segunda-feira, 4 de julho de 2022

TU, O REI

TU, O REI


E se fosses o rei, e se tu fosses

Aquele que, aclamado, nos governa,

A mentir para o povo frases doces...


Aquele que virtudes só externa

Digno d'excelentíssimos louvores

Sob a Sabedoria Sempiterna.


Se fosses o maior entre os maiores,

Aquele que d'heróis fora nascido

Herdeiro d'esperanças e temores!


Aquele que dos deuses o Escolhido

Para mostrar por nós predileção,

E em ti teu povo d'outros distinguido.


Se fosses tu o Chefe da Nação,

Com que decretos-leis ordenarias

Dos grandes e pequenos a visão?


Com que exércitos tu comandarias

O anseio contra inválidas cobiças, 

Estendendo ao redor hegemonias?


Com que armas às massas insubmissas

Haverias-de impor tua vontade

Ao condenar dos maus as injustiças?


Com que realizações prosperidade

Todo o reino contigo gozaria

Reunido sob a tua autoridade?


Com que fausto, opulência e fidalguia

A corte dos notáveis mais brilhantes

Sempre em tua saúde brindaria?


Se fosses tão amado que os errantes,

Ousando questionar-te a liderança,

Quedassem reduzidos a inflamantes...


Se, ao merecer de todos a confiança,

Honrasses mais o cargo com conquistas,

E não, antes de morto, uma lembrança...


Se, cercado de célebres artistas,

D'uma época dourada pela glória

Deixasses boquiabertos teus cronistas!


Talvez tanta grandeza meritória

Fizesse que, embriagados de sucesso.

Elevassem teu nome para a História.


Talvez, atravessando sem tropeço

A estrada do Poder, possam julgar-te

Seres um vencedor desde o começo.


E que ao sobrelevar teu estandarte,

Mesmo os senhores bélicos mais pálidos

Proclamem teu valor por toda a parte!


Mesmo estes, que das guerras vêm inválidos,

Deixando a juventude nas batalhas,

Se aprumem respeitosos mesmo esquálidos...


Levantam-se a aplaudir as tuas falhas

E urrem a tua alcunha como lema!

Mesmos os já revestidos de mortalhas


Façam te recordar o forte emblema,

Quando em face dos teus vãos inimigos

Lhes leve todo o horror em hora extrema.


Mesmo tantos vivendo sem abrigos

Acuados pela fome e pela peste

Evocassem-te o nome nos perigos.


Mesmo aqueles que alhures expuseste

E esmagaste sem ver em tua alteza

Somente a te mostrares inconteste.


Mesmo os demais reis da redondeza

Respeitosos, ouvissem-te o clamor,

Qual fosses de teu reino fortaleza.


Todos, sem exceção, em teu favor

Te fizessem maior em cada grei

E por eles eleito imperador!  


Ou se em verdade fosses pobre rei

D'um enclave onde, déspota absoluto,

Tão-só tua vontade fosse lei!


Vassalo de vassalos, diminuto

Castelão cujo feudo teus senhores 

T'esquecessem até o contributo...


Se tu fosses dos reis um dos menores...

Que sequer como rei reconhecido

Fosses por quem exploras sem pudores.


Se não mais que um tirano esclarecido,

Que entre cegos tem olhos de ver

Apenas p'ra tomar do desvalido...


Se não mais que um escravo do poder

Que aos seus mais importuna do que manda

E nem respeito faz por merecer...


Se não mais que outra alteza veneranda

Empenhada em furtar do reino a si

Qual fosse um ladrãozinho de quitanda...


Se não mais do que servos para ti

Fosse este povo doente e gemebundo

Que em vilas de teu reino conheci...


Se, afinal, o pior rei de todo o mundo

Fosses tu ao ignorar os teus deveres,

E ao legar um país árido e infecundo...


Se, bem ou mal, com máximos poderes

Quem súbito um tirano se descobre

Sempre soube guardar-se mais haveres...


Grande ou pequeno rei; mais nobre ou pobre,

Com certeza em defesa me dirias

Que pouco fazes porque pouco o cobre...


Mas se fosses tal rei, nem me darias

A chance de ditar contestações

Ou reclamar de ti patifarias...


Decerto m'enviarias aos porões

Depois que me cortando a longa língua

E declarar-me um vil entre os vilões.


Ali, com outros mais postos à míngua,

Torturas de deixar em carne viva:

Vermelhidão, inchaço, ardor e íngua...


