terça-feira, 30 de junho de 2020

MALUNGO (no mesmo barco)

MALUNGO (no mesmo barco)

Tu, que também viveste o qu'eu vivi
Em meio à estupidez quase absoluta,
Viste que a resistência ainda é luta! 
Por isso que contigo resisti...

Mal-vindos desde Angola até aqui,
A única boa nova que s'escuta
É a que lhes perdoa a má conduta,
Enquanto escravizava a mim e a ti.

Malungo, meu irmão de travessia.
Coetâneo da desgraça inenarrável,
Sabes a liberdade já tardia.

Contudo, forçoso é sobreviver
Inobstante o que venha acontecer,
Fazendo a vida mesma memorável.

Betim - 19 04 1995





segunda-feira, 29 de junho de 2020

GAIATO

GAIATO

Feliz de ser quem sou, brinco com tudo.
Não me interessa mais se com razão.
O que não for verdade seja explosão!
Ou senão emoção em que me iludo...

Dizer é bem melhor do que estar mudo
Falar é expressar cada senão.
Tenho o mundo na palma aqui da mão
Como se agora espada e outrora escudo.

Eu falo porque já calei demais.
Mas decidi cessar de vez meus ais
À espera de que a vida valha a pena.

Se não valer, eu deixo estar e ser
Na fé de por si só se resolver 
A dor que me revele uma hora plena!

Betim - 29 06 2020

PALEOCRISTÃ

PALEOCRISTÃ

Foi depois de Cristo e antes dos cristãos
Que dizem ter havido aquela igreja,
Que santa e verdadeira se deseja
Face a comunidades entre irmãos.

Guardando a Boa Nova dos anciãos,
Que ouviram Jesus (onde quer que esteja!)
Fora o povo reunido que se almeja
Aos séculos dos séculos malsãos…

Com efeito, restou como utopia
Essa espécie de inocente primazia
D'onde se minerava apologéticas.

Pois voltam sempre a igreja das origens
No afã de lhes buscar velhas vertigens,
Requentando as crendices mais patéticas!

Belo Horizonte - 15 09 1999

MIASMAS

MIASMAS

Os eflúvios noturnos d'ares sujos,
Oriundos d'uma cloaca pantanosa,
S'espalham pela noite tormentosa
No visco de nojentos caramujos.

A tasca nauseabunda do marujos.
Empesteia a ribeira onde andrajosa
Alguma sifilítica 'inda goza
Outro cancroso amor co'os ditos cujos.

O zunido voraz dos pernilongos
Lhes ressoa à cabeça em hora vária
Ao banzo de lembrar distantes Congos...

Vem mosquitada vindo temerária
Por mundo afora pelos cais oblongos,
Febre amarela, dengue e até malária.

Betim - 29 03 1994

sexta-feira, 26 de junho de 2020

MARTÍRIOS

MARTÍRIOS  
 
Mil vidas eu tivesse, mil daria!...
Viver por um amor que acolhe e cuida,
A despeito de quanto ao redor ruida
A multidão raivosa em boataria.

Mil mortes se sofresse, eu sofreria
Na fé de que a memória seja fluida 
E segredasse os factos que descuida 
Ao esquecer do que nunca falaria.

Confesso que vivi -- parafraseando
Outro poeta que amou e que viveu
Passando por martírios quando em quando --

Dizei de mim: D'amor ele morreu...
Morro, porém, mil vezes duvidando
D'alguém que tenha amado mais do que eu.  
 
Betim – 20 10 1996  
 

quarta-feira, 24 de junho de 2020

ANEURISMAS

ANEURISMAS

Sinto fisgadas sob a minha testa,
Bem na artéria que irriga atrás das vistas...
Mais íntimos que ideias intimistas,
Pulsam com uma fúria algo funesta.

Assim a má saúde manifesta
Uns seguidos espasmos arrivistas,
Que dentro da cabeça deixa pistas:
Aguilhão que vez ou outra me molesta.

Oscilo entre a revolta e a indiferença
Dos males que abreviam os meus dias
Como alguma fatídica presença...

Sempre à espreita nas minhas agonias,
A morte se derrama em noite imensa
Por dentro da cabeça em ondas frias!

