terça-feira, 31 de março de 2020

A OLHOS VISTOS

A OLHOS VISTOS

Foi bem diante de nós; à nossa frente.
E sem que nós nos déssemos por conta.
Fomos nos afastando sem afronta
Ou mesmo sem um mínimo incidente.

Mas quando dei por mim, indiferente,
Revi nosso viver de ponta a ponta...
Tampouco te fizeste então de tonta,
Negando o que fazemos tão-somente:

Não há presente, sim muito passado.
E os anos que passamos lado a lado
Mascaram o actual distanciamento.

Pois é... Nos entediamos de tal forma
Que só temos d'um ao outro como norma
Vivermos tudo menos o momento...

Betim - 30 03 2020

UM CORAÇÃO PURO

UM CORAÇÃO PURO

Talvez seja, de facto, irreal virtude
Pretender manter puro o coração,
Se é tudo n'essa vida uma ilusão,
Sobretudo para aquele que se ilude...

Alguns chamam "maldade" a inquietude
Em antever dos outros a intenção:
Presumir inocência fosse opção
Ninguém hesitaria ante o desnude.

Com ou sem Deus, buscasse a liberdade
D'haver quanto a ternura mais acalma,
Enquanto a insegurança à mente invade.

Ao acolhimento do outro elevo a palma
Sem julgar se bondade ou se maldade
Aquilo que lhe passa por sua alma.

Betim - 03 03 1992

segunda-feira, 30 de março de 2020

EM TODO CASO

EM TODO CASO

Ao ocaso do acaso onde o amor se viu
Entre a melancolia e os céus lilases.
Inútil discutir; fazer as pazes,
Se tudo é decadência... Tudo é vil...!

Ao acaso do ocaso onde o sol partiu
Já à procura de almas mais audazes.
Eis: A lua tem ciclos; o amor, fases...
E o nosso finalmente em si caiu.

Graves, como convém, nos afastemos
Em direções distantes e distintas
A fim-de que nós sós nos encontremos.

Em todo caso, espero que tu sintas
Por este mesmo ocaso que ora vemos
As nossas emoções em vão retintas.

Betim - 12 12 1992

ECLIPSADO

ECLIPSADO

Se um outro astro ofuscando teu olhar
-- Onde, à maneira mesma d'um eclipse,
Prenuncie um falaz apocalipse,
Que nos findasse tudo sem findar --

Talvez tu me deixasses eclipsar
Ao alinhar-nos, amantes, na hora tríplice...
Vejo à frase omitir-se n'uma elipse
Esse amor sem objetos para amar.

Olhas e não me vês senão penumbra
Atrás d'esse novo astro que deslumbra,
E todavia, em trânsito, passando.

No mais, nada será como antes fora...
Eclipsado, sem luz, fico de fora:
Alguém não mais amado ainda amando.

Betim - 10 01 1993

domingo, 29 de março de 2020

À NANQUIM

À NANQUIM

Busco-me ao rabiscar: Bico de pena
No pálido papel talvez revele
Algo de mim nas linhas tortas d'ele,
Enquanto o gestual se me apequena.

Paisagem interior; obscura cena
Onde a tinta s'espalha à flor da pele.
Um contraste absoluto fora aquele,
Pois traço rebuscado da hora plena.

Aí, encontre sentido onde não há
Ou dê significado ao que não tem
Mesmo que não pareça que haverá.

Passem por ideogramas para alguém
Que os traduza eloquentes, tarde já,
Da mídia indiferente que os sustém.

Belo Horizonte - 15 10 1992

sábado, 28 de março de 2020

MEMBRAS

MEMBRAS

Pelo sim pelo não, no feminino.
Reforçar que as mulheres fazem parte
E têm contribuído ao estado da arte
Apesar dos azares do destino.

Impõe-se a esse falar tardo-latino
Que eleve o feminil como estandarte,
Celebrando a mulher em toda a parte
E observando às palavras mais refino.

Até porque, não s'espera senão d'elas
As participações mais cuidadosas,
Bem como inovações entre procelas.

E embora mais espinhos do que rosas,
Estes ramos em suas mãos singelas
Façam as nossas vidas mais formosas.

Betim - 28 03 2020

CORES D'AMOR E AMAR

CORES D'AMOR E AMAR

sei de cór
a cor das tuas faces
coradas

sei de coração
que carmas descorem
tuas carnes

sei o sabor
da carne em teus lábios
carnudos

sei da coragem
de te criar cristais
de lágrimas

sei de crer
que de cór e coração
corei teu rosto

Belo Horizonte - 20 04 1992

MAR ICÁRIO

MAR ICÁRIO

Alimentando de sonhos sua mente,
Enchia de visões seu triste lar.
Logo, só ao sol, faz-se-lhe agitar
Asas de cera e penas, displicente.

Voa alto, preocupando-se somente
Em do sol forte não se aproximar,
Enquanto atravessava o imenso mar
E avistava terras jônias do oriente.

Contudo, tendo aberto todo o céu,
Suas asas derretem sob o sol
Até que se precipite n'um tropel.

