domingo, 22 de março de 2020

MEIA IDADE

MEIA IDADE

Ali pelos quarenta, depois de a vida já ter dado errado, a gente percebe que coisas como carreira, relacionamento e status não nos levaram aonde pretendíamos. Ou melhor, suas promessas de felicidade e bem estar não se cumpriram. Chega uma hora em que se aceita que mesmo a realização de sonhos ou ideais não sejam mais o bastante.

Há uma certa melancolia no ar. Não é apenas a insatisfação de fundo a nos acompanhar feito uma melodia triste e lenta em cada coisas que fazemos ao longo do dia, mas a compreensão de que não somos tão bons quanto pensávamos e que isso sequer faz diferença. O mundo segue com ou sem a gente para aonde tem-de ir, como se fôssemos meros passageiros em sua trajetória espaço afora. Não mudamos o curso das coisas, apenas tentamos sobreviver, com muita dificuldade, a inundações, deslizamentos, erupções, sismos, tsunamis, carestias, revoluções, guerras, doenças e, agora, pandemias. Enfim, não é nada fácil existir…

Em todo caso, somos bilhões: Humanos. Não importa idade, gênero, etnia ou classe social todos atravessamos a existência com uma boa dose de inconsciência, aceitando o mundo que encontramos ao nascermos e transformando-o com nossas pegadas sobre a casca d'esse planeta singular que o Universo formou com a mesma indiferença que fez o desértico Marte ou gasoso Saturno. Aceitamos as coisas como são e tentamos mudar aquelas que abreviam os nossos dias. Por isso a transformação da natureza virgem em cidades e campos ou a edificação de habitats. Sim, tudo o que fazemos n'este mundo é transformá-los para podermos viver mais e melhor. Não sabemos bem por quê, mas é o que fazemos.

A noção de que todos lutamos por uma vida melhor está relacionada a tudo que temos feito na vida, não obstante se furte a qualquer racionalização. Ter mais não nos faz mais felizes do que ter menos. Dá um certo desânimo perceber que mesmo trabalhando todos os dias não viveremos melhor os próximos dez anos do que os dez últimos. Ao contrário, sem as ilusões que acalentamos de viver grandes experiências e realizar grandes coisas, o que resta é o quotidiano atravessado por infortúnios de quem se aproxima da velhice. Por via de regra, o ser de meia idade é um cínico que ri do amor, se protege do sexo e defende o governo. Sim, chegou a idade de ser bombeiro sem ter sido incendiário… Eu, de meu lado, aceito que seja assim. É um mistério, muito anterior a mim, esse buscar sobreviver a qualquer custo mesmo que não faça sentido. Eu me sinto desinteressado demais pelas pessoas para acreditar que esteja n'elas minha esperança. Não, não fico na expectativa de amores, orgias ou batalhas. Não me quero mais escravo da libido ou da adrenalina para suportar, prazenteiramente, o vazio da vida. Tudo me divirta, mas nada me possua.

A própria ideia de meia idade já expressa um padrão existencial no qual a vida consciente -- para a maioria, ao menos -- e projetasse até dos oito aos oitenta anos. Antes, a primeira infância com sua dependência extrema e identidade rarefeita. Embora impúbere, a constituição do Eu profundo que ensaia decisões e preferências estabelece o sentido de quem somos. Meia idade, portanto, é supor que se tem pela frente ao menos o tempo que já se viveu, descontados aqueles anos em que nós não éramos nós, sim o filho ou filha d'alguém. Quando ser filho se torna secundário, aquele que se é aflora com seu turbilhão de vontades e gostos pessoais até estabelecer uma identidade pela qual se é reconhecido. Sem embargo, chegar à meia idade é ser capaz de avaliar a caminhada feita e, a partir d'isso, avistar na distância o caminho à frente.

