sexta-feira, 30 de novembro de 2018

EM NEGAÇÃO

EM NEGAÇÃO

Quem não faz nada nunca por ninguém
Parece negar a outrem a verdade
De que não há qualquer necessidade
De tratar tudo e todos com desdém.

Apenas o que mais se lhe convém
Faz, fazendo valer sua vontade:
Negada e renegada a liberdade,
Pois sempre d'olhos fitos para o Além.

Ainda que uma esperança assim conforte,
Vê estes que têm a alma malferida,
Como se nada nem ninguém importe.

Vivendo alheios à alheia dor vivida,
Já não em negação de sua morte,
Mas sim por negação da própria vida.

Betim - 30 11 2018

ANTIMUSA

ANTIMUSA

Ordinária! Tu não vales
Do que comes nem o angu!...
Leva contigo teus males
Ou senão os põe no cu!

Sim: No teu que é mais redondo!
Se te doer, passa pomada...
Diz que foi um marimbondo,
Que te pôs descadeirada.

Vai chupar prego, vadia, 
Até que vire tachinha!
Pagar pau dia após dia,
Que não passas d'uma zinha!

Tem de pôr fé n'essa zorra:
Puta formada pela USP!
Quando toma muita porra,
Engole tudo sem cuspe.

Vai te foder, boqueteira!
Eu sei bem o tu que fazes...
Pondo chifre à noite inteira;
De manhã fazendo as pazes!...

Olha, p'ra mim já deu. Vaza!
Volta p'ra quem te comeu...
Não quero ver n'essa casa
Nem sequer um cisco teu.

Aliás, só me incomoda
Uma coisa em tua merda:
Foste tonta a vida toda
Ou só te fazes de lerda?!

Betim - 30 11 2018

SINGULARIDADE

SINGULARIDADE

Surrealizo os teus olhos feito estrelas
E atravesso as galáxias de teu verso...
Pelas letras, recrio outro Universo
Onde estás bem no centro das querelas!

Em fuga, duas linhas paralelas
Reúnem no infinito o haver disperso.
De modo que contigo desconverso
Sobre eu ser lar de múltiplas janelas.

Espaço-tempo d'um buraco negro
De cujos mil megatons me desintegro,
A ponto de deformar matéria escura.

E mesmo a luz se curva ora atraída
Àquela gravidade desmedida
Que bem dentro de ti se transfigura.

Betim - 29 11 2018

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

BACANÁLIA

BACANÁLIA -- "Evoé, filhas de Baco! Vós que haveis Dos mistérios do vinho as sábias leis; E do êxtase divino! Sede afinal bem-vindas! Adentrai A ensinar-nos o poder de vosso pai Sobre os vãos do Destino." "Alegrai-vos e alegrai-nos, todavia, Antes que nos retorne a luz do dia A revelar excessos. Concedei, embriagadas de luxúria, Vossas bocetas húmidas em fúria A devassos confessos!" "À maneira de ninfas seminuas, Vinde nos receber carícias cruas De cada rude mão. Visto que, indiferente de quem toca, Sabeis por fim deixar de boca em boca Do Deus Baco a ilusão." "Entretidas também com nossos sexos, Vêm deixar-nos malucos e perplexos Vossas habilidades: Deveras, com total desembaraço Levais um após outro pelo braço, Tomando liberdades..." "Depois de saudação tão eloquente A vós me apresento tão-somente Como vosso anfitrião. Vós-outros, companheiros de gandaia, Peço antes que das belas cada alfaia Vede se sim ou não." "Com efeito, aqui mandam as bacantes! Elas conduzirão, por delirantes, As artes do prazer. Aquele que as ferir ou molestar, O quanto antes nos deixe este lugar E após vá se foder!" "Elas, o que quiserem faço lei. Pois d'elas sou escravo, nunca rei, Durante esse festim. Em honra do grã-deus que em vinho adoro A vós, Filhas de Baco, eu vos imploro, Que reineis sobre mim..." "Trazei para estes prados os delírios Em procissão d'archotes e de círios Por sob a lua plena. Em pele de pantera ou de tigresa, Às forças seminais da Natureza Buscai na noite amena." "Coroadas de grinaldas d'heras verdes, Sois rainhas a fazer o que quiserdes N'essas lides d'amor. Tirso em punho, ordenai a bebedeira Jorrando o doce sumo da videira A nos dar mais ardor." "Mênades desejosas! Sabei qu'eu Não quedo lamuriento feito Orfeu, Embora também poete. Vinde me devorar, mas de prazeres. Gozando de meu ser, lindas mulheres, Em singular banquete!" "Cultoras devotíssimas de Priapo, Eis em plena ereção o membro guapo A vos servir de gozo. Levai-o a conhecer as vossas grutas Remediando-me em fodas dissolutas O tédio venenoso." "Ide e fodei com quem mais vos apraz Quer seja rapariga; quer rapaz, Até cairdes saciadas. Assim, toda a verdade que há no vinho Se revele por fim no desalinho Das bocetas sagradas." Betim - 28 11 2018

terça-feira, 27 de novembro de 2018

À TRAVESTIDA

À TRAVESTIDA

(sextina: pênis, seios, nádegas, ânus, pelo, pele)

Linda… Fatal mulher além do pênis!…
Seu dote… Viril homem mais os seios!…
Mas na parábola audaz de suas nádegas
Perdi-me ao explorar o seu doce ânus!
Meus dedos pelo seu corpo sem pelo
Desnudam impacientes toda a pele…

Sentindo o seu calor à flor da pele
Enquanto topo túrgido seu pênis.
Incontinente, já lhe monto em pelo:
Estreito pelas mãos seus fartos seios,
Pincelo doce e húmido seu ânus
E o penetro violento pelas nádegas.

Por amplas e douradas, suas nádegas
Parecem rebrilhar a suave pele
A ocultar, caprichosas, seu doce ânus
Das firmes investidas de meu pênis
--Qual aríete ao pórtico!-- Seus seios
S'eriçam onde a barba corre o pelo…

Ela se m'embaraça o basto pelo
Do púbis ao marcar às suas nádegas.
Embriago-me a beber d'esses seus seios
Até qu'ela, rasgando a minha pele,
Me invada loucamente com seu pênis
E m'o penetre todo no meu ânus!…

Desvairada em possuir-me pelo ânus,
Agora ela, amazona, monta em pelo!
N'uma célere marcha, logo o pênis
Cavalga-me bem forte sobre as nádegas
Ávida de incendiar-me toda a pele
Roçando minhas costas com os seios.

Exaure-se meu pênis por seus seios!
Extenue-me as nádegas pelo ânus!
Até deixar meu pelo em sua pele!…

Betim - 27 11 2018

ALCATEIA

ALCATEIA

Bem-vindos aos recônditos da noite
-- E a salvo d'esponsal e rudo açoite... --
Avançam entre os reles
Cavalheiros viris de meia idade
Buscando os lupanares da cidade,
Pois lobos também eles!

Homens d'excelentíssimas maneiras
Vestidos com as galas costumeiras
Dos que sabem se impor.
Visto bem sucedidos nos negócios,
Em conluio d'amigos e de sócios
Renovam-se o vigor.

Adentram o covil das meretrizes
No afã d'haverem horas mais felizes
Que as que têm em família.
Ou ainda, co'os rigores dos estetas,
Ranquearem a doçura das bocetas
Com graça peralvilha.

Pois em meio à fumaça dos charutos
Cortejam-nas com brindes dissolutos;
Cascatas de champanha!
Na berlinda, o desfile das beldades:
Ao exibir do plantel as novidades
Toda a malta se assanha...

Vêm vestidas de rendas e de plumas
Ou totalmente nuas entre espumas
As belas raparigas.
Seus olhos, feito joias cintilantes,
Desdenham dos amores inconstantes
Ou de suas intrigas.