Mas se fosses tal rei, sequer a oitiva 

De meus males por conta de teus bens

Permitirias senão em negativa.


Um rei sem tempo para tais poréns,

Tampouco impressionado com coitados

Às voltas com biscates e vinténs...


Um rei sem mente para os olvidados

Tampouco para os mais despossuídos

Que vivem pelo reino despojados...


Mas se fosses tal rei, entre desguidos,

Tu não te negarias privilégios,

Ainda quando às custas de oprimidos.


Um rei indiferente a modos régios, 

Grasnando sem decoro e sem decência

Contra cortes, senados e colégios...


Um rei indiferente à complacência,

Entregue a um hedonismo pleno e cru,

A buscar-se senão concupiscência...


E se fosses o rei; se fosses tu

A palavra de vida e até de morte,

Onde todo o desejo esteja nu.


E se fosses aquele que é mais forte;

O que manda e desmanda sobre todos

Apenas por que o gozo lhe conforte. 


Talvez serias quem de tantos modos

Seduziu, aliciou, comprou, vendeu...

Com tão falsas promessas, com engodos...


Talvez serias tu, ou talvez eu,

Quem com más intenções desfrutaria

De quantos o dinheiro corrompeu.


Talvez serias quem da fantasia

Houvesse-de gozar a qualquer custo,

Lucrando co'a extrema carestia.


E se fosses aquele que, sem susto,

Fruísse tanto luxos que luxúrias,

Ainda que passando por injusto.


Talvez serias quem d'entre penúrias

Arrancasse mais gozos do que penas 

Indiferente a tão iguais lamúrias...


Talvez serias quem a horas amenas

Inopinado entrasse pela alcova 

D'uma virgem vendida a ti apenas...


Talvez serias quem em verso e trova

Pudesse ter nos braços d'esta bela

Alguma experiência plena e nova


Talvez serias tu, ou talvez ela,  

Quem sendo corrompida, corrompesse:

Natureza que apenas se revela... 


Se fosses o ceifeiro; se ela, a messe,

Talvez não fosses mal, apenas rude,

Como uma flor no campo alguém colhesse.


Em sendo tu o rei, ninguém se ilude:

Em códices, papiros, pergaminhos...

Hás o nome da bela e a juventude!


Talvez listas de nomes e carinhos,

Em sendo tu o rei, maior riqueza

Para a inveja dos reis circunvizinhos...


Talvez os privilégios da realeza,

Em sendo tu o rei, sejam conquistas

A um esteta do sexo e da beleza.


Em sendo tu o rei, tuas artistas

São amantes desnudas, concubinas,

Tão afáveis ao toque quanto às vistas...


Talvez as liberdades femininas

Em teu reino, ou senão em tua alcova,

Proclamasses em férias libertinas.


Talvez tua grandeza posta à prova

Reafirmasses nas lides amatórias

Que em cada nova amante se renova.


Em sendo tu o rei, tuas vitórias

Seriam antes dúzias de mulheres

A cantar dos amores teus as glórias.


Mas se fosses o rei, tantos misteres 

Minariam as finanças sem remédio

Apenas por fazeres que quiseres. 


Talvez porque te fosse imenso o tédio

E a graça de ser rei se te perdesse,

Sentindo já da morte o negro assédio...


Talvez porque de tudo que acontece

Metade seja sonho... E a outra metade

Sonho dentro do sonho se parece...


Porque se fosses rei, em realidade,

Ainda que tu fosses Salomão,

Não serias mais que outra iniquidade.


Porque é ser rei extrema condição

D'um poder pelo reino e para si

Que só faz de quem reina uma ilusão.


Porque se se diverte aqui e ali

Os que realmente reinam, por discretos,

São muitos que nas sombras conheci...


Porque decorativos feito objetos

Os reis dão rosto e nome ao que somente

São mecanismos de ordem obsoletos.


Mas se fosses o rei, provavelmente, 

Te irias corromper, porque o Poder

Nos corrompe absoluta e plenamente.


Irias exigir todo o querer

Satisfeito mediante privilégios

Que te facultam quanto te aprouver.


Dizendo conceder favores régios,

Corromperias a ordem e as normas

Mediante inconfessáveis sortilégios…


Tens de tudo e com nada te conformas

Como homens que se creem superiores,

Reacionário a políticas reformas.


Nos porões do palácio, mil horrores

Por trás da Renascença diletante

A distinguir a plebe dos senhores!


E tu, entre despótico e arrogante,

Seguidos gabinetes de ministros

Irias titerar a todo instante.