Betim - 23 06 2020

terça-feira, 23 de junho de 2020

REENCONTRO

REENCONTRO

Talvez um dia, andando pela rua,
Reconheça teu rosto d'entre os rostos.
Sem ver que descaminhos; que desgostos,
Fizeram minha mão soltar a tua.

Ou senão n'uma noite de alta lua
Meu coração se aperte entre supostos
Devaneios de sonhos sobrepostos
Aos recordos que a mente em vão cultua.

D'um modo ou d'outro, sei que vou voltar
Ao dia antes do dia de te achar,
Quando te pressenti que chegarias

Então, não cuidarei se sim ou não.
Tão-só estenderei a minha mão,
Na fé que por te amar tu me amarias.

Betim - 23 06 2020

domingo, 21 de junho de 2020

LANÇA-CHAMAS

LANÇA-CHAMAS

Teus olhos, duas chamas incendidas,
Ardem amendoadas com tal flerte,
Que sinto o peito arder tão-só em ver-te
E o corpo todo em chagas malferidas...

Olhas-me com promessas conhecidas
De prazeres ao andar solta e solerte.
És aquela que apenas se diverte,
Ardendo-me em paixões enternecidas.

Lança tu sobre mim os teus amores
E faze-me queimar com tais ardores,
Que nada reste mais a me perder.

Chama-me pelo nome com teus olhos
'Té que não sobre mais sequer restolhos
Do fogo que me mata de prazer.

Betim - 23 03 2020

INCONFIDÊNCIAS

INCONFIDÊNCIAS

Dizes exacto o qu'eu queria ouvir,
Desentendendo tudo quanto falo.
O tempo que perdi, fui encontrá-lo
Nas verdades que soube te mentir.

Nem tudo foi em vão, hás-de convir:
Dois conjurados -- não sem grande abalo --
Caímos, um por um, logo ao badalo
Do sino d'uma aurora sem porvir...

Segredos revelados em desvelo
A vista já de todos no atropelo
Da devassa que expôs os nossos sonhos.

Seguimos, duas almas degredadas,
Co'os olhos em longínquas madrugadas
Por anos tão saudosos que tristonhos.

Betim - 21 06 2020

sábado, 20 de junho de 2020

FEITO DOIDO

FEITO DOIDO

Admito que converso com ausentes,
Dizendo quanto não ouso falar.
Como fosse um actor contracenar
Falas consigo mesmo intermitentes.

Trago comigo como se presentes
Aqueles que sequer vão m'escutar.
Mas, se acaso me veem gesticular,
Passo como mais um entre os dementes...
 
O que não sabem é das borboletas
Que voejam, doidivanas e inquietas,
Em derredor de mim enquanto falo.

Angústias?! Todos nós as temos sim.
E andando feito doido, assim assim,
Xingo quem tem pisado no meu calo!

Betim - 20 06 2020

sexta-feira, 19 de junho de 2020

É, UÉ!

É, UÉ!

Não. Não é porque tenha de existir
(Para tantos...) que Deus de facto exista!
Ser preciso haver Deus não lhe conquista
Um lugar no passado ou no porvir.

Existindo, só fez nos assistir
Uns milênios de História pessimista.
Mesmo tendo o Universo todo em vista,
Menos há a habitar que confundir...

Mistério... Se existir, Deus é mistério
Não explosão de nêutrons no sidéreo
Há muitos anos-luz da Humanidade.

Tampouco algum senhor de barbas brancas
Que n'um "faça-se luz" a horas francas,
Real ou não fez haver a realidade...

Betim - 19 06 2020

quinta-feira, 18 de junho de 2020

TABUADA

TABUADA

Quantas vezes eu fui eu?
E quantas tantas não fui?...
Qual colunata que rui
Em templo que se perdeu
Quanto a memória dilui:

Tábua de números vãos,
Minha vida é repetir
Várias vezes no existir
Nos dedos de minhas mãos,
Contando cada devir. 

Fui quem eu tinha-de ser;
Sou quem soube me tornar.
Tabela a se decorar,
Conto até não mais poder
Quanto fiz multiplicar.

Aritmético, eu me vejo
Sempre em conflito comigo:
Vezes ou versus, persigo 
Meu ser imerso em desejo
Sem nunca encontrar abrigo.

Pois recito, igual rosário,
Os números encontrados!
Como se mantras sagrados
Mudassem destino vário
Com os mesmos resultados...

