sábado, 30 de novembro de 2019

COR-DE-PELE

COR-DE-PELE

Meu lápis cor-de-pele não é rosa,
Mas sim marrom de terra avermelhada
Que dá lá nos tijucos da baixada,
Com liga tão subtil que pegajosa.

Não digo qu'ela seja a mais formosa,
Visto toda a beleza celebrada
Nas mais diversas cores da jornada
Que a Humanidade pôs em verso e prosa.

O que afirmo devera é que não menos
Essa pele morena m'embeleza,
Embora ainda a tenham por somenos...

E o lápis que a colore com destreza
Me imita sob o ardor d'estes sóis plenos
A terra que me deu a Natureza.

Betim - 23 11 2019

SONHOS DE PADARIA

SONHOS DE PADARIA

Acorda. Toma o teu café
O dia carece de ti!...
Sonhas acordado? Pois é:
Acordar é trabalho em si...

Sonha. Quem por último ri
Se alimenta da própria fé.
O dia carece de ti...
Acorda. Toma o teu café.

Sonha. Ainda que já de pé.
O alimento que te sorri
É sonho no caminho até:
O dia carece de ti...
Acorda. Toma o teu café.

Betim - 24 11 2019

URBE ET ORBE

URBE ET ORBE

Vede: A minha cidade é o meu mundo.
Quer as casas e edifícios onde habito;
Quer as ruas e avenidas que transito...
Tudo aqui me parece mais fecundo!

Era, n’um mar de morros tão rotundo,
Horizonte mais belo que bonito.
De cujo hábito, o trânsito do infinito
Me fez querer tão-só o que profundo.

Sabei, cidade e mundo: -- "Existir
É se fazer memória nos lugares,
Além de projetar sobre o devir."

"Isto posto, apurai vossos vagares!
Que no meio d’essa gente a ir e vir,
Eu possa ser melhor entre milhares.".

Belo Horizonte – 26 11 2019

PROFICIÊNCIA

PROFICIÊNCIA

Hábil, não com as mãos; com as ideias!
Cujo afã de mover mundos e fundos
Transformara os anseios mais fecundos
No achado de impossíveis panaceias.

Visto andarmos humanas centopeias
À beira dos abismos que, profundos,
Periguem engolir-nos aos submundos
No curso vão de nossas epopeias.

Todo o saber do mundo é para ser.
Que fazemos de nós; que nos devimos,
Com o que conhecemos tem a ver.

No mais, por das montanhas os seus cimos,
É preciso às colinas conhecer,
Pensando o caminhar onde existimos.

Betim - 28 11 2019

MENINO-HOMEM

MENINO-HOMEM

Nascido e criado em roça, cresci rude.
Sujeito envergonhado e caladinho;
No afã de imaginar, sempre sozinho,
Sonhando as excelências da virtude!...

Sem perceber o quanto aquilo ilude,
Dos mais belos ideais me fiz vizinho.
Buscava dar sentido ao meu caminho
Até me deparar co'a inquietude...

É... Não há idealismo que resista
As tortas circunstâncias d'esta vida,
Onde o pão com misérias se conquista.

Ainda menino, homem fui na lida.
E se essas poucas luzes tenho em vista,
São das vezes que estive sem saída.

Betim - 29 11 2019

EM SEGUNDA DECADÊNCIA

EM SEGUNDA DECADÊNCIA

D'entre os famosos ditos de Pombal,
A caricatura há d'um desvalido,
-- Que sim, déspota. Mas, esclarecido!--
Perde, com seus ideais, o ardor jovial.

Banhado a ouro, elevara Portugal
A um fausto jamais antes conhecido
No teatro das nações, com descabido
Orgulho fátuo face a um mau final.

A figura que criara ele, entretanto,
Mesmo falsa e despida já de encanto,
Povoou as mentes nobres ao saber.

Por ironia, ao fim quedou por ser
Ele próprio à Nação em opulência,
Cavalheiro em segunda decadência!