Sorriem a inspirar deslumbramentos,
Fazendo-os suspirar pelos momentos
De tê-las em seus braços:
Saborear das mais jovens as delícias
Ou das dominatrizes as sevícias
Em seus corpos devassos.

Mas antes, desfraldada igual bandeira
A dançarina se exibe de maneira
A atrair longos olhares:
Presa ao poste de dança, toda nua,
Entre caras e bocas se insinua
Co'as poses mais vulgares.

Assim, uma após a outra no espetáculo
As belas se revezam ao pináculo
Já ultraprovocantes!
Pois é de se admirar homens tão probos
Súbito se tornando velhos lobos
A uivar-lhes suplicantes...

Tão-logo as moças deixam a berlinda
Tais senhores lhes vêm cercar ainda
A dar mundos e fundos.
Atentas, elas ouvem as promessas
Como estivesse o mundo ora às avessas
Em seus olhos profundos.

Suaves, concordam elas bem com tudo,
Oferecendo o peito já desnudo
Ao alcance d'outra mão.
Como se já ansiassem pelo toque
E que tal perfeição n'eles provoque
A mais doce paixão.

Eles, homens deveras bem vividos,
Fingem acreditar nos seus ouvidos,
Devolvendo elogios.
Elas, mulheres muito espirituosas,
Tentam logo arrastá-los entre rosas,
Sussurros e arrepios...

Certos que a vida é mais do que uma ideia,
Os velhos lobos vão em alcateia
Coleccionar prazeres.
Gozosos de passar por tantos leitos,
Voltam ao fim da noite satisfeitos
Para suas mulheres...

Belo Horizonte - 26 11 2018

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

AGUADAS

AGUADAS

A chuva e seu pincel de fantasia
Dão ao vale horizontes desmedidos,
Onde os olhos se perdem comovidos
Ao longo já de toda a travessia.

Mas mais bonito mesmo é quando estia
E os campos do Senhor, reverdecidos,
Parecem rebrilhar agradecidos
Às águas que caíram noite e dia.

A luz do sol s'espalha quase pura
E o céu em pleno azul se transfigura
Por sobre o rio cheio que o espelha.

Felizes, companheiros do lugar
Às culturas do tempo vêm plantar,
E fecundar a chã terra vermelha!

Pará de Minas - 26 11 2017

domingo, 25 de novembro de 2018

HOMO EROTICUS

HOMO EROTICUS

Quem sabe que quer Deus pelos seus planos,
Senão fazer dos homens mais humanos
A ponto que se toquem??
Ou será que o desejo não vem d'Ele
E os ardores que tenho à flor da pele
Tão-só males provoquem?...

O que sei é que o Amor, divino ou não,
Me fez com que buscasse a tua mão
Pousada sobre a minha.
E que, contados todos os segredos,
Eu sentisse na ponta de teus dedos
Passar a estreita linha...

Entre beijos por fim reconhecer
Que estava todo ali a te querer,
Entregue a tuas carícias.
E ainda, sem passado e sem porvir,
Eu por todo o teu corpo descobrir
Um jardim de delícias!

Na novidade doce de teu sexo,
Eu perceber-me ávido e perplexo
No afã que me possuas.
E, na força de tuas carnes rijas,
Saber que tu em mim te regozijas
Por nossas peles nuas.

E depois, reclinado no teu peito,
Te veja espreguiçado pelo leito
Buscar a minha boca.
Sentir que tu de novo me desejas
Quando, pelo vigor com que me beijas,
O teu sexo o meu toca.

Mas agora, descendo por meu ventre,
No meu gozo somente se concentre
A tua boca cálida.
Ao que minha mirada se arregala
A ver tu espalhares minha gala
Por tua pele pálida.

Ah! Queira Deus que tu 'inda me queiras
Por ardor ou quaisquer outras besteiras
De novo aos braços teus.
E esse Amor que nos toma tão imenso
A repetir-se ainda mais intenso,
Também seja de Deus!...

Betim - 25 11 2018

sábado, 24 de novembro de 2018

O TALARICO

O TALARICO

Tarde demais, o amigo se mostra um...
Ou melhor, que jamais foi mesmo amigo.
Até tento entender, mas não consigo
Quem se reduz a ser lugar-comum!

Hoje não é ninguém quem foi nenhum
Dos que um dia evitou andar comigo.
Ao contrário, de mim pediu abrigo,
Fazendo de meu pão seu desjejum.

Mas s'entreteve com minha mulher:
Enquanto ela buscava m'esquecer,
Ele esquecia tudo o qu'eu lhe fiz.

Hoje só lhe devoto o mais frio ódio
Sempre que recordo do episódio...
Que mais posso fazer d'esse infeliz?

Betim - 12 02 2014

GINECEU

GINECEU

Bela entre as belas, ela se deleita
Em vê-las todas nuas e agitadas:
Pernas, coxas e mãos entrelaçadas
Sem que possa dizer a mais perfeita!

Já essa sobre aquela ali se deita
Ao passo que aquel'outras, perfumadas,
Vêm se trocar carícias delicadas
E também ela beija à sua eleita.

A rainha, resguardada por eunucos,
Apraz-se em companhia de donzelas
Longe do velho rei entre caducos.

E alheia à toda Corte, junto d'elas
S'entregava aos desejos mais malucos...
Feliz d'estar ali, bela entre as belas.

Belo Horizonte -  24 11 2018

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

MONTE DE VÊNUS

MONTE DE VÊNUS

De tua geografia explorador
Tornei-me entusiasmado e persistente.
Não raro te desnudo tão-somente
Para te ver corar tanto candor...

E descubro, por sob o teu pudor,
Toda uma natureza esplandecente.
Onde vales, planícies e a vertente
Que tenho palmilhado com ardor:

Em leve elevação, eis o áureo monte
D'onde se descortina esse horizonte
Esplêndido de curvas venturosas.

Mas onde, sobretudo, aquela gruta
Cuja lenda e mistério mais s'escuta
Como a fonte de néctar entre rosas!

Betim - 23 11 2018

ERÓGENO

ERÓGENO

Quente... Se a pele arde onde o dedo toca,
Também a tua língua em minha boca
Vem sibilar veneno...
Logo, descem os lábios aos mamilos
E assim, vêm pousar ali tranquilos
Onde o prazer é pleno.

Na fome de te amar, quase machuca
Eu te cravar os dentes pela nuca
Para te devorar.
E, após correr as unhas pelos ombros,
Embaixo te sucedem os assombros
Do longo dedilhar.

Húmida... Se oferece à minha língua
A gruta até aqui deixada à míngua
Por sob os bastos pelos.
Para então, revirada sem esforço,
Mais arquear tuas costas sobre o dorso
Puxando-te os cabelos!

E, ao descer pelas nádegas expostas,
Te degustar enquanto te desgostas
Por eu tatear-te, cego.
E toda entregue ali tu te abandonas
À língua que t'explora aquelas zonas
Passear-te pelo rego...

E mais, untados todos os teus poros,
T'escutar os gemidos tão sonoros
A ponto de os temer.
Pois, lânguida, te alongas empinada
E reviras teus olhos  desvairada
Quase a desfalecer

Contudo, sem perderes os sentidos
Mais ainda me sentes incontidos
Os ousados carinhos
E mais me aceitas pela pele os lábios
Ao fazer de teus seios menos sábios
Ainda mais vizinhos...

Sim! Goza de meu corpo junto ao teu...
Usufrui de mim tal como se eu
Fosse tu mesma tua
Recebe-me o calor em teu calor
A nos queimarmos juntos pelo ardor
Por toda a pele nua.

Betim - 23 11 2018

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

BODAS DE CIANURETO

BODAS DE CIANURETO

Romântico a meu modo, eu não me oponho
A morrer já de mãos dadas contigo.
Bebamos outra dose de perigo,
Baforando tragadas d'algum sonho.