E o mar que testemunha seu estol
Sepulta seu destino tão cruel
Onde de Ícaro o nome fez-se atol.

Belo Horizonte - 30 07 1992

À PARTE

À PARTE

Se partes me suporto entorpecido;
Perdido d'entre as pedras do caminho...
Se ponho a recompor-me o desalinho
Suponho-me pior do que hei vivido.

Se posto-me de todo surpreendido
Ao procurar embalde o teu carinho,
Somente por sem ti estou sozinho,
Embora o coração sinta partido.

Se partiste em promessas de delícias,
Apartado da luz de teu sorriso,
Passei noites insones sem carícias.

À parte tudo, volta pois preciso...
Passo o dia a sonhar-te impudicícias
E perder-me o que resta de juízo.

Belo Horizonte - 10 09 1992

quinta-feira, 26 de março de 2020

NARIZ-FELIZ

NARIZ-FELIZ (nosegay)

DUETO:
Cheira a fragrâncias de jovem delfim…
Rosa mosqueta, astromélias e lírio.
Vêm perfumar o amoroso festim
Para gozarmos em doce delírio.

ELE:
Flores recolho em secreto jardim:
Rosa mosqueta, astromélias e lírio.
Para ofertar à senhora de mim
Hinos d'amor em lugar de martírio…

Trago também do lugar onde vim
Rosa mosqueta, astromélias e lírio.
N'um ramalhete redondo, pois sim,
Faça feliz um nariz que no Empíreo!

Encham d'aromas e amores assim,
Rosa mosqueta, astromélias e lírio.
Mais eloquentes do que esse latim:
Santas palavras no altar sob o círio…

Eis-te fragrância e elegância por fim:
Rosa mosqueta, astromélias e lírio.
Vêm adornar-te o vestido em cetim
Sobre a alcatifa de púrpuro tírio!

DUETO:
Cheira a fragrâncias de jovem delfim…
Rosa mosqueta, astromélias e lírio.
Vêm perfumar o amoroso festim
Para gozarmos em doce delírio.

ELA:
Como uma rainha d'entre ouro e marfim,
Rosa mosqueta, astromélias e lírio
Trago nas mãos perfumosas enfim,
Onde a beleza o perfeito colírio.

Surjo na templo no soar do clarim!
Rosa mosqueta, astromélias e lírio
Prendo nos dedos por trás do rubim:
-- Noiva a ostentar o brasão seu argírio!...

Sinto ceder sob aríete o fortim…
Rosa mosqueta, astromélias e lírio,
Vós que me viestes de rico confim,
Dai-me fragrâncias do campo palmírio.

Arfo de ardores em face do fim…
Rosa mosqueta, astromélias e lírio
Flores d'alvura e inocência sem fim
Possam servir de oferendas a Píreo!

DUETO:
Cheira a fragrâncias de jovem delfim…
Rosa mosqueta, astromélias e lírio.
Vêm perfumar o amoroso festim
Para gozarmos em doce delírio.

Betim - 25 03 2020

quarta-feira, 25 de março de 2020

O GOVERNO ACABOU

O GOVERNO ACABOU

-- "Bolsonaro, você não recebeu a mensagem que seu filho mandou para você"
-- "Você é de que nacionalidade?
-- "Eu venho do Haiti. Sou brasileiro."
-- "Pode continuar."
-- "Bolsonaro, acabou! Você não é presidente mais."-- e repetiu--"Você não é presidente mais."
--"Desculpa, mas eu não estou entendendo." --respondeu, com sinceridade, em face da pronúncia do haitiano-brasileiro.
-- "Você está entendendo bem, estou falando brasileiro (sic). Bolsonaro acabou. Você está recebendo mensagem no celular. Todo mundo, todo brasileiro está recebendo mensagem no seu celular. Você está recebendo as mensagens que seus filhos mandarem para você. Você não é presidente mais, precisa desistir. Você está espalhando o vírus e vai matar os brasileiros", disse o haitiano para o Presidente. […]

Esse diálogo inusitado aconteceu em Brasília faz uma semana. Na noite de 17 de março, terça-feira passada, em frente ao Palácio do Planalto. Havia, de facto, revolta de muitos setores da sociedade brasileira pela convocação por parte do Presidente de manifestações de apoio ao seu governo --mesmo contrariando as recomendações do Ministério da Saúde em função dos primeiros casos da Covid19 então diagnosticados no país e do agravamento da transmissão do novo corona vírus no continente europeu. Revolta esta agravada pela participação efetiva do Presidente, no dia 15 de março, das manifestações. Mesmo tendo sido declarado já haver possível contaminação comunitária nas grandes cidades brasileiras, Bolsonaro aproximou-se dos manifestantes, apertou a mão de apoiadores, tirou dezenas de fotos e permaneceu no meio d'eles por muito tempo. As fotos e vídeos encheram o noticiário como a própria definição de temeridade.