Betim – 21 10 2005

AO MIRANTE

AO MIRANTE

Encontro-me ao mirante a cismar versos:
D'ali, minha cidade inteira se descortina!
Como n'um instantâneo, a poesia à retina
Da vida me ilumina os caminhos diversos.

Mais longe, vejo os prédios d'ouro sendo imersos
E em meio ao alvorecer, a estrela matutina.
Se a condição humana à morte me destina,
Ao menos eu contemple estes clarões dispersos...

Penso, n'essa amplidão que por ora me cabe,
Que se Deus tudo sabe é porque tudo vê
E que se tudo vê é porque tudo sabe!

Certo de especular de Deus quanto se dê,
Acabe eu -- a não ser que o mundo antes acabe... --
A buscar na distância algum vago porquê.

Brumadinho - 12 02 1999

À MANEIRA DE VOTOS

À MANEIRA DE VOTOS

-- "Necessito fazer tudo o que posso
Antes que de tão breve a vida passe.
De vez pôr um sorriso em tua face,
Até que o meu e o teu sejam o nosso."

"O néctar de teus lábios eu adoço
Com os favos de mel do novo enlace:
Nós dois juntos é como se sonhasse!
E nas lides d'este amor logo remoço...

"Sem te desdenhar um olhar que fosse,
Sei de tua beleza toda a graça
E toda essa alegria que me trouxe."

"No mais, só emoção à voz perpassa...
Escusa-me outra lágrima agridoce,
Certo que de tão breve a vida passa."

Betim - 17 11 2019

DESCAPITALISTA

DESCAPITALISTA

MOTE:
Quando se faz dinheiro a qualquer preço
A vida vale menos do que pesa.

GLOSA:
Viver do capital e do trabalho
E sustentar o vício do consumo...
Um descapitalista eu cá me assumo:
Prefiro-me raposa que espantalho;
Senão, de déu em déu, sigo por rumo.
Às vezes, desconfio que o sucesso
É um deus caprichoso que despreza
Dos inúmeros fiéis a própria reza.
Quando se faz dinheiro a qualquer preço
A vida vale menos do que pesa.

Betim -  28 11 2019

domingo, 24 de novembro de 2019

HISTERIA

HISTERIA

Tem vez que o sentimento me arrebenta
As barragens do peito e se derrama
Na enxurrada irrefreável d'água e lama
Que mais uma catástrofe acrescenta.

É uma fúria indômita; violenta!...
Que arrasa a sanidade de quem ama
Ardendo, desvairado, n'uma chama
Que da própria loucura se alimenta.

Parece um pesadelo muito vívido
Que quando se desperta, suado e lívido,
Deixa terrificado o sonhador.

Entanto, esta incontrolável histeria
Nada mais é que a imensa fantasia,
Que alguns chamam paixão; outros, amor!

Betim - 23 11 2019

COR-DE-PELE

COR-DE-PELE

Meu lápis cor-de-pele não é rosa,
Mas sim marrom de terra avermelhada
Que dá lá nos tijucos da baixada,
Com liga tão subtil que pegajosa.

Não digo qu'ela seja a mais formosa,
Visto toda a beleza celebrada
Nas mais diversas cores da jornada
Que a Humanidade pôs em verso e prosa.

O que afirmo devera é que não menos
Essa pele morena m'embeleza,
Embora ainda a tenham por somenos...

E o lápis que a colore com destreza
Me imita sob o ardor d'estes sóis plenos
A terra que me deu a Natureza.

Betim - 23 11 2019

sábado, 23 de novembro de 2019

APONTAMENTOS

APONTAMENTOS

São a felicidade e a verdade
As mais urgentes buscas d'esta vida.
Tudo o mais é esp'rança descabida
Co'as quais nos manipulam a vontade.

Mas têm por condição a liberdade,
Visto esta no indivíduo concebida.
Porque n'ela cada ânsia é percebida
Ao longo já de toda a Humanidade.

Preferível ser livre a ser feliz
E verdadeiro em tudo o que se faz
Do que conseguir tudo o que se quis.