Pego-me a te admirar assim tristonho
Como se fosse um íntimo inimigo
Capaz de te acolher no mesmo abrigo
Onde oculto do ser meu mais bisonho:

-- "Que preferes, champanha ou cianureto?"
À maneira do músico eu te poeto,
Fazendo graça com nossa tristeza. 

No mais, comemoremos estas bodas
'Pós-excessos das mais bizarras fodas,
Mareados sob um céu azul turquesa.

Betim - 22 11 2018

DESAPEGO

DESAPEGO

Deixo de te querer para que partas
E enfim possas amar alguém de novo.
Se os votos do passado não renovo
É antes por sabê-los velhas cartas...

Certo que tu de mim logo te apartas,
Aceito-o, mas ainda me comovo.
Não obstante é bem como diz o povo:
De males as pessoas andam fartas!

Volta a sorrir, ainda qu'eu te chore
Debalde uma saudade sem remédio
Ou a solidão por vezes me apavore.

Cuida apenas de assim matar o tédio
E impedir que tristeza te descore,
Vivendo tudo o mais sem intermédio.

Betim - 21 11 2018

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

ESTROBOSCÓPIA

ESTROBOSCÓPIA

Mostra-se quadro a quadro ou fotograma,
Como que congelando o movimento.
Somente a iluminar cada momento
No instante que o lampejo se derrama. 

Sequência de instantâneos cujo drama
Põe entre claro e escuro um andamento.
Onde o corpo à luz do pensamento
Diverso espaço-tempo a si proclama.

Em longa exposição se lhe captura
A trajetória toda n'um só plano,
Fazendo o passo a passo da figura.

E se, por cinemático esse engano,
Revelar-se inusual nomenclatura,
Far-se-á tão-só de luzes outro humano.

Betim - 21 11 2018

terça-feira, 20 de novembro de 2018

DÂNAE

DÂNAE

Chuvas d'ouro lhe jorram sobre o sexo...
Pois quando os deuses amam, generosas,
Suas mãos amantes lhe ofertem rosas
Ou, se forçoso for, o áureo amplexo!

À ninfa enclausurada vem perplexo
Honrar com suas galas vigorosas.
Ao fecundá-la tanto quanto esposas,
Lhe goza entre palavras já sem nexo.

Em resposta, ela verte a sua linfa
N'outra chuva prateada pois de ninfa,
Onde ejacula a gala feminina.

E mais a sua fúria se agiganta,
Entumescida a vagina sacrossanta
Que em chamas de prazer tudo ilumina.

Betim - 20 11 2018

domingo, 18 de novembro de 2018

NÓS COMO VÓS

NÓS COMO VÓS

Também nós temos sangue sob a pele
-- Vermelho, não azul como sonhais... --
Mas, derramados, correm tão iguais,
Que sequer se distingue este d'aquele.

Entre nós e vós, tal sangue enfim revele
Menos as diferenças do que os ais
E mostre que todos perdem mais
Quando o afã de vitórias os impele.

Nós como vós havemos-de morrer,
Andando n'esse mundo sem saber
Aonde se vai dar com tanta briga.

O certo é respeitar a liberdade
E sorrir sem ser dono da verdade
Àquele que m'estende a mão amiga.

Belo Horizonte - 17 11 2018

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

LUA À MÍNGUA

LUA À MÍNGUA

Decresce pelo céu a lua ao meio,
Desanuviando a noite dos sertões.
Da mata, um uratau geme canções
Bisonhas e com uivos de permeio.

Embaraçada pelo seu gorjeio,
A lua fica à míngua em seus clarões...
Vai minguando minguante aos corações
Desiludidos já d'algum enleio.

Tal luar antes esconde que revela,
A encher de densas sombras os caminhos
Por onde o enamorado se desvela.

Tristes, o mãe-da-lua e os passarinhos,
Vendo a lua minguar tão menos bela,
Deixam esses desertos mais sozinhos...

Betim - 15 11 2018

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

NAU ANUNCIAÇÃO

NAU ANUNCIAÇÃO

Navega a todo pano em mar aberto
Uma nau de três mastros transoceânica.
Desdenha de Neptuno a voz tirânica
Nas vagas a reter-lhe o curso certo.

Contorna um continente indescoberto,
Ao lago d'outra vã ilha vulcânica...
A conhecer dos ventos a mecânica
Até ter o distante como perto.

E segue, para além do que há nas cartas,
Veloz feito um corcel pela campina
Por topar terras tórridas e fartas.

Tão-logo chega aonde se destina
-- Ou aonde descobriu ter de chegar --
Reúne enfim as terras pelo mar!...

Betim - 13 11 2018

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

UNS TRINTA MIL

UNS TRINTA MIL

Reunidos na Avenida Paulista, uns trinta mil estendem uma faixa de papel pardo.

Ontem à noite, eu tive um sonho bem gozado. Sonhei com uma fila indiana de três quilômetros na Avenida Paulista fazendo um acto público em pleno primeiro de janeiro de dois mil e dezenove. Uns trinta mil vestidos de preto-luto que estendiam uma faixa de papel pardo igualmente quilométrica por toda a extensão da fila. Uns trinta mil reunidos, sem cores partidárias, símbolos religiosos ou qualquer forma d’expressão ideológica… Apenas pessoas de preto em silêncio. E de mãos dadas.
Na ressaca do feriado do Ano Novo, a megalópole sulamericana é surpreendida pelo inusitado — “Quem são aquelas pessoas?” — pergunta quem passa diante da faixa de papel pardo que demanda uma caminhada de cerca de três mil metros para ser lida. Alguns se animam a ler o que está escrito e, após os primeiros metros, já se dão conta de que o conteúdo era realmente subversivo:

