nos odiamos por não fazermos coisas extraordinárias de nossas vidas tediosas enquanto nos consolamos com coisas tão duvidosas quanto Literatura ou Poesia. Tal-qual ele, nós procuramos um vício que nos mate aos poucos para desaparecermos d'este mundo sem ter nem causar sofrimento. De todas as pessoas de Pessoa, inclusive ele próprio, Álvaro é o nosso herói por, tal-qual nós, não passar d'um grandessíssimo fracassado.

Sem a pretensão de heteronímias, convido o leitor a brincar de ser outro criando-se avatares pela web afora. Afinal, o que senão o tédio justifica essa mania de jamais estar contente com o que se é e o que se tem? Ou, como diria Pessoa (ele mesmo): "Ser descontente é ser homem!". Perceber que um dos aspectos da condição humana é desejar algo que jamais se alcança -- chame-se isso Felicidade, Contentamento ou Satisfação, não importa… -- faz de humanos seres desejosos por natureza. Terapeuticamente, revestir-me de outros me faz entender que minha infelicidade medíocre é tão humana que não deveria me fazer sofrer. Posso estar insatisfeito, mas experienciar o desejo dos outros percebo que também eles são insatisfeitos. No final das contas, que sorte a nossa lermos Fernando Pessoa, não?

Belo Horizonte - 11 02 2020

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

MESMERIZADO

MESMERIZADO

MOTE:
 - Eu t'esconjuro, cão! Passe por longe!
Alma penada a andar por sob a lua!…¹

GLOSA:
Às vezes eu me pego a vagar a esmo;
E sei qu'eu mesmo não sou mais o mesmo:
Pareço mesmerizado; hipnotizado,
Embora, ao mesmo tempo, conectado.
Cerebral, eu de mim comigo mesmo?
Mas o passe mesmérico 'inda actua
E ouço, andando sem rumo pela rua,
Qual andarilho em hábito de monge:
 - "Eu t'esconjuro, cão! Passe por longe!
Alma penada a andar por sob a lua!…"

Belo Horizonte - 10 02 2020

domingo, 9 de fevereiro de 2020

MAIS E MELHOR

MAIS E MELHOR

O que é a vida senão a soma aos dias 
Entre os quais este ou aquele, comumente, 
Aparece a outros olhos frente a frente?... 
Se deixa só pegadas pelas vias,  
-- Mais e melhor se viva de alegrias...  

Não basta se sonhar com utopias 
Ou ter os olhos fitos no presente: 
Morrer é não estar... Deverasmente, 
Há muitos que inexistem por quantias!  
-- Mais e melhor se viva de alegrias...  

Pois, se vive mais quem tem mais valias, 
Viver melhor é algo diferente: 
Há quem trate cachorro como gente, 
E gente igual cachorro de agonias... 
-- Mais e melhor se viva de alegrias...  

Antes que as horas sejam já tardias 
Ou desapareçamos de repente, 
Busca quanto te deixa mais contente 
Para que, com felizes harmonias, 
-- Mais e melhor se viva de alegrias!  

Betim - 09 02 2020 

sábado, 8 de fevereiro de 2020

MINUETO

MINUETO (rondel)

Sejamos nós dois um casal 
Com gestos lentos e elegantes, 
Bailando horas em espiral... 
Felizes como éramos antes!  

Como se fôssemos amantes, 
Beijemo-nos, sós, afinal... 
Com gestos lentos e elegantes, 
Sejamos nós dois um casal.  

Como se fôssemos um real 
Enleio por alguns instantes, 
Beijemo-nos, sós, ao final... 
Com gestos lentos e elegantes, 
Sejamos nós dois um casal! 

Betim - 08 02 2020  

O CHÃO DO POEMA

O CHÃO DO POEMA

A despeito da escrita descuidada
E da rudeza típica de incultos,
Cultivo a Poesia em meio a insultos,
Refinando-me a pena enamorada.