Aquele que em verdades se compraz
Saberá conter d'outros os ardis
E mesmo tendo pouco ser em paz.

Belo Horizonte - 19 11 2019

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

EM SER DESEJO

EM SER DESEJO (endecha)

Estive eu tão perto
D’aquele que sou
Que decerto estou
De mim ora incerto.

Quem sou eu não sei;
Quem fui eu não soube.
De mim não me roube
Quem quer que serei.

Talvez pense ser
Quem eu nunca pude;
Que decerto ilude
No fim o prazer.

Talvez pense estar
Tão longe de tudo,
Que somente mudo
Eu possa passar.

Talvez pense vir
D’aquele passado
Quem inopinado
Neguei-me existir.

Talvez sem talvez
Quem não fui não seja,
Senão quem deseja
Querer outra vez.

Jamais eu fui eu,
Pois que, desejoso,
Neguei-me meu gozo:
Jamais eu fui meu.

Jamais eu fui quem
Em noite de fúria
Houvesse a luxúria
Por mal ter um bem.

Jamais eu fui este,
Ou quem, decidido,
No prazer vivido
À morte conteste.

O facto é que não.
E o que sou é pejo
De arder de desejo
Em minha ilusão.

Belo Horizonte – 19 11 2019

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

OLHOS NOS OLHOS

OLHOS NOS OLHOS

Meus olhos me traem:
Teus olhos me atraem.
Teus olhos…

Uns olhos de gude
Cujo jogo ilude
Meus olhos.

Molho meus olhos inglórios
Por saber quase ilusórios
Teus olhos nos meus.

Melhor abri-los e ver
A maravilha de ter
Meus olhos nos teus.

São Vítor - 20 11 1994

terça-feira, 19 de novembro de 2019

OBRIGADOS

OBRIGADOS

Nós -- que compartilhamos as origens --
Estamos obrigados aos d'antanho:
Tão gratos quanto em dívida p'lo ganho
D'estes antigos nomes e vertigens.

Os rostos salpicados de lentigens
Vêm vos testemunhar amor tamanho,
Tanto quanto esse olhar mais castanho
Sob séculos de minas, pós, fuligens...

A obrigação por tudo quanto somos
Nos traz como oferendas n’estes pomos
Ora em vossa memória sobre o altar.

Certos de que em louvor de antepassados,
Eternamente somos obrigados
Para com nossas vidas vos lembrar!

Ouro Preto - 19 11 2019

sábado, 16 de novembro de 2019

OBSERVADORES

OBSERVADORES

Pessoas que sonham pouco
Não raro não fazem nada,
Pois vivem na encruzilhada:
Direita? Esquerda tampouco!
Sem elas prossegue a estrada...

Veem os outros s'estrepando
E dando co'os burros n'água!
Se não têm paixão, nem mágoa.
Só observam onde e quando,
Rio, o desejo deságua...

Distante, acontece a História:
Reis, sistemas, sucessões,
Guerras e revoluções:
Homens em busca de glória
A conduzir as Nações!

Todos passam, entretanto,
Enquanto eles olham de lá
Satisfeitos de quanto há
N'este mundo em desencanto
Onde a História não está.

Pois permanecem parados,
Certos de estarem mais certos.
Entendem-se como expertos
E os demais como enganados,
Face a seus olhos despertos.

Mas estar certo não basta
Quando há um mundo a mudar.
Mais perde por esperar
Quem diante de etnia ou casta
Aceita outrem prejulgar.

Ou tolera os privilégios 
Dos que vivendo de rendas
Ao longo de suas contendas
Arvoram-se homens egrégios
Como se mitos ou lendas.

Pretendem ser imparciais 
Quando são só impresentes...
Passam por indiferentes,
Analisando os demais,
Mas por coloridas lentes!

Sim, pois há conveniências
Em se ignorar dos tiranos
As sombras de seus enganos
À margem das consciências
Sobre os direitos humanos.

Ou ainda s'emudecer
Diante das contradições
Que vêm gerando exclusões
Para mais prevalecer 
Sobre as pessoas, cifrões!