Em nome do governo, sem registros,

Por ti fariam toda sorte de crime,

Sumindo documentos em sinistros.


No empenho de manter forte o regime

Mentir, roubar, matar e reprimir

Um poviléu que esquálido se oprime.


Reinarias no afã de garantir 

Tão-só longevidade å Realeza

E entre Democracias subsistir.


Unindo Burguesia mais Nobreza 

Verias uma elite esclarecida,

Mas alheia às mazelas da pobreza.


Brilhando pela corte enriquecida,

Um astro de satélites rodeado

Terias para ti excelsa vida!


Por mil bajuladores celebrado

Com infindas lisonjas e louvores

Terias a ilusão de ser amado.


Contudo, de beldades os favores,

Em meio a canalhices e adultérios,

Terias desejando seus amores.


Escândalos seguidos, por deletérios,

Ao chamar dos incautos a atenção 

Para trazer à luz Reais Mistérios…


N’aquele mar de lama, a corrupção,

Depois de comprar tantas consciências,

Traria para ti condenação!


E se fosses o rei? Dize-me, então!!

Serias diferente dos demais?

Ou diferente apenas teu brasão??


Usarias do mando e tudo mais

No afã de te servires a ti mesmo

Ou a riqueza manter dos principais?…


Haverias de sair em guerras a esmo

A espalhar fome e peste pelo mundo

Enquanto te angustias n’um tenesmo…?


Ao invés de semear solo fecundo,

Tu virias saquear o grão alheio,

N’um ardil tão estúpido que imundo?!


D’um modo ou d’outro, teu fútil anseio

De reinar sobre os mais e ser servido,

Usando o povo todo como esteio.


Se fosses tu o rei, reconhecido

Serias se findasses co’a Realeza,

Não por déspota mais esclarecido.


Irias dar progresso, com certeza, 

Se uma vez divididos os poderes

Estes se vigiassem na grandeza.


Se todos por direitos e deveres

Igualmente regidos pelas leis,

Sem distinguir aqueles que quiseres!


Se fosses tu o rei, sem novos reis

Sobre o poder que ordena a sociedade,

Acima de famílias, tribos, greis…


Deverias deixar, em realidade,

O trono sem mais trono de uma vez

Por todas nos desvãos da Antiguidade!!


Sim, absolutamente! Sem talvez.

Jamais outro energúmeno absoluto

Além dos que se batem no xadrez!


Nunca mais um regime dissoluto

Que institucionalize vãs linhagens,

Ao fazer da eugenia um atributo.


Se te fizessem rei, com homenagens

Cercariam a ti bem como aos teus,

Cobrindo-vos de joias e roupagens 


Far-te-iam defensor do próprio Deus,

Visto que a religião professada

A ti faz conformados os plebeus.


E se não creres mais em quase nada,

Farão rezar por ti um povo inteiro

A ser-te a iniquidade perdoada!


Terás o paraíso verdadeiro

Que é a excelente vida d’Excelências

Onde és entre os primeiros o primeiro


Dir-te-iam, por vastíssimas ciências,

Que tu és antes símbolo que gente,

Para disciplinar as consciências.


Um rosto que tenaz-mas-indulgente

Dê ao povo um ideal de humanidade 

Que o afaste do Poder completamente.


Isso porque viver em sociedade

Se torna sobretudo a diferença 

Com quem merece o mando de verdade.


Se te fizessem rei, tua presença

Faria dos mais próximos, distintos.

Mesmo que a distinção seja pretensa…


Às voltas co’o Poder, por labirintos,

Se veem na sociedade como elites:

Melhores do que os pobres e os famintos.


Desejam para si outros limites.

Não os das leis que regram os demais

Mas sim os de etiquetas e convites…


Se te fizessem rei, seriam reais

Os que rei te fizeram entre os reis!

Seriam os teus donos, nada mais…


Exigiriam de ti uns cinco ou seis

Títulos de nobreza e privilégios

A ignorarem assim todas as leis.


Desejosos de mais favores régios,

Vão se tornando aos poucos intocáveis

Em golpes, homicídios, sacrilégios...


Seguindo o mau exemplo dos notáveis,

Também virão no crime populares 

E muitos de costumes condenáveis.


Verias pipocar pelos lugares

Mais remotos do reino marginais

Disseminando crimes aos milhares.


Essa ordem de apartados entre iguais

Parece s’estender por todo o povo,

Dividindo-o entre as classes sociais.