AQUI EM SÃO PAULO, NO DIA PRIMEIRO DE JANEIRO DE DOIS MIL E DEZENOVE, SE REÚNEM, ENTRE HOMENS E MULHERES, UNS TRINTA MIL. ESTAMOS AQUI PARA OFERECER AS NOSSAS MORTES EM LUGAR DAS TRINTA MIL QUE SE ACREDITA NECESSÁRIAS PARA TORNAR O BRASIL UM PAÍS VIÁVEL, HAJA VISTA QUE NESSE MESMO PAIS, HÁ CERCA DE QUARENTA ANOS ATRÁS, TORTURAR EM PORÕES NÃO TENHA SIDO O BASTANTE. SOMOS MILITANTES PELOS DIREITOS HUMANOS, ATIVISTAS LGBT, COLETIVOS DE PERIFERIAS, ARTISTAS, INDÍGENAS, OPERÁRIOS, QUILOMBOLAS, PROFESSORES, POLÍTICOS, LIDERANÇAS DE MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIOSOS, DESEMPREGADOS, INTELECTUAIS, MILITARES, DEPENDENTES QUÍMICOS, MORADORES DE RUA, UNIVERSITÁRIOS, SERVIDORES PÚBLICOS, JORNALISTAS, ESPORTISTAS, PROFISSIONAIS LIBERAIS ETC… MAS, ANTES DE TUDO, PATRIOTAS! ESCOLHEMOS OFERECER-NOS NUM GESTO APLACADOR DO ÓDIO QUE DOMINA A NAÇÃO. SE UNS TRINTA MIL NECESSITAM MORRER, QUE SEJAMOS NÓS, QUE DESDE O INÍCIO NOS COLOCAMOS COMO RESISTÊNCIA A ESSE ESTADO DE COISAS QUE OPRIME AS MINORIAS PELO MEDO E PELA INTIMIDAÇÃO. SE UNS TRINTA MIL NECESSITAM MORRER, QUE SEJAMOS NÓS, QUE JÁ NOS PERCEBEMOS COMO VOZ DISSONANTE A SER EMUDECIDA. NÃO NOS INTERESSA VIVER NUM PAÍS QUE NOS EXCLUI OU NOS CULPA E QUE NOS MATARÁ AOS POUCOS “DE FOME, DE RAIVA E DE SEDE”. MATEM-NOS, UNS TRINTA MIL, DE UMA VEZ SÓ. FAÇAM A LIMPEZA GENOCIDA QUE ACREDITAM PRECISAR SER FEITA E LEVEM O PAÍS — SEM NÓS — A UMA NOVA ERA DE PROSPERIDADE, SOB PENA DE AGUÇAR AINDA MAIS A EXTREMA DESIGUALDADE DO BRASIL. NACIONALISTAS ÀS AVESSAS, NEGOCIEM NOSSAS JAZIDAS, NOSSAS FLORESTAS E NOSSO CHÃO. REFAÇAM O PACTO SOCIAL NUMA DEMOCRACIA À SOBRA DE FUZIS. NINGUÉM RECLAME. NINGUÉM SE MANIFESTE. SILENCIEM-NOS DE VEZ: MATEM-NOS, UNS TRINTA MIL. ENVIEM SUAS TROPAS DE CHOQUE E SEUS ESQUADRÕES DA MORTE. ESTABELEÇAM NOS MORROS A PAZ DE CEMITÉRIO QUE ANSEIAM NO ASFALTO. DOMINEM PELO MEDO, TOLERANDO MILÍCIAS ASSASSINAS SIAMESAS DE FORÇAS POLICIAS. METRALHEM. SOMOS UNS TRINTA MIL EM FILA, À VISTA DE TUDO E DE TODOS, EM PLENA AVENIDA, CERTOS DE NÃO COLABORAR COM MEDIDAS DE EXCEÇÃO; DE NÃO PACTUAR COM UMA JUSTIÇA NÃO VÊ CRIME EM ESPALHAR ÓDIO, MENTIRAS E DIFAMAÇÕES. UMA JUSTIÇA QUE NÃO JULGA QUEM VOMITA MISOGINIA, HOMOFOBIA E RACISMO. NÃO NOS CALAREMOS DIANTE DE FORÇAS QUE HÁ ANOS FAZEM SENÃO ESPALHAR ÓDIO E PRECONCEITO. GENTE TACANHA QUE DEFENDE SOLUÇÕES SIMPLISTAS E ULTRAPASSADAS PARA UMA SOCIEDADE DIVERSA E COMPLEXA. GENTE QUE MIRA À DISTÂNCIA EM MORADORES DE FAVELA E, PUXANDO O GATILHO, FAZ-SE JUIZ E EXTERMINADOR DE SUSPEITOS: EXECUÇÃO SUMÁRIA! GENTE QUE JÁ FALOU E AINDA FALA EM FECHAR O CONGRESSO OU SUPREMO TRIBUNAL. ATIREM EM NÓS! APROVEITEM A OPORTUNIDADE E REVELEM AO MUNDO A VERDADEIRA FACE POR TRÁS DA SORDIDEZ DE SEUS DISCURSOS. FUZILEM. ESTAMOS AQUI PARADOS, NA MIRA. SOMOS UNS TRINTA MIL NA LINHA DE FRENTE, SEM ARMAS DE FOGO, VANGUARDA DE MUITOS QUE NOS SUCEDERÃO APÓS CAIRMOS. SOMOS PACIFISTAS OPOSTOS A DISCURSOS SANGRENTOS E ATITUDES EXCLUDENTES. AQUI EM SÃO PAULO, NA AVENIDA PAULISTA, EM DESOBEDIÊNCIA CIVIL. AO SOM DOS TIROS DE ADVERTÊNCIA E DAS BOMBAS DE DISPERSÃO, NINGUÉM LARGA A MÃO DE NINGUÉM. ELES VÊM, A MANDO DA ORDEM ESTABELECIDA. ELES VÊM… SOMOS UNS TRINTA MIL!

 * * *

O extenso discurso, embora fosse um desafio, não oferecia nenhum nome a ser responsabilizado senão o da Pátria. Não havia raiva ou ódio, apenas cansaço e desespero. Diante da tragédia anunciada, uns trinta mil se reuniam na Avenida para denunciar a dureza do discurso majoritário; deixar claro que suas mãos estão sujas de sangue e que a resposta do violento é, por via de regra, a violência.

Eu confesso que essa foi a noite mais escura que vivi. Sonhei, sem nenhum dramatismo, febril e desnorteado por um pensamento obsessivo-compulsivo que me levava a ter o mesmo sonho por horas sem conseguir chegar a qualquer desfecho. Eram uns trinta mil estendendo uma faixa de papel. Era um dia nublado no meu sonho. Eram homens e mulheres de preto, em fila por três quilômetros, estendendo uma faixa de papel pardo com dizeres garrafais em tinta preta.

E a partir desse dia primeiro, sobreviventes ou não, uns trinta mil passam a brilhar contra a maldade.

É isso.

Betim — 10 11 2018

AS FLORINHAS

AS FLORINHAS

Quem lhe imitasse a flor da santidade
E houvesse dos estigmas a sangria,
Dos cravos da Paixão conceberia
O próprio Deus com toda claridade.

E as Florinhas, com mística verdade,
Ao evocar de milagres voz tardia
Revelassem em plena luz do dia
O mistério por trás da Divindade.

Pregando após a pássaros ou peixes,
Logo a glória de Deus rebrilha em feixes
Ao vazar brancas nuvens pelo céu.

E este estado d'errática loucura
Por sua face insã se transfigura
Certo que a própria cruz é seu troféu.

Betim - 12 11 2018

domingo, 11 de novembro de 2018

O CORONEL

O CORONEL

-- "É, menino, eu já fui homem 
Duro e acostumado ao mando!
Mas o tempo foi passando
E as certezas todas somem
Aos meus olhos vez em quando."

"Sou um homem vivido.
Conheci belas mulheres
E amoleci nos quereres
De ter sido bem querido
Após muitos malmequeres..."

"Em casa eu tinha uma dona
E filhos que nem escada.
Fora, fazia pousada
N'algum quarto lá na zona
Ou junto a mulher casada."

"Embora morasse na roça,
Pus outra casa na rua
Aonde fosse sob a lua
Visitar formosa moça
E deitar em cama sua."

"Por teúda e manteúda,
Passava o tempo sozinha,
Dizendo-se toda minha...
Já perfumada e desnuda
Quando avisava que vinha."

"Nova, era a minha pequena
Seus beijos, gotas de mel...
Seus olhos, límpido céu...
Seu peito, olor d'açucena...
Seu colo, um nobre pitéu!..."

"A velha em casa notava:
-- "'Tanto apuro no vestir...
Por que sempre um ir e vir?
Por que tanto pernoitava?
Chegava e tornava a sair!"'. --

"Nunca me dizia nada
Mesmo sabendo de tudo...
Entra calado e sai mudo
Quem tem a culpa estampada
Em pleno olhar, sobretudo."

"Vivi, desavergonhado,
Por anos e anos assim.
Até que a pequena enfim
Partiu para outro estado,
Como fugisse de mim:"

"Topei co'a casa vazia...
Não deixou nem um bilhete.
Das roupas, nem alfinete!
Nada mais na sala havia,
Senão poeira no tapete."

"Voltei p'ra roça humilhado,
Sempre a esconder meus ais
De minha dona e os demais...
Hoje, esquecendo o passado,
Na rua eu não volto mais!