Quanto elevam, entretanto, 
Logo derrubam também...
À glória quem a sustém
E ao vencedor o seu canto!
-- Mais tudo que lhe convém...

Assim assistem o mundo
Como fosse um espetáculo
Onde o herói segue o oráculo
A superar sem segundo
Obstáculo após obstáculo!

São plateia, nunca palco.
Onde ora aplauso; ora vaia,
Àquele que sobressaia.
Té' que encanecido e glauco
Do Poder Supremo caia...

Observam, em todo caso,
Todas as dores do mundo,
Seguros de que no fundo
Vivamos todos ao acaso
N'um planeta moribundo.

E entretidos co'a verdade
Comprometem-se com nada,
Apenas passam da idade
Assistindo a Humanidade
Lá de sua encruzilhada.

Betim - 15 11 2019

AMIGO!

AMIGO!

Adquiri, com o passar dos anos,
o hábito de tratar os outros por amigo (a), mesmo que não o sejam (ainda).
É uma forma positiva, penso eu, se iniciar uma boa relação antes mesmo de saber o nome da pessoa com quem falo. Muitos não gostam e me argumentam que mal nos conhecíamos. Eu, de meu lado, respondia um velho arrazoado:

-- "Sempre que conhecemos uma pessoa há três possibilidades -- discorria  entre tolerante e persuasivo. 

A primeira, a pessoa que acabei de conhecer gostar de mim e se tornar um amigo. Gosto de acreditar que se ambos se aproximam de coração aberto, fatalmente se tornaram amistosas...

A segunda, o outro vem e não gosta de mim, tornando-se inimiga. Isso é raro e, dentro dos limites da civilidade, tolerável. Nem eu gosto de mim o tempo todo, quanto mais quem pouco ou  nada sabe de mim?! Mais do que compreensivo não gostar de mim, mas, se a pessoa for mesmo nefasta, há-de se afastar ao ver que sou pobre e humilde demais para suas ruindades. O mundo é grande o bastante para nos evitarmos mutuamente.

A terceira, fica indiferente. Se não fede nem cheira, mantém-se como conhecido. Repare -se que este será sempre um estágio provisório de relacionamento humano. Todo conhecido é um amigo ou um inimigo em potencial. Se é raro ter inimigos, ainda mais raro é ter inimigos que já foram amigos... A amizade pode esfriar com o tempo; as pessoas se distanciam e se veem vi estranhos... Contudo, bastará a mesma boa vontade inicial e o distante volta a ser próximo tanto quanto o conhecido amigo do passado torna a ter valência para quando se necessita.

Quando finalmente terminei a historinha, se outro permaneceu à escuta, tende a se identificar com a primeira probalidade. Arrisco a dizer que as pessoas querem ser amigas de quaisquer pessoas que quiserem ser suas amigas. Dá muito mais trabalho cultivar inimizades que amizades, visto que, para mim, o ódio é quase uma desnatureza.

Para o optimista, o conhecido (e mesmo o inimigo...) são amigos em potencial. E. Em relação aos homens (e mulheres, obviamente) eu escolhi ser um optimista.

É isso, amigo!

A CARAPUÇA

A CARAPUÇA 

A cara que me veste me convém
Para eu me parecer com quem preciso.
Aquele que me veem, de sobreaviso,
Se me mostre o que cômodo contém.

Solte-se do meu rosto todo, porém, 
Quando só não me exijam tanto siso.
Ou se estabelecendo mais conciso
O retrato qu'eu sou e mais ninguém.

De facto, a carapuça que me serve
Possa lhes proteger de minha verve
Que, múltipla, confunde tanto assim.

Sendo muitos, escreva como se um, 
Distante de qualquer lugar comum
Sob essa face pública de mim.

Betim - 15 11 2019

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

FIO DE LUZ

FIO DE LUZ

Desenrola a partir d'estes teus dedos
A luz espiralada ponto a ponto
Até que o meu olhar, um tanto tonto,
Se desfocasse em mil brilhos mais ledos...

