CARIMBO DE PUTA
Sentou-se na banqueta do estúdio do tatuador, de costas para ele, enquanto tirava a camisa. O profissional, surpreso, perguntou-lhe se havia mudado de ideia: — “Dr. Henrique,” — advertiu-lhe mui respeitosamente — “havíamos combinado um raio fino no pescoço, não?” — O outro lhe esclareceu: — “Pensei melhor: Quero uma flor de lótus estilizada no dorso…” E apontou para um desenho no catálogo de tatuagens.
O tatuador considerou em silêncio o homem que tinha diante de si: Era a segunda vez que ele aparecia em seu estúdio, sempre de terno e gravata. Era advogado, aparentemente bem sucedido, apresentando-se com cartão de visita e hora marcada. Parecia um homem sério, de meia idade, que o procurava para fazer sua primeira tatuagem: — “Sempre fui muito religioso.” — disse à guisa de explicação — “Tinha muito preconceito com desenhos no corpo, como se fosse algo pecaminoso. Mas, hoje, entendo que é uma forma de expressão pessoal e até de comunicação com os outros.” — O tatuador, que já tinha visto e ouvido de tudo n’aquele estúdio, deu de ombros. Sem embargo, a súbita mudança de tatuagem era surpreendente. Já fizera desenhos como aquele no dorso de centenas de homens e, sobretudo, de mulheres. Era o famigerado CARIMBO DE PUTA, o signo inequívoco da promiscuidade. Sim, embora soubesse que muitos se ofendiam com essa alusão ao ornato como chamariz dos olhos para a bunda, aquela, em especial, parecia uma seta apontando o rego do ânus. Era o que era.
Enquanto estudava melhor o desenho do catálogo e a pele exposta próxima ao cóccix do cliente, esforçava-se em não fazer qualquer comentário, por mais inocente que fosse. Abriu no catálogo algumas variações d’aquele tema e teceu comentários sobre as cores e a composição. O cliente foi lacônico em cada observação e o desenho original sofrera personalizações mínimas. O tatuador insistiu: Pegou seu celular e mostrou dezenas de fotos de clientes seus que haviam feito tatuagens como aquela… Eram sempre mulheres ousadas ou homens afeminados, invariavelmente em roupas de banho. Quase como se dissesse: “O senhor tem certeza?”, mas permaneceu no limite da discrição diante da escolha do cliente.
Enquanto estudava melhor o desenho do catálogo e a pele exposta próxima ao cóccix do cliente, esforçava-se em não fazer qualquer comentário, por mais inocente que fosse. Abriu no catálogo algumas variações d’aquele tema e teceu comentários sobre as cores e a composição. O cliente foi lacônico em cada observação e o desenho original sofrera personalizações mínimas. O tatuador insistiu: Pegou seu celular e mostrou dezenas de fotos de clientes seus que haviam feito tatuagens como aquela… Eram sempre mulheres ousadas ou homens afeminados, invariavelmente em roupas de banho. Quase como se dissesse: “O senhor tem certeza?”, mas permaneceu no limite da discrição diante da escolha do cliente.
Embora procurasse qualquer reacção às fotos que apresentava, seu cliente permanecia impassível. Tentou reparar novamente n’aquele homem sem camisa e curvado em sua banqueta e tudo que conseguiu perceber foi uma enorme aliança no anelar da mão esquerda… Para quebrar o impasse da situação, resolveu reposicionar o cliente — “O senhor poderia se deitar de bruços n’essa maca? E bem melhor fazer o desenho assim”. — O homem se levantou e se posicionou conforme indicado sem dizer palavra. A tensão do tatuador somente aumentava…
Evidente que não tinha nada com a escolha do cliente, mas era inusitada demais para não perguntar:
Um homem tão cerimonioso, quadrado até, casado e já de meia idade querendo fazer um carimbo de puta no cóccix! Para quê? Não parecia do tipo que frequentasse clubes ou academias, andando sem camisa para lhe repararem na bunda… Viviam n’uma cidade sem praia e dificilmente ele andaria sem camisa, mesmo em casa. A pele, completamente limpa, rosada e mesmo um pouco flácida. Tinha certeza de que aquele tipo jamais entrara antes n’um estúdio de tatuagem até sua primeira visita escolhendo uma tatuagem de modismo para aparecer acima do colarinho branco. E hoje, sem mais nem quê, um carimbo de puta…
Já com a agulha na pele do sujeito, o tatuador explodiu: — “Dr. Henrique, o senhor tem certeza de que é isto que o senhor quer?” O outro sequer se deu ao trabalho de se virar e lhe encarar, apenas disse: — “Sim, pode continuar.” — Intrigado, o profissional insistiu: — “Mas essa tatuagem, n’esse lugar, isso é um carimbo de puta, senhor! Somente gente promíscua faz esse tipo de tatuagem aí. Eu não entendo!…” — O advogado se sentou na maca e disse para o tatuador: — “Talvez no fundo eu seja uma puta.” — o profissional se impressionou com sua franqueza. O homem continuou:
— “Descobri a essa altura da vida que tudo o que fiz até hoje foi executar um projeto desenhado por terceiros. Meus pais, a igreja, o colégio, os amigos… Tudo e todos me diziam como eu deveria parecer e como eu deveria me sentir. Eu deveria ser um homem sério para ser levado a sério. Sempre julguei extremamente condenável ter uma vida dupla ou ser incoerente entre o que se fala e o que se pensa. Hoje eu vejo, porém, que aquilo que se faz em privado diz respeito apenas a quem faz.”
— “E sua esposa?” — argumentou o tatuador — “O senhor pode esconder essa tatuagem de todos, mas não tem como esconder d’ela. Ela sabe que o senhor se sente assim.” — incomodado com aquele inquérito, o cliente simplesmente o cortou : — “Isso não lhe diz respeito!” — O tatuador se calou.
A tatuagem transcorreu sem maiores problemas. Era um desenho simples: Uma pequena flor de lótus estilizada com pétalas cinzas no centro e coloridas nas bordas. Típico carimbo de puta… Enquanto desenhava, o tatuador — ele sim, um homem que sempre procurou expressar sua liberdade em seu corpo, com várias grafismos, frases e desenhos espalhados por todo o corpo — pensava no quanto sempre fora evidente para ele essa relação entre imagem e personalidade. Tatuar-se fora, e ainda era, uma forma de transgressão. Muitas vezes na vida fora discriminado por suas tatuagens. Sempre era parado pela polícia e tomava baculejo completo enquanto homens como Dr. Henrique sequer eram constrangidos a se explicar. Ao contrário, eram liberados rapidamente sem sequer mostrar documentos. Fazer o quê? O mundo era assim…
Terminado o carimbo de puta — quer dizer, a flor no cóccix… — o tatuador pegou o espelho e mostrou para o advogado. Ao ver o desenho, Dr. Henrique abriu um largo sorriso e uma lágrima grossa lhe escapou do olho direito. Ele apenas balbuciou — “Muito obrigado!…” — Levantou-se, vestiu a camisa e combinou o retorno em breve para os retoques. Parecia surpreendentemente feliz consigo pela actitude que havia tomado. O tatuador o levou até a porta e despediu com monossílabos. Chegou junto à janela que dava para a rua e viu se afastar um homem branco de meia idade vestido de terno e gravata que agora tinha um carimbo de puta nas costas, oculto sob a roupa, desaparecer na multidão.
Sozinho em seu estúdio, ele sorriu.
Belo Horizonte — 17 01 2020
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