Betim - 10 11 2018

sábado, 10 de novembro de 2018

SOB PRESSÃO / UNDER PRESSURE


SOB PRESSÃO / UNDER PRESSURE
“Quando RESISTÊNCIA é vaiar as vaias e reafirmar o talento de quem brilha, enquanto os tacanhos se envergonham e nos envergonham”
Para surpresa geral, sessões de cinema a exibir a aclamada cinebiografia do grupo de rock Queen Bohemian Rhapsody (EUA/Reino Unido—2018) não foram notícia pela expectativa dos fãs ou pela pertinência da homenagem ao cantor Freddie Mercury, mas sim pelas vaias e reações homofóbicas que se seguiram às cenas em que o famoso protagonista troca beijos e carícias com outros homens… Os relatos de xingamentos, desaforos, vaias e abandonos nas salas que exibiam o filme ocuparam manchetes em todo o país e mesmo no exterior.
Ainda que tenham sido comportamentos isolados e irrefletidos, duas coisas saltam aos olhos: o desconhecimento sobre o artista cuja vida foram assistir no cinema e, sobretudo—como reflexo dos dias difíceis que temos presenciado—a falta de pudor em manifestar o próprio ódio preconceituoso à afetividade homossexual. Além das palavras de ordem homofóbicas, houve inclusive relatos de manifestações de apoio ao presidente eleito, explicitando se tratar de um ato político e ideológico a postura que defendiam: “Bolsonaro vai pegar vocês!”
Temos andado todos sob pressão. Há um inusitado entendimento de que a vontade da maioria expressa nas urnas dê suporte para toda espécie de agressão gratuita. No entanto, mais do que nunca, percebe-se que tanta raiva contra às minorias na verdade oculta medo. Sim, há exagero no anseio de calar todas as vozes estranhas ao discurso extremista majoritário pela mera constatação de que esse extremismo não suporta o debate. Ou melhor, apenas vocifera cada vez mais alto qualquer bobagem que abafe o ruído dos murmúrios que já se percebem. É por medo de explicitar as evidências de que um bando de despreparados fora eleito para nos governar que nada pode ser contestado.
Afinal, por que temer tanto os perdedores que se reúnem em torno da ideia de RESISTÊNCIA? Razões para ter medo do que virá nós temos, mas, e eles? Eles têm medo de encarar o mito de pés de barro que está diante deles apoiando, pasme-se, a intervenção prévia da Presidência sobre as questões do ENEM! Em nome de quê? Mais homofobia…
Àqueles que pretendem esvaziar a ideia de RESISTÊNCIA é forçoso afirmar que, mais que uma postura de desobediência civil, trata-se antes de sobrevivência. Parafraseando o lema armamentista tão repetido por bolsonaristas: “ódios matam; ideias, não!” Ter medo de ideias de minorias acuadas é a mais perfeita manifestação do quanto eles temem verdades diversas das próprias…
Como não falar em RESISTÊNCIA em face de um estado de coisas que só se degrada à medida que a superficialidade dos discursos se torna a superficialidade das ações? Sob quanta pressão é preciso viver antes que se abra mão do direito à visibilidade homoafetiva e todos homossexuais serem recolocados à força nalgum armário que lhes agrade? Porque os mesmos que vaiaram o beijo de Freddie Mercury são os que agridem na rua dois homens de mãos dadas! A sensação que fica é que não é mais condenável sentir ódio de minorias quando o próprio presidente o externa censurando professores e conteúdo do ensino público. “Caring about ourselves / This is our last dance / This is our last dance This is ourselves/ Under pressure /Under pressure/ Pressure” (David Bowie / Queen) É isso.
Betim—10 11 2018

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

HOMEM DE POUCA FÉ

HOMEM DE POUCA FÉ

Fé, prefiro ter pouca que ter cega.
Quem crê em tudo, vê o que não há
Ou, negando o que vê, logo se dá
Com quem pratica o inverso do que prega.

Antes sua razão a outrem entrega,
Por certo de ir aonde Deus está...
Pois melhor na Verdade que achou lá,
Que quem busca verdades n'uma adega.

Fé, prefiro ter pouca que nenhuma.
Ou melhor, já não ter qualquer certeza
Do que aderir àquela que outro arruma.

Prefiro contemplar a Natureza,
Que só repetir como se costuma,
Regrando da Palavra a subtileza...

Betim - 09 11 2018

ESFEROGRÁFICA

ESFEROGRÁFICA

A pena que desliza sobre a folha
Lhe risque azuis traçados sem desdita.
Com letra antes nervosa que bonita,
Toda a verdade d'alma se recolha.

Cuida em se fazer a cada escolha
A leitura tão fluida quanto a escrita;
Que, frenética, intensa se acredita
A ponto d'estourar-se feito bolha!

Escreve pelo gosto já da tinta,
Violentando-lhe a face do papel
No afã d'expressar-se quanto sinta.

E admira o manuscrito igual troféu
Onde pelo gestual a cor distinta.
Houvesse o azul furtado ao próprio céu!

Belo Horizonte - 09 11 2018

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

CANTIGA

CANTIGA

Eu te amar, querida, me tem sido
D'uma alegria pura e insuspeitada.
Guarda tu para mim a asa quebrada,
Visto eu arcanjo em sombras decaído…

Se canto co'o alaúde enternecido
Cantiga que deixei inacabada,
É antes porque a lua serenada
Me faz velar-te o sono combalido.

Dorme, meu bem-querer, em dó menor.
Não cuides já se a noite se estender
N'essa pequena morte que é o amor.

Permite que me achegue a te fazer
Doce acalanto até teu trovador
Ao fim, junto de ti, adormecer.

Betim - 12 02 1996

QUADRADO VERMELHO

QUADRADO VERMELHO

Em óleo sobre tela, era um quadrado
Pintado de vermelho carmesim.
Fora de esquadro, tinha início e fim
Conforme eu me havia revirado.

Era estável, embora algo inclinado
Como abstração platônica de mim,
Que pode o movimento, mas enfim
Permanecia ainda ali parado...

Na geometrização da realidade,
O olho faz reordená-la sobre um fundo
Que distingue a figura à claridade.

Ao que também eu ao olhar profundo
Aproximado em minha humanidade
Saiba me distinguir de todo mundo.



Betim - 08 11 2018

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

MALDITOS!