Betim - 17 06 2020

quarta-feira, 17 de junho de 2020

MUTATIS MUTANDIS

MUTATIS MUTANDIS

O mundo tudo muda ao seu humor,
Como a bela entre a dança e a contradança...
No mundo, o que não muda é a mudança,
Seja para melhor ou para pior...!

Mudando o que se deve, ao meu redor
O mundo todo muda na lembrança.
Ou melhor, eu que mudo de esperança.
Face a quem sem mais me nega amor.

Aquela que me amou não ama mais,
Pois, bela e desdenhosa de meus ais,
Dá voltas como o mundo em torno a si.

Ela mudou de ideia e de vontade
E agora, oferecendo-me amizade,
Fez o mundo mudar qual nunca vi!

Belo Horizonte - 06 06 1995

MÁQUINA DE FAZER DOIDOS

MÁQUINA DE FAZER DOIDOS

Olá amiguinhos, tenho certeza de que, como eu, temos parafusos a menos. A culpa não é vossa; é d'este mundo cão. Há certo método nas engrenagens do sistema que nos esmaga feito cana na moenda. Todo o tempo algo nos põe para baixo por não sermos melhores, maiores ou mais. E fingimos acreditar que precisamos do que não precisamos... Ou precisamos? Temos um sistema incrível que remunera muito bem os inovadores, ainda que sejam só promessas de sucesso: "No mundo, o que não muda é a mudança." -- Diria Heráclito se por minha boca afrolusoamericana... -- onde a contínua transformação das pessoas e das coisas se oferece ao olhar. Em oposição ao dinamismo dramático que experienciamos em nossas vidas, toda tentativa de descrição de "um mundo melhor" descamba n'alguma forma de utopia pessoal ou paraíso sobrenatural que se caracterizem pela solução definitiva de problemas coletivo como a desigualdade social, em particular, as diferenças humana, em geral. Repare-se que em contraste com o mundo real, o mundo melhor desejado, n'esse plano existencial ou n'outros, é estático e estável: Cada coisa tem o seu lugar e toda a ordem estabelecida espelha alguma desordem inerente à realidade. No céu judaico-cristão, por exemplo, não consta haver pobres e ricos, servos e servidos, árabes e hebreus... Apenas bem-aventurados, i.e., pessoas que se mantêm em amizade com Deus. Portanto, todos são amigos entre si e suas diferenças foram sublimadas pela graça divina. Não há conflitos e todos são felizes pelos séculos dos séculos como se eternos anjos imberbes e de púbis liso. Embora filósofos e teólogos de grande erudição tenham deixado profundos escritos tentando fazer sonhos como os descritos pelas religiões fazerem sentido, o facto é que o mundo melhor se mostra, por via de regra, como uma realidade acabada sem interferência humana, logo, não histórica. Não progresso, evolução, transformação ou coisa parecida no mundo melhor, apenas a perfeição que brotou do Verbo Divino.

O mundo em que vivemos, por outro lado, parece se furtar a qualquer tentativa de estabilidade. Religiosos ou não, todos admitimos viver n'uma realidade hostil e complexa. Viver em coletividade nos obriga a um eterno debate sobre o que é tolerável e o que não é. Tolerável, não certo absoluto! Estabelecer regras mutáveis para a vida em sociedade expressa justamente o que as pessoas que integram aquela sociedade são capazes de tolerar ao interagirem. Submeter-se ao Pacto Social é uma tarefa tão difícil que não poucos optam pela marginalidade, pela clandestinidade ou mesmo pela misantropia. Sim, são indivíduos que não conseguem se adaptar à máquina do mundo e suas regras civilizatórias -- isto sem qualquer juízo de valor sobre as referidas regras -- colocando-se em franca oposição ao mundo que o cerca e as sociedades que o habitam. Não obstante, a grande maioria das pessoas aceita (conscientemente ou não) as regras do trato social e se civilizam para existirem submissos à ordem coletiva.  N'outras palavras, "aceitam o Universo", como ironizou Aldous Huxlei em CONTRAPONTO.  Ou ao menos tentam aceitar esse Universo que se move indiferente à vontade do indivíduo e mesmo contra este. A máquina do mundo gira sem se importar em como nos sentimos enquanto pressionados por suas engrenagens. É por essas e outras que a Educação tem sido, em última análise, não um processo para o desenvolvimento de consciências, mas sim para a aquisição habilidades úteis. 