Se dissemos que a vida deu errado é porque todas as vidas dão errado. Ninguém chegou aonde pretendia quando planejou, lá no passado, o seu futuro. Mesmo que tenha conseguido muitas realizações, depois de vivenciar o sucesso, percebe-o relativo; insuficiente. O grande amor compartilhado se esvanece… O sucesso profissional torna-se um fim em si mesmo, escravizando… A sexualidade desprotegida leva ao anarquismo pessoal insustentável. Ali pelos quarenta anos tudo o que se quer é sossego! O grande amor é uma grande decepção? Dane-se! A carreira é uma corrida de cavalo atrás da cenoura? Que seja! Entregar-se a muitos é a maneira mais perfeita de não se possuir a si? Que a solidão nos traga a paz e o autoconhecimento! Repito: a vida já deu errado. Agora, o que me interessa são os lilases do entardecer e a lua surgindo sobre o mar. Não tenho dó de mim nem de ninguém. Usufruo da vida com a calma de Diógenes, passando ao largo dos deístas e seu pietismo opressor. Homem de meia idade, chego a um momento de perplexidade de quanto vivi. Na verdade, chamar isso de meia idade é quase um eufemismo optimista, dando a entender de que ainda há um segundo tempo para recomeçar tentando outras possibilidades. Eufemismos, como sabemos, suavizam civilizadamente os imponderáveis da vida... Não há segundo tempo, sim um incerto número de anos ao longo dos quais precisamos parar de seguir roteiros escritos por mãos alheias e procurarmos entender de que realmente precisamos para viver.

Consciente, não caio na armadilha de contar com os anos que virão como se fossem meus. Não, o futuro que me for concedido não me assegura possuir outros quarenta anos para existir. Vinte, dez, cinco, dois ou um ao menos. Não estou na meia idade porque tantos aos quarenta e poucos alcançaram a metade dos anos de suas vidas. Estou na meia idade porque já não me parece razoável olhar para frente com o mesmo olhar de entusiasmo e interesse que olhava quando tinha vinte e poucos anos. A vida, o que quer que tenha sido, já aconteceu.

Tampouco confundo meia idade com maturidade ou amadurecer. Se assim fosse, não haveria tantos coetâneos meus desesperados em parecer e agir como se vinte anos tivessem. Deveras, ter visto quatro décadas de transformações políticas, sociais e morais não capacita ninguém a ter-se como mais prudente do que os mais jovens. Ademais, não somos frutas ou coisa parecida para termos condutas mais razoáveis a essa altura da vida. Sem consciência de si ou do mundo, não faz diferença se se tem vinte ou quarenta anos: Apenas vivem para cumprir etapas dadas por outros

Meia idade ou idade média, meu momento é um segundo momento. Nada impede que minha história acabe abrupta; sem qualquer explicação. Enquanto estou vivo, todavia, procuro me divertir entre letras, minhas e alheias, na alegria de que não estou n'um certame intelectual ou coisa que o valha. Sou mediano e sou o primeiro a admiti-lo. Não cresci entre preceptores aprendendo línguas mortas e tampouco rodei pelas universidades e academias da velha Europa. Não emulei a autoconfiança yankee alavancada por montanhas de dinheiro e desprezo pela erudição. Sou mediano, mas não no meio do que quer que seja. Não sou mais que um brasileirinho fuleiro a escrever em língua portuguesa arrazoados sobre estar vivo com quarenta e poucos anos no início do Terceiro Milênio. Afinal, d'isso eu entendo algo.

Pensando bem, meia idade é apenas a idade em que o tanque de combustível da vida se encontra pela metade. Nada assegura que o auto vai durar até o tanque secar e interromper essa viagem de lugar nenhum para nenhum lugar. Não há interrupção, pois sequer havia destino desde o início. Ao morrermos, abandonamos nosso corpo-carro à beira da estrada enquanto outros carros passam indiferentes pela estrada. Não é -- e jamais foi -- estar no meio do itinerário da vida. Se este texto tem alguma utilidade pública é esclarecer isso: Não tomes como teus os anos que ainda não viveste. Meia idade não é o meio do caminho, apenas algo mais perto do fim do que o início.

Aceito meu tempo, minha idade e minha perspectiva.

Betim - 22 03 2020

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