MALDITOS! Quem são estes cuja luz fora apagada E, insones, têm nas noites seu refúgio, Atravessando em vão a madrugada? Só querem ao poetar vago transfúgio Da vida d’esperanças comezinhas, Bem como contra o tédio subterfúgio? Estes -- que vêm deixar nas entrelinhas Toda sorte de angústias autorais -- O que buscam por horas tão sozinhas? Por que se fazem poetas? Por que mais Buscam tirar das letras o sublime, Senão por se sentirem sós demais? Que furtaram aos deuses? Qual o crime Cometido na aurora dos milênios, Cuja pena a escrever nunca os redime? Sem diferir se néscios ou se gênios, D’onde foi que obtiveram tal saber Que os obriga a versar entre proscênios? Como estes que escrevem ousam ler Nas linhas d’horizonte um sol errático Por entre arranha-céus a amanhecer? Como alguém -- entre excêntrico e lunático -- Gastando a vida inteira com escritos Despidos de qualquer sentido prático? Malditos! Sete mil vezes malditos! Estes que têm os versos por oráculo Havendo além dos céus mais infinitos... Malditos os que têm pelo vernáculo Um carinho de artista incompreendido, Que se imola no altar do tabernáculo!... Dom às avessas!... Bênção ao inavido!... À margem das promessas e das glórias, Poetar é desdenhar o conhecido... É saber inventadas as memórias Ou, de belas mentiras, a verdade Pretendida em suas vãs histórias. Desastrólogos do alto! Sede, poetas, Malditos pelos séculos dos séculos, No augúrio de catástrofes completas!... Vinde e vede: Reviram-vos d’espéculos As vossas cavidades buscando alma, Tal como fazem monges ‘inda séculos. Terminais por viver tão-só o trauma Com que fordes há muito amaldiçoados Com nenhuma paciência e pouca calma. Facto: Malditos porque mal falados. Porque muito mal lidos; mal descritos... Os bons? Somente os mortos, os finados. Tantos a maldizer-nos os escritos: -- “Antiquados!! Herméticos!! Absurdos!!!” Ou sem nem ler (assim assim): -- “Bonitos...” Se declamamos, fingem estar surdos; Se publicamos, fingem que são cegos; Um povo sem país igual os curdos: Poetas... Filhos de sós desassossegos Sempre a vagar sem pátria e sem dinheiro, Indo sobreviver de subempregos; Ou distante vagando, aventureiro, Que por entre as palavras em vão erra Sem nunca encontrar um paradeiro. Hoje, até Ahasverus possui terra! No mesmo confim onde Israel governa E o ismaelita de novo se desterra... Não os malditos... D’esses é eterna A caminhada errante vida afora Atravessando as noites na taverna. Ali, já sem saber se ri ou chora, Senta-se e escreve em plena solitude, Alheio mesmo da hora de ir embora. Eis dos poetas a glória e a finitude: Por fim, indiferentes se são lidos, Já nada nem ninguém ora os ilude. E ainda que por todos combatidos Gargalham das desgraças do passado Enquanto as do presente nos ouvidos. Mas por fim se revoltam contra o Fado, Quando entregues à própria escuridão Caminham co'a miséria lado a lado. E, d’entre eles, eu: Com talento ou não, Arrasto estes meus versos qual grilhões, Sabendo-os meu tesouro e maldição. Peno eu -- mais três ou quatro gerações -- Amaldiçoando todos no pecado Que nos predestinou junto aos vilões! Deveras, parvo e obscuro antepassado, Pus minha iniquidade sobre os meus, Uma vez para sempre amaldiçoado... Antes já natimorto entre os plebeus Que agora constranger-nos desde o gen Viver em guerra infinda contra Deus! Como ignorasse d’onde a bênção vem, Sem temer me cobrir de pestilências... Maldito, escolho o mal e evito o bem. Ao desdenhar de Deus suas violências Sobre mim e meus tristes descendentes É que busquei nos vícios experiências. Uma vez condenado, ranjo os dentes Urrando contra as hostes celestiais E a multidão submissa de seus crentes. Sim, vêm me perseguir feito animais: Tendo a marca de Caim -- homem de cor -- Com os filhos de Cam eu ergui baais! Excluído do povo do Senhor, Sigo a errar d’outro lado do Jordão Como a face d’opróbrio e do terror: Quem de longe me vê na imensidão M’escojura qual visse o deus Moloque Com chifres a queimar na escuridão! E vem me apedrejar sem que o provoque Para que assim me afaste mais ainda, Pintando-me um demônio sem retoque. Certo que minha culpa jamais finda, Aos olhos d’estes homens bons e justos Convém lhes evitar a terra linda. Vagando nos desertos entre arbustos A medo de topar quem quer que seja E alerta de perigos e outros sustos... Resta rogar a Deus, por onde esteja, Que me mate antes qu’eu, de todo aflito, Devolva ao mundo o mal que me deseja! Só sei não ver justiça no infinito Expurgo de más culpas cuja pena Me faz eternamente ser maldito. Turvando a vista pela tarde amena, Como encontrasse Deus um peito ateu Em ascensão por sobre a luz terrena. Foi então, do profundo abismo, qu’eu Tive a visão do fim de tudo e todos Pós-que o sol trás-às-nuvens s’escondeu. A noite fez-se eterna nos engodos D’um extremista, homem de bem ou ambos Para vencer por todos meios e modos: Os narcotraficantes com escambos Mais os supremacistas pelas armas Contra negros, asiáticos ou jambos... Seguem todos às voltas com seus carmas, Fomentando desastres para, enfim, Ouvir sete trombetas soando alarmas. Fazem o escatológico festim: Em celebrações de ódio genocida, Urgem d’Humanidade o triste fim. Rudes, vêm vomitar sobre a avenida Toda espécie d’estúpida revolta Tendo absoluto horror da própria vida. Como fossem corcéis à rédea solta!... Como em carga de audaz cavalaria!... Vão levando violência à sua volta. Irmanados na ardente primazia, Impõem enfim seus males a oprimidos Embora revestidos de ousadia. Longe, escuta-se o pranto dos vencidos, Bem como outros tantos uivos e ais Já n’um clamor uníssono vertidos: Partem agora para nunca mais As utopias d’uma terra justa Onde, sem males, todos são iguais. Curvam-se a uma ilusão que nos assusta Pelo que nos pretende distinguir Por entre bons e maus à face augusta. Senhores do presente e do porvir, Os bárbaros já uivam sob a lua E clamam por façanhas de se ouvir... Jactam-se sobre gente seminua Que vaga pelas sombras da cidade... E acabara morando em plena rua. Ameaçam, com toda a propriedade, Àqueles que muito pouco têm... Certos de que já donos da verdade! Pois bodes expiatórios lhes convêm E as cabeças jogadas contra o asfalto Mal sobre seus pescoços se sustêm... Avançam sobre o douto e sobre o incauto Céleres em calar todas as vozes, Nos mantendo em constante sobressalto. Vão vindo como as hordas mais ferozes Sempre com mais exércitos por trás, Fazendo correr sangue feito algozes. Com guerra, vêm impor-nos sua paz E após jogar na vala mais comum, Onde pouco importa quem lá jaz. Milhões vociferando como se um Os mesmíssimos ódios e violências; Indo apressados p’ra lugar nenhum. Esvaziaram as suas consciências Berram d'olhos vidrados para além, Indiferentes já às consequências. Culpa de todo mundo e de ninguém, Co'as mãos sujas de sangue dizem ser Maldade contra os maus acto de bem... Vêm em nome de Deus estremecer -- Frase após frase infeliz -- Amizades a ponto de as perder. Clamam todos por Deus n'esse país! Como o Senhor amasse uns e outros não. Sem embargo, Ele nada faz ou diz... Sim, Deus se cala face à escuridão Que s'estende por sobre a Terra inteira, E os homens abandona à danação. Pois nega-se a negar a verdadeira Razão por trás de tais atrocidades, Queimando bons e maus pela fogueira. Permite que a maldade nas cidades S'eleve finalmente como regra Acima de quaisquer necessidades. Desunida, a Nação se desintegra N'um fundamentalismo evangélico Que ainda amaldiçoa a pele negra. Dos generais, de novo o sonho bélico D'entrar em território fronteiriço Ou arrastá-lo n'um jogo maquiavélico. Entrementes, o povo já submisso Tolera que se mate e se torture, Como fosse patriota tal serviço. Mas homem com outro homem configure Uma abominação contra a Natura, Onde assassine ou exija que se cure! E, evocando do Apóstolo a luz pura, Com Doutrina cristã e militar S'ensine nas escolas a Escritura. Se mesmo contra Deus alguém ousar Ainda escrever seus versos satânicos Não deixe algum censor os apanhar. Tempos mudam; as mentes, não... Tirânicos Os modos de calar a quem escreve, Enlouquecendo-o com cismas e pânicos. No mais, nunca se julgue a pena leve D'este que sempre às voltas com escritos Tem p'ra si que longa a arte e a vida breve. Poetas... Se no horizonte d'olhos fitos, É sabermos ter logo de fugir Ouvindo a multidão gritar: Malditos! Betim - 06 11 2018

terça-feira, 6 de novembro de 2018

MALDITOS! n°4

MALDITOS! n°4

Foi então, do profundo abismo, qu'eu
Tive a visão do fim de tudo e todos
Pós-que o sol trás às nuvens s'escondeu.

A noite fez-se eterna nos engodos
D'um extremista, homem de bem ou ambos
Para vencer por todos meios e modos:

Os narcotraficantes com escambos
Mais os supremacistas pelas armas
Contra negros, asiáticos ou jambos...

Seguem todos às voltas com seus carmas,
Fomentando desastres para, enfim,
Ouvir sete trombetas soando alarmas.