Isto posto, observemos o humano contemporâneo: Serzinho minúsculo em face d'um Universo imenso, cada indivíduo é treinado desde a primeira infância para se integrar ao sistema que tem permitido a existência -- não sem grandes tragédias aqui e ali -- de sete a oito bilhões de serzinhos semelhantes. Para ingressar na máquina do mundo, o indivíduo aprende a se comunicar e a resolver problemas acerca de suas demandas básicas existenciais -- habitar, comer, beber, ter prazer sexual, confraternizar... Somente definidas as necessidades do indivíduo é que este passa a buscar uma actividade que lhe permita obter o que precisa para viver em conformidade com as regras estabelecidas pela coletividade. Ou seja, trabalha para viver, não o contrário. Depois de milênios onde essa questão era sequer colocada em função da urgência de se sobreviver com tecnologias muito limitadas a demandar antes braços do que cérebros, vivemos um tempo no qual todos somos estimulados por associações neurológicas -- quer química; quer psíquicas -- a oferecermos o máximo possível de nós para o sistema que permitiu o superpovoamento do Planeta. Sistema esse que se caracteriza pela superprodutividade demandada pela compulsão de objetos de desejo. Ser humano, hoje em dia, é ser consumidor, ou melhor, quem não consome se sente como se não existisse de facto. A tese que se defende no presente texto é de que essa ansiedade a qual o indivíduo é continuamente submetido para consumir mais e mais faça d'ele um eterno insatisfeito consigo mesmo e com sua vida. Por quê? Por causa da contínua promessa de prazer e felicidade oferecida pelo sistema que associa ao conforto material a importância existencial do humano contemporâneo. Promessa essa eternamente adiada. Nos poucos pódios do mundo, a Máquina de Fazer Doidos oferece vencedores diariamente para o aplauso da massa e o vexame dos que não chegaram sequer perto de se destacar. Os perdedores, aqueles que ninguém quer ser, são a maioria. Há poucos lugares no topo e esses têm a visibilidade que dá credibilidade ao discurso continuamente oferecido aos ansiosos da sociedade de consumo: Uma vida que vale a pena viver é aquela que os vencedores vivem... Viagens em primeira classe, hotéis cinco estrelas, jatinhos particulares, carros esportivos, a companhia de mulheres belíssimas, vida noturna agitada, descanso em praias paradisíacas... Sim, o prêmio dos deuses aos primeiros lugares do pódio. 

O problema, no final das contas, é que a loucura pandêmica com a qual lidamos todos os dias advém do ódio à pobreza que a Máquina introduz em nossas mentes n'uma hipnose contínua. Tudo ao redor parece nos dizer que não ter dinheiro é inadmissível. Ninguém será interessante se não apresentar a todos os objetos de desejo que expressem o sucesso dos vencedores. Não importa o quanto sua arte, ciência ou filosofia sejam profundas, o que vale é o preço de venda. Poetas vendem por tuta-e-meia textos que os leitores só admitem ler de graça. A conta não fecha. Logo, poetas são alternativos a esse mundo de barganhas enquanto eternos miseráveis da arte; da literatura. A Máquina despreza miseráveis. Quem não aprende um meio de fazer dinheiro torna-se invisível. Por resto, o pobre perdedor passa a ter ódio de si mesmo, n'uma cobrança depressiva que activa o mecanismo de autodestruição do indivíduo. Círculo vicioso: Álcool, drogas e promiscuidade não por diversão, antes por lento suicídio. A Máquina de Fazer Doidos, a máquina do mundo, engatilha em nossas mentes a ideia de que se não somos vencedores, não somos nada. Forçoso lutar todos os dias com esse estado de coisas e se aceitar. Sem aceitação de si e suas eventuais limitações, derrotas ou confusões, a máquina do mundo assume a nossa cabeça e nos conduz para o profundo desprezo pela vida e insatisfação consigo mesmo. 

É preciso desligar o mecanismo de autodepreciação.

É preciso criar pelo prazer de compartilhar.

É preciso valorizar o que não tem preço. 

É isso.

Betim - 17 06 2020

segunda-feira, 15 de junho de 2020

YBY MARÂ-E’YMA

YBY MARÂ-E’YMA

Sem males era a Terra Afortunada
D'aqueles que sonharam para Além...
Ao receber quem finda a caminhada
E então, parte da Terra, lhe sustém.