Apura no sorriso os tais segredos,
Que pelo coração ainda aponto
E mostra bem mais belos do que conto
O reluzir dos lábios em folguedos!

Deixa-me te admirar mais longamente
A pretexto de bem fotografar
A maravilha agora à minha frente!...

E o instantâneo de ti que me ficar
Seja um fio de luz tão eloquente,
Que mesmo longe eu possa me alegrar.

Betim - 13 11 2019

OS IMPRESCINDÍVEIS

OS IMPRESCINDÍVEIS
 
Lutaram toda a vida a vida toda,
Entregues ao desejo de mudanças.
Falavam de futuros e bonanças,
Enquanto se reunia o povo em roda.
-- Pois só transforma aquele que incomoda!

Os burgueses, a ver tudo como moda,
Desdenham-nos com más desconfianças
Diante das populares alianças.
E a seguir, negociam outra boda...
-- Pois só transforma aquele que incomoda!

Se o bem-nascido logo se acomoda
Às regras entre rendas e finanças.
Ao desvalido restam esperanças 
De se tornar alguém que em vão denoda...
-- Pois só transforma aquele que incomoda!

Mas vêm a ordenar tudo como roda
Em lugar de pirâmides de nuanças,
Clamando um mundo novo p'ras crianças:
"Sob pena de existir por uma foda,
-- Transforma-te n’aquele que incomoda!"

Betim - 12 11 2019

terça-feira, 12 de novembro de 2019

TIBICUERA

TIBICUERA

A passos curtos sigo por dormentes,
Cujos trilhos tomados de capim
Parecem se perder n'algum confim
Há muito abandonado de viventes...

Sem aviso a via férrea nas vertentes
Some, desbarrancada, no alecrim
Que no campo cresceu sem ter jardim
E cobriu as moradas dos ausentes:

Eram ruínas tristes, desoladas...
Há décadas talvez desabitadas,
Visto nomes e sonhos esquecidos.

Porém n'uma clareira o chão maninho
Permanece só poeira e descaminho...
Ali a cova rasa dos vencidos.

Nova Lima - 12 10 2019

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

ENCOURADO

ENCOURADO

O ódio elitista a quanto seja povo
Reveste-se de "Fome de Justiça"...
Como se bezerrões que por cobiça
Encourados em vez do irmão do novo:

Aos úberes da vaca em bom renovo
Vêm exigir p'ra quem mais desperdiça!
E ainda fazem crer que por preguiça
O necessitado passa por estrovo...

Quase garrotes, são desde bem cedo
Costumados a ter o olhar das greis
Submissos ao estalido de seu dedo!

Em couro de bezerro arrotam leis,
Mas logo após conspiram em segredo
Para aclamar tiranos como reis!

Betim - 11 11 2019

domingo, 10 de novembro de 2019

CÁRCERE: INTERIOR

CÁRCERE: INTERIOR

Perspectiva com fuga à borda esquerda
Deslocada de quem olha em pé ao centro.
Entrando do postigo cela adentro
Uma luz baça sobre a sua perda...

Primeiro plano: Enorme mão direita
Bem agarrada à grade que a proíbe;
Longo braço esticado ao fundo exibe
O olhar que arregalado nos espreita.

Seu semblante insondável só espera,
Após tortura, a morte em soledade
Com que anseiam conter toda quimera.

Mas invertendo a fuga, o olhar evade...
E nas trevas da cela ele mesmo era
Um lugar onde brilha a Liberdade.

Belo Horizonte – 13 12 1998           

sábado, 9 de novembro de 2019

ENTRE FOLHAS

ENTRE FOLHAS

Não fui nem sou algum poeta bissexto,
Que escreve muito-bem-mas-raramente
Versos de verve lúcida e excelente
Manuscritos n'um velho palimpsesto...

Jamais juntarei rimas a pretexto
De louvar poderosos frente a frente,
Exaltando-lhes face a minha gente
E receber seu ouro por meu texto.