Da serpente a violência chocava o ovo:

Liberais de mudanças sem mudar

Ou a mudar para ser velho de novo.


Típico reacionário a conservar

Governo e sociedade tais-e-quais 

Se te fizessem rei para reinar!


Sim, se fosses o rei quão imorais

Seriam os costumes d’esta corte,

Que farias também a teus iguais?


Quão miseráveis mais a vida e a morte

Em face d’uma elite parasita 

Que insensível ostenta sua sorte?


Quão melhor essa gente se acredita 

Pelos méritos vãos do vil metal 

Por trás de sua fala ida e esquisita.


Sim, se fosses o rei quão ilegal

Seria a tua corte de notáveis 

Postada muito acima ao bem e o mal?


Quão mais inacessíveis e implacáveis

No exercício das forças de opressão?

Milícias para o povo detestáveis!…


Quão mais insustentável a opinião 

De quem, ao defender a autoridade,

Tão-só autoritário em seu sermão?


Tu: Que rei? Que reino? Que verdade?

Que Poder haverá um titereiro,

Que títere também em realidade?


Se tu o rei, embora verdadeiro,

Serias outra fábula inventada

Para entreter o povo o tempo inteiro.


Serias ferramenta desgastada,

Que usurpando do povo o seu Poder

Entrega-o para gente despeitada!


Se tu o rei, meu Deus! O que fazer?

O haver reis em si é excrescência

De quem entre fantasmas quer viver!


Vossa Alteza Real, por excelência,

Renuncia e convoca o Parlamento 

A dar ao bem comum obediência!


Se tu o rei, revoga o regimento

Que faz de ti e o povo ainda escravos

D’um pacto sem real consentimento.


Se cidadãos, não súbdito de bravos,

—Submetidos a leis, e tão-somente—

Deitando fora os liames mais ignavos…


Não mais títere, sim um rei realmente:

De ti mesmo senhor e soberano,

Conquistas a grandeza finalmente!


Grande quando maior por, salvo engano,

Monarca desprovido de realeza,

Serias, pois, um rei republicano!


Grande porque, deveras, com grandeza

Renunciarias pelo bem dos povos

Em face da pobreza e da riqueza!


Grande, contudo, pelos ares novos,

Ao perceber que, abertas as janelas,

De novo os ramos cheios de renovos!


Grande, visto que são muito mais belas

Todas as histórias quando a História

Vem pôr fim a longuíssimas procelas!!


Se tu o rei, a tua maior glória

Seria findar, máximo, co’os tronos,

Deixando-os d’uma vez só na memória.


Seria governar sem mais patronos,

Depois de devolver todo o Poder

Devidamente aos seus devidos donos.


Seria por sinal reconhecer

Que se fosses o rei, talvez nada

Terias tu, de facto, para fazer…


Seria como vir da madrugada

O sol para trazer outra manhã

E poder começar nova jornada.


Se tu fosses o rei, já amanhã

Não deveria haver sequer mais reino

Nem outra autocracia tão malsã!


Como se a monarquia fosse treino

Para haver um mandato popular,

E nunca mais colônia ou vice-reino!


Se tu fosses o rei, por não reinar

Farias muito mais pela nação

Do que mil outros reis em teu lugar!!


Farias tu de tua abdicação

Concedida em favor do Parlamento 

Em assembleia de Constituição!


Farias afinal do entendimento

Da ordem social face ao bem comum

Do Estado Nacional o fundamento.


Serias – tu, o rei – tão-só mais um

Igual em tudo aos outros cidadãos;

Visto melhor em nada em lugar nenhum!


Farias afinal dos homens vãos,

Enquanto fazedores de reis!

De novo agricultores só de grãos…


Farias afinal das velhas leis

Códices bestiais de letra morta,

Em bibliotecas sós de velhos freis…


Serias – tu, o rei – a extrema porta

Para estabelecer novo regime,

Que nem reis nem nobres mais suporta.


Farias afinal da mais sublime,

Bem como mais justa liberdade

A verdade que a todos nós redime.


Farias afinal por igualdade

Superar toda forma de injustiça 

Tanto no campo como na cidade.


Afinal – tu, o rei – sem mais cobiça

Sem mais cetro nem trono nem coroa

Co’a justiça social se compromissa.


Afinal – tu, o rei – tão-só pessoa.

Não mais o mais corrupto a corromper,

Enquanto o vão metal venal escoa…


Afinal – tu, o rei – sem rei mais ser

Virias ser aquele que partindo

Passa apenas à História pertencer.


Betim - 31 12 2019


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