Uma Terra por matas adornada,
Onde por sobre o vento em vai-e-vem.
E os espíritos têm sua morada, 
Gozando dos primores sumo bem.

Sem espada nem cruz ou encruzilhada
Que morte e cativeiro em si contém.
Uma Terra antes mais imaginada
Do que terras onde o ouro faz refém.

Sem fome nem moléstia nem mais nada
Que faça esmorecer ainda alguém.
Uma Terra entre as terras procurada,
Que a Bem-Aventurados mais convém.

Os homens verdadeiros pela estrada
Das estrelas seus marcos longe veem,
Deixando para os outros a picada
Que através das florestas os provém.

Mas a terra-chão, essa ora habitada,
Entre conflitos, dores e desdém,
Seja com mais sangue enfim deixada
Àqueles que com sangue s'entretêm.

Pois a Terra-Sem-Males desejada
Somente a quem dos males já se abstém:
Por cá vivendo em paz toda a jornada,
Por lá vivendo em paz será também.  

Betim - 15 06 2020

domingo, 14 de junho de 2020

O INUSITADO

O INUSITADO

Movo-me sobre as pedras da avenida
Co'o dia a repetir-se p'la frente,
N'um quotidiano quase indiferente
Do que faço eu ou não de minha vida.

Sem a poesia alhures escondida,
Em vão seria a marcha do presente
Ao menos uma imagem surpreendente
Faça brilhar meus olhos sem guarida:

O inusitado arranjo das ideias
Hei por matéria-prima de meus versos,
Ao largo das malsãs prosopopeias.

De sorte que uns escritos controversos
Apresente ao silêncio das plateias
Pelos lumes que achei por aí dispersos.

Betim - 13 06 2020

TUTA-E-MEIA

TUTA-E-MEIA

Aqui, lá e acolá quis ritmopeias
Que me valessem mais do que poesices...
Sempre me questionei as sabujices
De quem prefere as formas às ideias.

Mas penso que, a despeito das plateias,
Me furte de escrever outras mesmices,
A lhes alimentar as vãs crendices
Ou entreter com infindas odisseias.

Esse meu muito-pouco-quase-nada
Vendo por tuta-e-meia a quem de graça
Procura ao coração uma jornada.

Pois de quanto a poesia me perpassa,
O que não tem preço é fava contada
D'aquilo que em minh'alma se devassa.

Betim - 14 06 2020

sábado, 13 de junho de 2020

VIUVEZ

VIUVEZ

Espero na distância algum alento
Para a imensa saudade que m'envolve.
O que vivi contigo agora volve
N'esses campos varridos pelo vento.

Se por tão entranhado sentimento
Nem o passar dos anos mais resolve,
Tampouco teu olhar então me absolve
Das minhas soledades sem conteto...

Foste aonde eu jamais haverei-de ir,
Visto que és anjo d'asas envergadas...
Prontas para voejar sobre o existir.

Quanto a mim, tenho as asas alquebradas.
Incapaz que já fora em te seguir,
Eu vivo a t'esperar nas madrugadas.

Betim - 12 06 2020

sexta-feira, 12 de junho de 2020

ENAMORADOS

ENAMORADOS

Ainda fresca a tinta do soneto,
Entrega à sua amada a fina escrita.
Ela lê d'olhos baixos, mas se agita
Surpreendida pelo último terceto.

Ali revela quanto houve secreto
O amor que até então foi só desdita.
E, n'um fecho que airoso ele acredita,
Lh'entrega a sua vida por completo...

Ela olha nos seus olhos e sorri.
Com um amor que não cabia em si,
Oferecido inteiro n'um só beijo.

Inúteis quedam já bombons e rosas,
Em face d'essas rimas amorosas
A uns olhos fascinados de desejo.

Betim - 12 06 2020

terça-feira, 9 de junho de 2020

HORAS MORTAS

HORAS MORTAS

Tem horas em que nem a hora passa;
Em que passo pensando no passado.
Eu posso passar horas n'este estado,
Olhando a escuridão pela vidraça.

A noite morre sem que o dia nasça,
Enquanto o coração espedaçado...
O espaço-tempo paira ali parado
E o presente ao passado em mim s'espaça.