Não penso garimpar entre agonias
Da noite um aforisma espirituoso,
Que traga aos mais letrados certo gozo.

Ao contrário, buscar todos os dias,
Fazer versos ligeiros cuja estima,
Alcance ainda metro, ritmo e rima.

Betim - 08 11 2019

EXCARCERADO

EXCARCERADO

Prisão não é lugar para viver,
Quando se tem um sonho de nação.
É preciso arejar o coração,
Escancarando as portas do querer.
-- Certos de que a verdade vai vencer.

A nossa terra volte a florescer
Com nossa gente junta no refrão,
A clamar pelo fim da repressão
Contra todos que lutam sem temer,
-- Certos de que a verdade vai vencer.

Um corredor d'amor a s'estender
Nas ruas da cidade e do sertão,
Espalhando esperança e gratidão
Àquele que elevaram ao Poder
-- Certos de que a verdade vai vencer.

Mas se em sombras conspiram a exercer
Contra o povo um regime de exceção,
Já podem pôr na rua o batalhão:
Contra os livres não há nada a dizer...
-- A não ser que a verdade vai vencer.

Betim - 08 11 2019

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

CANCRO DURO

CANCRO DURO

Era coisa de nada... Apareceu
Sem que me desse conta d'onde ou quando!
Aos poucos foi ardendo e avermelhando
Até que d'uma pústula escorreu...

Escondia ainda a dor como algo meu,
Ao perceber de Vênus mal nefando...
Mas logo aquilo foi m'espezinhando
A ponto de ficar maior do qu'eu!

D'aí médicos, remédios e vergonha...
Pois, como em meio ao gozo tal peçonha
E tanta dor de tão pouco prazer?

Guardei-me dos juízes de costumes
Para me curar entre sós queixumes
E nunca mais em risco m'envolver...

Belo Horizonte- 06 11 2019

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

AUTOENGANE-SE A SI MESMO

AUTOENGANE-SE A SI MESMO

Cíclicas redundâncias são o bastante
Para, em vez de pensar, acreditar... 
Crenças somente existem se as aceitar,
Repetindo adesão a todo instante.

Separa o militante do triunfante,
Apenas a sua hora e o seu lugar:
Quem pela fé milita há-de triunfar,
Senão por perspicaz, por circunstante!

Como só de promessas vão vivendo,
Tanto faz o que a Ciência está fazendo...
A verdade repetem em latim!

No fim dizem que tudo dará certo
E se não der ao menos um esperto
Alegará não ser ainda o fim...

Belo Horizonte - 06 11 2019

terça-feira, 5 de novembro de 2019

FALASTRÃO

FALASTRÃO (vilanela)

Convém falar quando há algo a dizer,
Senão, melhor calar o que não sabe
Ao escutar quanto possa se aprender.

Silêncio! Para para compreender.
Mesmo que de sandice outrem se gabe,
Convém falar quando há algo a dizer.

Evita dos enganos desprazer
E deixa de arguir o que não cabe
Ao escutar quanto possa se aprender.

Cala para não ter de desdizer...
Se quem insiste mais se menoscabe,
Convém falar quando há algo a dizer.

Respeita quem demonstra mais saber,
Antes que uma verdade em ti desabe,
Ao escutar quanto possa se aprender.

No mais, melhor calar que responder.
Sob pena de que um erro nunca acabe...
Ao escutar quanto possa se aprender,
Convém falar quando há algo a dizer!

Betim - 05 11 2019

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

PARI PASSU

PARI PASSU

Do mesmo modo qu'eu tenho temido
A atual devastação do pensamento,
Outros, também com bom discernimento,
Receiam a escalada do indevido:

Alguns radicalizam sem sentido,
Como se os carbonários do momento!
Concomitantemente, o sofrimento
Vem degradar o pobre em desvalido...

O vão, a par e passo co'o vilão,
Julgam poder calar toda a Nação,
Enquanto mais desdenham nossas leis.

Querem nos dominar pela ignorância,
Porém, tão-só demonstram a sua ânsia
De ordenar absolutos feito reis.

