À LETRA DA LEI
Algo que causa espécie ao homem comum é assistir os operadores do Direito assumindo posições antípodas em suas argumentações. Recentemente, o mesmo desembargador que se valeu das prerrogativas constitucionais em nome da Liberdade de Expressão para defender declarações racistas e sexistas do então Deputado Jair Bolsonaro em entrevista ao programa CQC em meados de 2011, também foi responsável pela censura ao programa especial de Natal do humorístico Porta dos Fundos. Com efeito, o Desemb. Benedicto Abicair, da 6ª Câmara Cível do Rio de Janeiro, determinou na última quarta-feira, 08 de janeiro, a imediata suspensão do "Especial de Natal Porta dos Fundos: A primeira tentação de Cristo". Em que pese a suspensão da exibição do especial ter sido desautorizada em carácter liminar mediante decisão do presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, a censura ocorreu e gerou, senão uma guerra de narrativas, ao menos uma discussão semântica sobre o que seria ou não censura. De qualquer forma, com uma canetada o programa deixou de estar disponível para exibição.
Se observarmos toda a controvérsia, mais do que a ofensa ao sentimento religioso dos cristãos em face do humorístico, o que realmente parece irrefreável é a capacidade de se interpretar as normas jurídicas em conformidade com a conveniência de quem as pretende executar. Embora se reconheça no Direito uma ciência com milênios de desenvolvimento e um campo técnico essencial para a Ordem Social, episódios como o citado levam, forçosamente, à noção de que a Jurisprudência seja um oceano de subjetividades a justificar decisões ad hoc. Àqueles que estão familiarizados com as idas-e-vindas processuais esse olhar confuso do leigo pode parecer injusto, mas facto é que tal como está o Judiciário antes desnorteia o cidadão acerca do que se espera de sua conduta em sociedade. Afinal, seguindo os costumes, pode se fazer piada com pobre, preto, bicha, loira e até com autoridades políticas… Mas com o Jesus evangélico, não!
Talvez por reconhecer a importância do contraditório como parte do processo para a busca da verdade ou ao menos da justiça social, a troca de argumentos paradoxais se apresente como natural entre os operadores do Direito. Todavia, a ideia de que "da cabeça de juiz, da barriga de grávida ou da bunda de neném, ninguém sabe o que vem…" parece apenas ser confirmada a cada decisão controversa que é proferida por nossas autoridades judiciais. Seria cômico -- um humor que, ao invés de rir, enraivece -- se não fosse trágico: Ataques com bombas incendiárias contra a produtora do grupo humorístico tirou a questão do campos das ideias e a levou para a factualidade criminal. Sim, o dano agora é físico e põe vidas humanas em risco de maneira proposital.
Como é de conhecimento de todos, a grande missão do Direito é ser um dos pilares da Ordem Social, permitindo a solução de conflitos por vias pacíficas ou, excepcionalmente, com violência estatal mediante forças policiais. Pode se afirmar com certa tranquilidade que enquanto juízes e desembargadores tergiversam acerca da interpretação da lei, a sociedade é deseducada quanto a seus deveres e obrigações em face de situações ilegais sendo relativizadas: Pôr fogo n'um prédio é crime, não importa se n'ele se produz conteúdo antirreligioso ou ofensivo. A actitude de Benedito Abicair em justificar a retirada d'este mesmo conteúdo do ar para "acalmar os ânimos" revela sobretudo frouxidão do judiciário brasileiro em fazer valer o princípio de liberdade de expressão. N'outras palavras, ao menos durante os dias que a suspensão durou, os terroristas venceram.
A intolerância contra o humorismo do Porta dos Fundo tem, digam o que disserem, um viés homofóbico. O Cristo dos Evangelhos -- Verbo Divino que se fez em carne humana -- enfrenta ficcionalmente sua primeira tentação como ser humano-embora-divino (e sexualidade é uma questão humana…) seduzido por uma relação homoafetiva pelo Adversário (Satã, em hebraico). Ora, isso só é considerado ofensivo porque a ideia de um Cristo celibatário e focado em sua missão divina parece prevalecer nas exegeses cristãs sobre os repetidos questionamentos e tentações que o Jesus dos Evangelhos admite. Todavia, o que se presenciou foi uma grita sem precedentes no Brasil milenial.
Aliás, precedentes apenas em "A ultima tentação de Cristo", nos anos oitenta... De facto, o título do especial de Natal do Porta dos Fundos evoca o filme de Scorcese, baseado no romance homônimo de Nikós Kazantizákis, cuja controvérsia nos anos oitenta gerou ao menos um episódio semelhante:
[i]Em 22 de outubro de 1988, um grupo fundamentalista cristão francês lançou coquetéis molotov no interior do teatro Saint Michel enquanto ele estava mostrando o filme. Este ataque feriu treze pessoas, quatro das quais foram severamente queimadas -¹
[/i]
A confusão foi grande. Houve vítimas e patrimônio foi destruído. Mas, ao contrário do ataque ao Porta, as autoridades francesas, inclusive eclesiásticas, foram duras em condenar o ataque. Sequer se cogitou censurar o filme para apaziguar quem quer que fosse. Os intolerantes foram punidos e até excomungados... Não obstante, o filme foi proibido ou censurado em vários países. Ver isso acontecendo novamente em pleno século XXI não deixa de ser um alerta sobre a incapacidade de evoluirmos e aprendermos com o passado.
Se a letra da lei sempre permite novas e mais amplas interpretações, a mensagem da censura de Abicair não podia ser mais clara: Cale-se! Cale-se, Porta dos Fundos! Calem-se, ateus, agnósticos e pernósticos: O Estado brasileiro é laico, mas tem lado… Entre fazer valer a Constituição e agradar a maioria crente, não há norma escrita que não possa ser relida à luz das fogueiras!
Betim - 15 01 2020
¹- https://www.nytimes.com/1988/11/09/world/religious-war-ignites-anew-in-france.html
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