Ruas vazias; luzes apagadas...
Uma hora de absoluta soledade
Em meio a reflexões amarguradas.

O passado não passa...! Tudo evade:
Em horas mortas tão cheias de nadas 
Encontro a minha extrema nulidade.

Sapucaia do Norte - 28 02 1993

segunda-feira, 8 de junho de 2020

RESSACA

RESSACA

O vinho amanhecido sobre a mesa
Transluz pela garrafa esverdeada
Outra desilusão silenciada
Em súbitos transportes de tristeza.

Isto tudo tem lá sua beleza,
Quando pela cabeça transtornada
A lassidão confusa da jornada
Espraia-se em dor; delicadeza.

Deveras, eu estou muito sensível
E entendo tanto quanto for possível
A natureza morta à minha frente:

Uma garrafa e um cálice vazio
Parecem transcender em desvario
Tudo aquilo que passa pela mente.

Betim - 08 06 2020

ÁGUAS SERVIDAS

ÁGUAS SERVIDAS

Das barbacãs do arrimo uns lagrimais
Merejam, gota a gota, d'entre lodos.
Se até as rochas choram, quantos modos
Não temos de verter os nossos ais?

Os olhos marejados, tais e quais,
Escorrem pela face sem engodos,
Mostrando o que se sente para todos,
Como do coração mananciais...

Estas águas que servem de lavar
Por rochas e por olhos a levar
Embora tanto nódoas quanto mágoas! 

Ao lavar e levar, quedam servidas
As águas através de tantas vidas;
As vidas através de tantas águas.

Betim - 08 06 2020

EM BANHO, MARIA

EM BANHO, MARIA

Desejo que me banhes tu, Maria.
Que me ponhas em banho de banheira
E me dês sob as águas mais canseira,
Do que a que em tua cama sofreria.

O banho que desejo poderia
Lavar-me corpo e alma da sujeira,
Que levo de segunda à sexta-feira
Longe de nossa vã patifaria...

O cheiro d'outras damas que te enoja
E tantos que me adentram pela loja
Deixando-me suores e deveres...

Pois depois d'essa faina em que me vi,
Maria, esteja eu limpo para ti,
Para de mim gozares os prazeres!

Betim - 07 06 2020

domingo, 7 de junho de 2020

UM CORPO HUMANO

UM CORPO HUMANO

1° ROUND
Eu sou um corpo humano levando porrada.
Um corpo, humano, se ferrando e envelhecendo.
O supercílio cortado jorra sangue do olho inchado,
borrando a visão do que me cerca,
enquanto resisto em pé, trocando as pernas.
Abraço o adversário e o empurro contra as cordas,
mas o soco, de baixo para cima, não encaixa…
O gongo soa finalizando meu estupor.

2° ROUND
Eu tenho um grande plano, eu sei: Ficar de pé!
Tenho de me manter longe dos golpes; rodar o ringue.
Olho em seus punhos e traquejo… Nunca se sabe
D’onde vem a próxima porrada.
Ataca. Recua, Avança, Defende, Guarda posta.
E respiro, respiro, respiro, respiro…
O gongo soa sem me dar por conta: 
Desabo no tamborete do canto.

3° ROUND
Agora ele vem, como uma máquina, ele vem.
Troca golpes como se de aço os punhos… 
Acto contínuo, gingo e golpeio, mas apanho.
O corpo que sou fala em minha mente: Basta!
No entanto, é a ausência de consciência que me derruba
Quando um golpe d’ele, afinal, encaixa.
D’um instante para o outro, estou no chão. Abrem contagem.
Ponho-me de pé, assustado.
Ele me estuda o estrago e sorri.

4° ROUND
De repente, não estou no ringue com o outro: É o Fado!
Que troca socos comigo e me derruba.
Brinca com minha estratégia de saco de pancadas e me cansa
Como se eu fosse um gatinho em suas mãos poderosas.
Está lá, ameaçador, a cada instante
Cioso de ter nas mãos o golpe fatal.
Espera, sabe-se lá porquê, o tempo propício
Para me levar à lona outra vez. Nem disfarça mais
A força que exibe face a meus passos.
O gongo bandala e ele me olha, adversário.