Fazem o escatológico festim:
Em celebrações de ódio genocida,
Urgem d'Humanidade o triste fim.

Rudes, vêm vomitar sobre a avenida
Toda espécie d'estúpida revolta
Tendo absoluto horror da própria vida.

Como fossem corcéis à rédea solta
Posta em carga de audaz cavalaria
Vão levando violência à sua volta.

Irmanados na ardente primazia,
Impõem enfim seus males a oprimidos
Embora revestidos de ousadia

Longe, escuta-se o pranto dos vencidos,
Bem como outros tantos uivos e ais
Já n'um clamor uníssono vertidos.

Partem agora para nunca mais
As utopias d'uma terra justa
Onde, sem males, todos são iguais.

Curva-se a uma ilusão que nos assusta
Pelo que nos pretende distinguir
Por entre bons e maus à face augusta.

Senhores do presente e do porvir,
Os bárbaros já uivam sob a lua
E clamam por façanhas de se ouvir...

Jactam-se sobre gente seminua
Que vaga pelas sombras da cidade,
Por moradores d'esta ou aquela rua.

Ameaçam, com toda a propriedade,
Àqueles que muito pouco têm...
Certos de que são donos da verdade!

Pois bodes expiatórios lhes convêm
E as cabeças jogadas contra o asfalto
Mal sobre seus pescoços se sustêm...

Avançam sobre o douto e sobre o incauto
Céleres em calar todas as vozes,
Nos mantendo em constante sobressalto.

Vão vindo como as hordas mais ferozes
Sempre com mais exércitos por trás,
Fazendo correr sangue feito algozes.

Com guerra, vêm impor-nos sua paz
E após jogar na vala mais comum,
Onde pouco importa quem lá jaz.

Milhões vociferando como se um
Os mesmíssimos ódios e violências;
Indo apressados p'ra lugar nenhum.

Esvaziaram as suas consciências
Berram d'olhos vidrados para além,
Indiferentes já às consequências.

Culpa de todo mundo e de ninguém,
Co'as mãos sujas de sangue dizem ser
Maldade contra o "mal" acto de bem...

Vêm em nome de Deus estremecer
-- Frase após frase infeliz --
Amizades a ponto de as perder.

Clamam todos por Deus n'esse país!
Como o Senhor amasse uns e outros não.
Sem embargo, Ele nada faz ou diz...

Betim - 06 11 2018

CAÇA ÀS BRUXAS

CAÇA ÀS BRUXAS

Já ardem as fogueiras junto ao templo
Onde à noite se reúnem homens bons.
Querem queimar as bruxas com seus dons
E às moças todas dar devido exemplo.

Expostas, eu atônito as contemplo
Longamente injuriadas nos frissons
D'um juiz a lhes pintar sem entretons,
Ainda qu'ele mesmo contraexemplo!

Culpadas, condenadas e perdidas:
-- "Nem no inferno seriam admitidas!" --
Ouço dizerem seus acusadores...

Terminado, os bons voltam para os seus
Satisfeitos em ter servido a Deus,
Reforçando às mulheres seus pudores.

Betim - 06 11 2018

PAZ DE CEMITÉRIO

PAZ DE CEMITÉRIO

Cruzes plantadas pelo campo santo
Nos silenciam sobre aqueles mortos.
Marcam indiferentes aos absortos,
Que vêm lhes visitar com ou sem pranto.

Nomes foram inscritos, entretanto,
Nos madeiros pendendo já meio tortos...
E em jazigos de pedra, com confortos,
Os ricos encontraram seu recanto!

Nenhum d'eles reclama do que tem,
Ao contrário dos vivos que, revoltos,
Cedo ou tarde vêm dar aqui também.

Igualmente, os estúpidos e os doutos,
-- Mortos e quietos como mais convém --
Dormem ora na Paz dos Céus envoltos.

Betim - 06 11 2018

DEMOCRACIA À SOMBRA DOS FUZIS

DEMOCRACIA À SOMBRA DOS FUZIS

Com a eleição do ex-militar Jair Bolsonaro à Presidência da República, o povo brasileiro passa a conviver novamente com o risco d’um regime autoritário. Pela primeira vez desde a Redemocratização, um governo está sendo composto com generais do Exército e notórios membros do Judiciário, sinalizando para a população um claro divórcio com as classes políticas tradicionais e os movimentos sociais. Ademais, o homem público Bolsonaro se celebrizou declarando, entre outras coisas, a necessidade de grandes mudanças na sociedade mediante o fechamento do Congresso além do elogio ao Período Militar. O quanto esse estado de coisas representa enquanto risco ao processo democrático será visto ao longo dos próximos anos.

Muito tem se discutido nos últimos dias sobre o sentido de ser ou não ser  RESISTÊNCIA. Embora o discurso de alguns veja n’essa movimentação o choro de maus perdedores, não são poucos os que observam com preocupação o desenrolar dos fatos. Não se trata apenas o trauma de se perder eleições maculadas com práticas de caixa-dois e manipulação de ambientes virtuais, mas antes a perplexidade diante da agenda conservadora e mesmo superficial que tem sido apresentada à opinião pública. Fala-se em RESISTÊNCIA como forma de demonstrar a insatisfação das minorias que se sentem desrespeitadas e ameaçadas pelas manifestações diárias de ódio e indiferença que se presencia. É RESISTÊNCIA, ainda, a palavra que orienta a reação ao discurso que criminaliza o ativismo de direitos humanos e de justiça social. De fato, o que se percebe no governo em formação é pressa em impor mudanças controversas nas políticas públicas de desarmamento, adolescência, acesso ao aborto legal e segurança pública enquanto as grandes questões econômicas como a privatização de estatais estratégicas e os marcos regulatórios da mineração e do agronegócio são guardados a sete chaves. Em termos gerais, a população se dá conta aos poucos que entregou um cheque em branco a um desconhecido sem muito compromisso com suas reais necessidades. Evidente que sua paciência será curta e as pesquisas de opinião tendem a manifestá-lo com a eventual manutenção da crise econômica e desemprego nos próximos seis meses.

Todavia, esse não é um governo normal. Acertar ou errar em políticas públicas jamais deveria pôr em risco a ordem institucional, o que, aliás, não concorda com as linhas de pensamento já defendidas por esses que agora nos governam. Não se trata apenas de bravatas infelizes contra nosso parlamento ou nosso supremo tribunal. Trata-se d’um modo de se fazer política ao qual nos desacostumamos, isto é, à sombra dos fuzis. Com efeito, às dificuldades normais de se compor maiorias no Congresso vêm se somar a falta de habilidade ou mesmo vontade de negociação que Bolsonaro e os seus têm demonstrado. Além do quê, jamais se deve esquecer quem é o seu vice e como se já impuseram pela força n'um passado recente aqueles que o cercam. Corremos o risco de assistir o futuro governo apagando incêndios com inflamáveis até incendiar o país para que os bombeiros de verde oliva se sintam obrigados a agir... Ser RESISTÊNCIA hoje, mais do que nunca, é defender uma democracia que se encolhe diante de ameaças reais. Urge-nos inteligência e sensibilidade para denunciar sistematicamente as mentiras e contradições dos discursos autoritários, sempre buscando enxergar n’um horizonte mais amplo para onde os manipuladores de plantão pretendem levar a opinião pública.

É isso.

Betim – 06 11 2018

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

CINÁBRIO

CINÁBRIO

Todo o sangue vertido do dragão
Escorrera pela forjas de Vulcano
Até petrificarem, salvo engano
Em límpidos cristais de vermelhão.

Os homens s'encantaram desde então
Co'o rubro pigmento soberano
Onde, em forte desvio de seu plano,
A luz aprisionada faz clarão.

D'estarte pela cor ensimesmada
Os olhos logo veem o ser alado,
De cujo sangue a força é revelada.