Embora eu saiba muito pouco ou nada,
Escrevo de meus dias seus tumultos,
Mas sem perder de vista os grandes vultos,
Que souberam poetar sua jornada.

Por terreno baldio, o coração
Recebe de meus versos, grão por grão,
Uma lavoura incerta e extemporânea.

Em todo o caso, possa ela abundar
Para o coração do outro alimentar
Enfim de fantasia momentânea.

Betim- 08 02 2020

TRISTES BRASIS

TRISTES BRASIS

Nos idos de fevereiro de dois mil e vinte a sociedade brasileira assiste o momento mais reaccionário de sua História. A chegada ao poder de estamentos que se autointitulavam "independentes e apolíticos" consolidou um sentimento ressentido de pessoas que sempre trafegaram pelas sombras da Inteligência, da Academia, das Artes, das Ciências e, sobretudo, da Política em nosso país. Eram personalidades caricatas, exóticas, verborrágicas, neurastênicas, apopléticas, folclóricas, violentas, odientas, odiosas e odiadoras... Da maioria -- sou forçado a admitir -- jamais lhes tinha ouvido falar dos nomes antes de assumirem os postos que agora ocupam. São homens e mulheres que relativizavam os avanços brasileiros Pós-Democratização e se especializaram em falar para plateias nostálgicas d'um passado idealizado de Ordem e Progresso, isto é, do tempo em que o Brasil era o país do futuro. O paradoxo da coisa é a promessa não cumprida pelos governos militares de arrumar o Brasil para que a prosperidade se estabelecesse em nossa sociedade. Ao desejar esse passado no presente, a maioria dos votantes no sufrágio de 2018 cometeu a temeridade de eleger democraticamente um antidemocrático histórico e suas turmas. N'esse estado de coisas, cada rincão do país vê surgir personagens ou grupos locais interessados em radicalizar as imbecilidades diárias que a Presidência da República nos oferece por método de escamoteamento de suas crises estruturais.

O que se observa é a vitória de sub-reptícios gerar uma república de rancorosos. A princípio, a metralhadora de meias verdades e belas mentiras d'estes senhores se voltou contra os vencidos. Sim, a oposição em geral e a esquerda em particular sofreram campanhas sistêmicas de desmoralização. Valia de tudo: Notícias falsas, lacração autoindulgente, revisionismo histórico, desumanização do oponente, perseguição de adversários e a propalada guerra de narrativas ou de informação. Todavia, em face das seguidas caneladas governamentais e dos pífios resultados da retomada econômica, o método de ocupar a opinião pública com questões secundárias -- por via de regra, relacionadas ao conservadorismo nos costumes -- outros inimigos do povo de bem passaram a ser elencados pela máquina de ódio da presidência. Assim, indígenas, LGBTs, ambientalistas, feministas, artistas, afro-descendentes, jornalistas e veículos de imprensa -- ainda que pautassem suas reivindicações fora do sistema politico-partidário -- passaram a ser continuamente atacados por um presidente que gosta de falar demais... Uma agressividade que beira o gratuito e flerta diariamente com o trágico.

Embora todo o sistema político brasileiro convivesse com práticas corruptas há décadas, houve um grande esforço para convencer a população de que o campo político-partidário à esquerda deveria ser justiçado pelos homens de bem reunidos em torno do triunvirato Bolsonaro-Moro-Guedes. Deveras, a política de extrema-direita aliada ao bom-mocismo legalista e ao neoliberalismo radical teve por missão ao longo d'esse longo primeiro ano de governo pôr os políticos remanescentes no devido lugar  -- ou seja, submissos e intimidados por um Judiciário que sabe o que eles fizeram no passado. Seria com dossiês e processos que o Congresso se curvaria à liderança do Presidente para permitir que o Capital Financeiro reabilitasse a economia nacional e, d'estarte, reordenasse a sociedade sob uma meritocracia de resultados. A cereja do bolo d'esse cenário idílico seria a fé dos crentes de que Deus havia voltado a ser o Senhor da Nação Brasileira e que, portanto, a felicidade havia voltado à banda oriental da América do Sul.