5° ROUND
Pedem-me para jogar a toalha. Eu lhes pergunto:
 — “Que diferença faz?!”
Sou algo físico! Um ser físico! Um corpo humano!
Levanto minhas carnes. Cambaleio no vazio.
O outro saboreia minha caminhada sem prumo…
Assim o Fado: Desgasta-nos. Pune-nos. Surpreende-nos.
N’um combate desigual, pois, não morre ele.
Ele me atravessa, incólume, a existência.
Nada do qu’eu faça o alcança.
Nada o diminui ou afasta.
Ele joga comigo, titereiro alegre, a seu bel prazer.
Até que se canse e me aniquile:
Na lona, outra vez, para não levantar!

Temos um vencedor.

Betim — 07 06 2020

NO GARGALO

NO GARGALO

Eu viro uma garrafa na garganta,
Embora o álcool ardente pelas ventas.
Minha mente em angústias desorientas
Enquanto a tua face se agiganta...

Com certeza algo tem de sacripanta
Essas desilusões ultraviolentas
Nas culpas que, terríveis, me acrescentas
Em meio à embriaguez que me ataranta. 

Bebo, como homem vil, noites a fio.
E agradeço, admirado, o desvario
D'olhar pela janela a noite imensa.

La fora, uma cidade inteira dorme
A despeito d'ameaça enorme e informe
D'uma emoção que dentro jaz intensa.

Betim - 07 05 2020

sábado, 6 de junho de 2020

GLOBAL

GLOBAL

O Globo que manténs na escrivaninha,
Co'os Continentes mais os Oceanos,
Parecia chamar-te a grandes planos,
Quando a ira do Mercado te convinha...

Se uma cultura d'outra se avizinha,
Romanceias o encontro em desenganos:
O Capital avança sobre humanos,
N'uma ambição tamanha que mesquinha.

O irônico é que nada d'isso importa,
Quando o luxo e a opulência dos senhores
Se mostra outra esperança natimorta.

Pois não há real progresso entre terrores...
E os genocídios que ousas descrever
Ao mundo em tua mesa faças ver!

Betim - 06 06 2020

quinta-feira, 4 de junho de 2020

DE MADRUGADA

DE MADRUGADA     

Vagos acordes de música distante
Ecoam pela noite em solitude.
A serração mais densa mais ilude
Em fantasmagoria horripilante...

Não há lua. Nos altos, vento uivante
Enregela mesmo a alma agreste e rude,
Até que o céu de estrelas se desnude,
Se aerólitos chovendo d'um radiante.

Agora, parte mais da Via Láctea
A noite na imensidão quase galáctea,
Enquanto o Orbe em ciranda co'as estrelas. 

Através das liríades formosas,
Os deuses anunciem, extremosas,
As luzes de astronômicas procelas...!

Belo Horizonte - 20 08 1999

quarta-feira, 3 de junho de 2020

SABER POÉTICO

SABER POÉTICO

Às vezes me pego discutindo sábios, como se eu fosse um também. Não sou. Respeito muito aqueles que alcançaram grandes luzes e, mediante muito esforço intelectual, passaram do estado em que se dedica a sabedoria alheia e se arvora a si mesmo propositor de saberes e sabedorias. Não me encontro entre os segundos e mal me encaixo entre os primeiros: Estudo, aprendo, escrevo... Não apresento ao incauto leitor que se depara com meus alfarrábios a ilusão de que haja um sábio ditando as palavras ali escritas. Não mesmo. Não ofereço conhecimento em versos, apenas poesia. E o que poesia se não oferece saber? Penso que poesia seja uma forma de escrita que se exige peculiar. Diferente da prosa, o pacto de comunicação exigido com o leitor mostra-se de natureza por vezes idílica e por vezes comparativa, mas nunca apenas literal. O poeta oferece textos que não têm necessariamente utilidade como receitas de bolo ou manuais de equipamentos...

Em tese, ler ou não ler um poema não faz qualquer diferença na vida de ninguém. Ninguém se torna doutor em nada lendo frases em estrofes, com rima ou não. Não há mérito em se conhecer a obra de poetas como há em se conhecer filósofos ou cientistas. Não há mesmo. E isso não é demérito para o poeta, pois, o texto poético é de outra natureza. Mesmo quando defende ideias nos versos, há-que se considerar que, em poesia, mais importante do que a lógica e o sentido das palavras é o efeito que causam. Há quem entenda poesia como uma espécie de caçada de calembures, ou melhor, a busca por trocadilhos sonoros e gráficos que façam sorrir pelo inusitado. Muitos autores são notórios achadores de jogos de palavras, criadores de sonoridades herméticas ou rimadores inusitados. Sabe-se lá porquê, esses efeitos especiais do idioma fazem brilhar regiões especiais da massa cinzenta que nos comanda o corpo inteiro e nos chama a atenção.