Reluz desde o infinito outro passado
Ainda, pela pétrea e só jornada,
Capaz de revelar d'homens o Fado.

Betim - 05 11 2018






domingo, 4 de novembro de 2018

DE PÉS JUNTOS

DE PÉS JUNTOS

Ele jurou. Não apenas pelos céus
Ou nem "por esta luz que me alumia!"...
E jurou, "de pés juntos", qual dizia
Minha finada avó por sob os véus.

Como o acusado n'um banco de réus
Ou como o cristão-novo junto à pia.
Verdade verdadeira sim -- dir-se-ia --
A de doutor dar fé; tirar chapéus...

E, embora fosse laico o juramento,
Evocava o Senhor todo momento,
Por lhe fazer o Altíssimo fiador.

Ao final, convencendo tudo e todos,
Traiu, mentiu e baniu de muitos modos,
Distorcendo a verdade ao seu sabor!

Betim - 04 11 2018

PENINSULAR

PENINSULAR

À tarde sigo ao farol:
No extremo peninsular
Se vê igualmente o sol
Nascer e morrer no mar.

Costão avançado às ondas...
Enfrentando o oceano à terra
Pergunto sem que respondas:
-- "Mar, por que de tanta guerra?"

"Por que agitado me assombras
Co'as vagas a ir e vir
Enquanto a tarde nas sombras
Apressa o sol a partir?"

"Por que furioso levantas
Montanhas contra o rochedo
Se só a Neptuno cantas
O teu profundo segredo?"

"Ouve, mar, o vento uivante
Onde as gaivotas dançando
Vêm saudar o navegante
Refesteladas em bando!"

"Ouve as doçuras das flores
Tão agrestes a irromper
Das rochas onde primores
Vêm em cores oferecer."

"Descansa de tua faina
Brutal de banhar a costa
E mais teu ardor amaina
À praia que se desgosta."

"Cuida que a noite caia
N'uma paz crepuscular
A ver o sol que desmaia
Nascer e morrer no mar."

Peruíbe - 20 07 2018

sábado, 3 de novembro de 2018

CANÇÃO DO COVEIRO

CANÇÃO DO COVEIRO

Cava, escava, cava a cova!
Sua, pena, sangra, lida...
Diz ao morto em despedida:
-- "Eis tua morada nova!
A última de tua vida."

Repete ele um canto antigo
(Elegíaco, em verdade...)
Pela funda cavidade:
-- "Eis tua morada, amigo,
Para toda a eternidade!"

Se incerta a vida futura
D'alma que partira enfim,
Ao corpo ele diz assim:
-- "Eis tua morada escura
Onde t'encontras um fim!

Mais arruma enquanto canta...
Mais amarra seu pé junto...
Sem olhar para o defunto:
-- "Eis tua morada santa,
Onde o silêncio é assunto!"

Fechando a tampa sem dó,
Bate os pregos do caixão
E sussurra-lhe a canção:
-- "Eis tua morada só,
A sete palmos do chão...

Desce o esquife até o fundo
Feito semente plantada
À derradeira mirada:
-- "Eis tua morada-mundo,
 Tu que vais do nada ao nada!

Cobre, espalha, lança, enterra...
Fecha a cova para os vivos,
Que já se afastam altivos:
-- "Eis tua morada-terra
D'onde voltam redivivos."

Pondo o nome do sujeito,
Resta ele apenas, funéreo,
A cantar no cemitério:
-- "Eis tua morada e leito
Onde dormes duro e sério!"

Canta ainda ao falecido
Na lápide a lhe escrever
Outro epitáfio sem ler:
-- "Eis tua morada ao Olvido,
Onde tu deixas de ser..."

Canta o coveiro a canção
Que na morte faz igual
A todo humano e mortal:
-- "Eis tua morada, irmão,
Até o Juízo Final!

E ao fim da canção coveira
Quando o silêncio se faz
Encerra àquele que jaz:
-- "Eis tua morada inteira
Onde descansas em paz!"

Belo Horizonte - 02 11 2018

ORTODOXIA

ORTODOXIA

Duplipensar católico ou marxista
No qual, ora o indivíduo; ora a doutrina
Expressa uma verdade vespertina
Acerca e enfim de tudo quanto exista.

Deveras, eis a ideia posta em revista
Quando ao crivo d'um sistema se refina!
Parece antes palavra clandestina,
Cujo verso ao censor após despista.

Percebe esquizofrênico o pensar
Quem tão-só se limita ao já pensado
Com vozes bem distintas ao falar.

Visto que, para além de certo e errado,
Sua própria opinião se faz calar
Sob outra mais correta do passado...

Betim - 03 11 2018

MALDITOS! n°3

MALDITOS! n°3

Peno eu -- três ou quatro gerações --
Amaldiçoando todos no pecado
Que nos predestinou junto aos vilões!

Deveras, parvo e obscuro antepassado,
Pus minha iniquidade sobre os meus
Uma vez para sempre amaldiçoado...

Antes já natimorto entre os plebeus
Que agora constranger-nos desde o gen
Viver em guerra infinda contra Deus!

Como ignorasse d'onde a bênção vem,
Sem temer me cobrir de pestilências...
Maldito, escolho o mal e evito o bem.

Ao desdenhar de Deus suas violências
Sobre mim e meus tristes descendentes
É que busquei nos vícios experiências.

Uma vez condenado, ranjo os dentes
Urrando contra as hostes celestiais
E a multidão submissa de seus crentes.

Sim, vêm me perseguir feito animais
Pois co'a marca de Caim, homem de cor,
Com os filhos de Cam eu ergui baais!

Excluído do povo do Senhor,
Sigo a errar d'outro lado do Jordão
Como a face d'opróbrio e do terror:

Quem de longe me vê na imensidão
M'escojura qual visse o deus Moloque
Com chifres a queimar na escuridão!

E vem me apedrejar sem que o provoque
Para que assim me afaste mais ainda,
Pintando-me um demônio sem retoque.

Certo que minha culpa jamais finda,
Aos olhos d'estes homens bons e justos
Convém lhes evitar a terra linda.

Vagando nos desertos entre arbustos
A medo de topar quem quer que seja
E alerta de perigos e outros sustos...

Resta rogar a Deus, por onde esteja,
Que me mate antes qu'eu, de todo aflito,
Devolva ao mundo o mal que me deseja!

Só sei não ver justiça no infinito
Expurgo de más culpas cuja pena
Me faz eternamente ser maldito.

Betim - 03 11 2018

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

GATILHOS

GATILHOS

Deus! Quanta neurociência para nada?!
Ferrar a mente e após manipulá-la...
Quanta miséria cabe n'uma fala
Que abertamente faz d'alguém escada?!

Buscando uma reacção mesmerizada,
Apenas vende ideias enquanto fala
Desejoso de a ouvir quando se cala
Repetida e, por fim, amplificada.

Ao vício de querer-se aprovação,
Com curtidas, aplausos ou joinhas
Constrói outra forçada interação...

Tudo para induzir forças daninhas
Capazes de alinhar-nos a opinião
Em torno das propostas mais mesquinhas.

Betim - 02 11 2018

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

CAUSA MORTIS

CAUSA MORTIS

Morrem hoje, de causas naturais,
A decência e a coerência do Juízo.
Se pelos fins estão de sobreaviso,
Ora os princípios já não valem mais.

Despindo a toga, veste alfaias reais
Ou o capuz do verdugo se preciso...
Enquanto o preconceito e o prejuízo
Se espelham face a face como iguais.

Justiça é um ideal, não um poder.
Porém, quando se coopta o Judiciário,
Longe o justo ao legal faz parecer.

Salvo as disposições já em contrário,
Se a polícia à política se ater
O povo é quem será o presidiário!

Belo Horizonte - 01 11 2018