Betim - 04 11 2019

HORA PASSADA

HORA PASSADA 

A hora que passa em mim fica retida.
Inutilmente, pois, 'inda assim passa.
Como corpo sem alma, inerte massa
Passa vazia uma hora a mais havida.

Soma-se a horas passadas já da vida,
Essa hora minha sem graça ou desgraça.
Ao tédio, ela noigandres se me faça,
Ou ‘inda melhor, bilhete de suicida...

Não obstante, algo então me reconforta,
D’esse Nada retido à hora passada
Na minha só tristeza natimorta.

A certeza em passar é que me agrada.
Tê-la retida em mim pouco lhe importa,
Se sós somos, eu e a Hora, o mesmo nada. 

Belo Horizonte – 04 11 1996 

EM SIGILO

EM SIGILO

Não m'exponhas qual tonta pela rua
Tampouco me comentes os segredos.
Compartilhei contigo tantos medos,
Que a teus olhos sinto que estou nua...

Cala o que a tua fala me insinua
Entre culpas, gracejos e arremedos.
Afasta-te de mim longos degredos,
Antes de que me julgues ser de lua!

Mas guarda bem guardado no teu peito
Esse mal d'eu querer-te do meu jeito,
Ainda que não passe de ilusão.

E cuida que ninguém nunca conheça
Loucuras que me andam na cabeça
E amores que me vêm ao coração.

Contagem - 03 11 2019

INSÔNIA

INSÔNIA (rondel)

Agora é zero hora e um minuto: 
Hoje já é o amanhã de ontem...
Das horas o tique-taque escuto,
Embora seus chiados me afrontem.

Das horas o tique-taque contem
Aqueles momentos meus de arguto:
Hoje já é o amanhã de ontem...
Agora é zero hora e um minuto!

Das horas o tique-taque permuto
Por sonhos que me desapontam
Se comigo mesmo eu disputo.
Hoje já é o amanhã de ontem...
Agora é zero hora e um minuto!

Betim - 26 01 2019

CHEFIA

CHEFIA

Uns chamam feitor; outros, gerente...
Alguém que faz fazer o necessário
Para que se produza um numerário
Capaz de deixar tudo reluzente!

A meta é nos curvar indiferente,
Pois lhe valemos menos que o salário.
Não planejando nada, do contrário,
Teria-de pensar que somos gente...

Aliás, não pensa e quer que ninguém pense.
Prefere estar do lado de quem vence
Do que ficar do lado da verdade!...

E assim fazem carreira, prosperando.
Mas ao se olhar no espelho vez em quando
Parece que lhe falta humanidade.

Contagem - 03 11 2019




sexta-feira, 1 de novembro de 2019

COROLÁRIO

COROLÁRIO

Como bem se deduz, ao Infinito
Tendem as convergências dos olhares.
São pessoas de todos os lugares
Concordes em buscar o mais bonito.

No mais, pode haver ou não conflito
Acerca do que põem por patamares
Mais e mais elevados nos andares
Da Babel pós-moderna do inaudito.

A novidade! Sempre a novidade!...
Prefira-se o novíssimo à verdade
'Té arranhar os céus a imensa torre.

E como coroamento do edifício
Sobreleve-se o pináculo de ofício:
Antena que além-Deus tudo socorre.

Betim - 01 11 2019

VÓS E VÓS-OUTROS

VÓS E VÓS-OUTROS

Eis: Tudo o que vos digo, não desdigo.
Já não cuido se pior ou se melhor.
Eu nada obsto; não levo ao pormenor,
Tampouco em fantasias vos persigo.

Não tergiverso acerca do perigo
Nem oblitero indícios de terror!
A vós, como a vós-outros em redor,
Conclamo do mais novo ao mais antigo.

Tende para comigo bons augúrios,
Deixando para após vossos murmúrios
Visto que uns e outros têm suas razões.

Pois enquanto os discursos m'escutais,
Havereis de meu estro os cabedais
Para além de corretas opiniões.

Betim - 31 10 2019