Além de fingidor, o poeta é um excêntrico. É alguém que foge do destino comum de fazer dinheiro, obter boa fama, cuidar da saúde e viver confortavelmente para, pasmem, escrever textos "que digam algo a alguém". Não basta contar histórias que entretenham o público por alguns dias, como pretendem os romancistas e mesmo os roteiristas (esses sim, hoje em dia, bem remunerados). Não, o poeta, com raras exceções, não quer tomar mais do que alguns minutos do tempo do leitor... Quer apresentar seu "achado" dentre as douradas possibilidades do idioma para que a alma; ou a consciência ou coisa parecida, se enterneça do que lê e sinta, eventualmente, o prazer que sentiu o excêntrico poeta diante do inusitado descoberto, visto que entre rococós e rebuscamentos algo além do significado das palavras se transmite. Repare-se que é justamente n'esses pequenos nadas que o tradutor trai o autor, revelando que aquele efeito é algo limitado a um público e se vernáculo.

O saber poético, dito isso, mostra-se o conhecimento das peculiaridades do idioma aproveitado para tornar incomuns os textos que se diagrama em estrofes. Embora entenda que quem se expressa com métrica, ritmo e rima explicite seu desejo de ser lido como poesia desde a primeira linha, forçoso é admitir que muitos alcançaram a atenção poética do leitor sem se valer d'estes artifícios. Em verdade, a forma por si só não confere ao texto o estatuto de poético. A rigor, texto poético é aquele que acompanhava a melodia de canções curtas na Baixa Idade Média... As formas poéticas herdam esse malabarismo textual que é escrever com artificialismo de frases rimadas entre si no momento em que os músicos -- cada vez mais reconhecidos nas cortes europeias -- passaram a escrever peças para suas orquestras sem necessidade de textos para a vocalização de cantores... Quando a música de corte passa do popular para o erudito e se manifesta como expressão de sofisticação, riqueza e poder d'um senhor e sua casa, a poesia sobra como texto incomum cultivado por letristas sem música para pôr letra... Se a poesia dos Cancioneiros é basicamente letra para música de trovador, a poesia dos Quinhentos, entre a medida nova e a medida velha, são letras para formas fixas sem música.

Dir-se-ia que tanto os músicos quanto os poetas obtiveram mais liberdade expressiva com esse divórcio, mas o facto é que esse movimento é sobretudo elitização artística, visto que a música popular continuou existindo com letra e música. É a música erudita e a poesia humanista que se afastaram dos folguedos populares na ânsia de alcançarem públicos cultos o bastante para lhes perceberem as subtilezas. Camões escreve para o rei e seus fidalgos, não para a marujada. Bach escrevia para outros músicos a soldo de banqueiros, não para os beberrões do mercado... O problema é que a música popular não era registrada como eram a música erudita e a poesia aristocrática. Sobretudo por isso que o desenvolvimento da poesia e seu território de saber se tornou cada vez mais literário, logo, mais próximo dos prosadores de crônicas de gazeta e dos contadores de histórias publicados em livros do que dos cantadores populares cujas letras simples tendiam para os refrões mnemônicos acompanhados d'um violão e um tamborim. Não é de se surpreender que no século XIX já se observe certa tendência para se fundir poesia e prosa n'um só território, i.e., o literário. Entendendo-se, vale dizer, literária como uma expressão mais sofisticada da escrita em oposição aos textos técnicos e jornalísticos.

Na verdade, essas distinções conceituais acabam não dizendo muito: Se tudo for poesia, nada será poesia... O saber poético propõe-se como um filtro diante da realidade. Ver as coisas d'este mundo sem a objetividade do cientista ou a especulação do filósofo. Ver sem se contentar com o lugar-comum dos letristas de canções populares (obcecados em agradar o público!). Ver sem se preocupar com o rótulo de literato-grande-escritor que não lhe auferem para abstrair da existência uma dúzia ou mais de versos que se possa ler em paz. 

Betim - 03 06 2020