Há, não obstante, uma tristeza omnipresente. Para decepção dos sensatos que embarcaram na canoa furada do antipetismo que elevou Bolsonaro ao papel de Salvador da Pátria, a Economia se recupera muito devagar em função dos resultados modestos da ampliação do consumo e da diminuição do desemprego. Para não falar do que precisa-mas-não-consegue, o Governo inventa crises semanais e nos distrai com o lugar-comum terra a terra de suas inusitadas políticas públicas de inspiração neopentecostal quando não neonazista. Os discursos parecem uma biruta de aeroporto, afirmando e negando à medida que as redes sociais reagem com mais ou menos simpatia ao que se expressa. É um presidente que não se vexa em dizer e desdizer quase tudo sobre o que tem a infelicidade de se declarar.

N'esse estado confuso de coisas onde rancor e inveja alimentam a falta de vergonha alheia pela própria ignorância, incultura e desinteligência, chegamos ao real motivo d'esse texto, a saber, a publicação d'um memorando da Secretaria de Educação do Estado de Rondônia que orienta o recolhimento de livros paradidáticos nas escolas públicas d'esse estado amazônico sob o pretexto de que eram inadequados à formação de crianças e adolescentes por conterem palavrões ou narração de actos indecorosos. A coisa, que já seria escandalosa em si pela desfaçatez de desestimular a leitura de livros já disponibilizados (logo, comprados e pagos pelo Poder Público), torna-se insustentável quando elenca as obras que entende de retirar das prateleiras escolares rondonienses: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Os Sertões, Macunaíma... Não! Não é mentira: Alguém que se diz técnico em educação decidiu praticar censura contra autores consagrados cujas obras constituem o florilégio imorredouro de nossa Literatura!...

Não se trata d'um caso isolado de incompreensão. Convém lembrar de que há menos de uma ano a Bienal do Livro do Rio ofereceu ao país o espetáculo da censura sob o argumento de se promover a proteção ao menor. A questão acabou denunciando preconceito cristão de relacionar homossexualidade com imoralidade. Proteger adolescentes da exposição a relacionamentos homossexuais demonstra que na perspectiva dos religiosos que governam a cidade do Rio de Janeiro a ilustração d'um beijo entre homens é necessariamente pornografia, não Literatura. Entre o recolhimento e cobrimento da capa da publicação, assistiu-se uma guerra judicial onde a liberdade de expressão mostrou-se mais uma vez ameaçada pelo fundamentalismo religioso e sua tentação de controlar corações e mentes.

Que mais dizer? Isso nos empobrece como povo de uma maneira inaudita. Cansado de odiar minorias em geral, um governo estadual alinhado com o bolsonarismo decide levar sua boçalidade ao ensino de Literatura. Difícil não ver senão rancor em tal disposição. Sim, os invejosos reaccionários se levantam contra as artes literárias com a prepotência de medir com sua régua moralizadora patética autores que não foram capazes de entender. Não lhes basta pretender criminalizar os livros de Marx ou distribuir Bíblias aos quatro cantos, faz-se necessário limitar o accesso à leitura de toda uma geração. Tratam romances, livros de contos e de poesia com o mesmo critério que imaginam adequado a obras audiovisuais -- isto é, a restrição etária -- quando na verdade objetivam tolher o senso crítico e, sobretudo, a capacidade de raciocínio e imaginação que o texto escrito preconiza. A ideologização olavista e o revisionismo histórico d'ele consequente parecem tramar uma espécie de revolução cultural que não apenas deseja controlar a presente produção literária e cultural do Brasil actual, mas também mudar o que se considera importante enquanto Literatura Brasileira.

No que depender das autoridades, há-de restar para nossa juventude apenas a Bíblia, livros piedosos decalcados da Bíblia e manuais de armas de fogo. De facto, para que ler Franz Kafka ou Edgar Alan Poe n'esses tristes brasis de nossos dias?

Betim - 07 02 2020