Hoje, 24 de março, Bolsonaro fez um pronunciamento no qual deixou patente seu posicionamento contrário em relação ao esforço que a sociedade brasileira tem feito em mitigar as perdas humanas diante da pandemia da Covid19. Apesar de todo estresse do confinamento e das enormes privações materiais a que a população está se submetendo. Empresários e trabalhadores estão desesperados em relação aos custos econômicos do confinamento, mas as notícias que vêm da Europa -- e, mais recentemente, também dos Estados Unidos-- se impõem diante do cenário apocalíptico anunciado pela própria Organização Mundial de Saúde para as próximas semanas e meses. Ouvir o Presidente da República minimizar a pandemia, mais uma vez, como "gripezinha" e criticar a mobilização feita por Governadores e Prefeitos em proteger a população como "histeria" calou realmente muito fundo na alma das pessoas. Não faltou quem reagisse dizendo que Bolsonaro está desconectado com a realidade ou sendo simplesmente irresponsável. Os números divulgados hoje pelo Ministério da Saúde -- ;2.201 casos confirmados e 46 mortos -- mantêm no Brasil o cenário de escalada da crise sanitária em moldes com as crises italiana e espanhola. Um país que não tem sequer álcool em gel e máscaras disponíveis para a proteção das pessoas assiste o Presidente da República se opor ao isolamento social que tanto tem custado às famílias como se fôssemos tolos manipulados pela Mídia.

Quando se afirma que O GOVERNO ACABOU, fazendo eco ao haitiano que abordou o Presidente há uma semana atrás, não é por esperar que alguma acção do Supremo ou do Congresso vão, efetivamente, apear Bolsonaro do poder. Ao contrário, haverá a contemporização costumeira e ele permanecerá envergando a faixa presidencial. Sem embargo, tudo o que disser ou fizer d'oravante será cada vez menos importante para a vida das pessoas.
A partir de hoje, a manifestação dos governadores e prefeitos se reveste d'uma relevância muito maior, pois com erros e acertos, estão enfrentado a crise sanitária, não a ignorando. Bolsonaro se tornou irrelevante n'um momento em que sequer é capaz de fazer uma Medida Provisória de ordenamento econômico como a n° 927 --publicada ontem cedo e revogada de tarde!-- sem trazer ainda mais confusão para o já caótico quandro que presenciamos. De tanto dizer e desdizer diante dos governadores e prefeitos, Bolsonaro simplesmente não lidera o consenso da sociedade em se proteger, sanitária e economicamente, da pandemia que assola o mundo. Aliás, chega a ser genocida o contraste entre a autoridade brasileira e as autoridades do resto do mundo: Um esforço imenso em isolar e testar as pessoas para direccionar as acções de saúde enquanto aqui o confinamento é confundido com férias forçadas e desnecessárias, segundo o Presidente.
Bolsonaro não governa. Independente do que tenha dito em seu pronunciamento hoje, ninguém deve fazer o que orientou. Ninguém vai flexibilizar o confinamento por causa de suas palavras. Ninguém vai investir um centavo em coisa nenhuma diante de seu chamamento à normalidade. Simplesmente não vai acontecer. Todos -- empreendedores, desempregados, precarizados, investidores e até meros observadores -- vamos seguir as orientações de governadores e prefeitos, para o bem ou para o mal. Todos continuaremos acompanhando atentamente as notícias trazidas pela impressa nacional e internacional acerca dos desdobramentos da crise sanitária que atravessamos. Independente se ao fim morrerem cem ou cem mil, as acções de segurança sanitária se impõem diante d'uma doença nova, altamente transmissível e sem medicamentos testados com sucesso. É preciso que a comunidade científica e os centros tecnológicos tenham tempo para desenvolver soluções sob pena de assistirmos a superlotação de hospitais e filas de caminhões funerários.

Felizmente ou não, a Presidência da República se tornou um cargo decorativo. Tão decorativo quanto seu retrato oficial de Presidente da República na parede do cenário do vídeo de inspiração nazista estrelado pelo ex-secretário especial da Cultura, o execrado Roberto Alvim… Deixem Bolsonaro no Palácio do Planalto para satisfazer seus apoiadores ruidosos e fanáticos. Não faz diferença mais.

Belo Horizonte - 24 03 2020

terça-feira, 24 de março de 2020

SOBRESSALTO

SOBRESSALTO

Pulo da cama e pergunto aos fantasmas: 

Que dor é essa que me fustiga o coração?! 
Que peso é esse que carrega meus olhos?! 
Que sonhos são esses que não me deixam dormir?! 
Que loucura é essa que não posso controlar?...! 

E houve apenas silêncio na noite vazia...

Betim - 19 02 1992

AMANHECER

AMANHECER

Admiro o fim da noite da janela.
Desce às serras a lua já minguante,
Enquanto n'um clarão chega, destoante,
A aurora airosamente clara e bela.

Melancólica a lenta vinda d’ela,
Perseguida p'lo sol ainda infante,
Que vai amanhecer qualquer instante,
Enquanto o firmamento se desvela.

Antes do sol nascer detrás do ramo,
Eu tive a paz que há muito não sentia,
Alheio ao que lamento ou que reclamo

Começa em soledade mais um dia...
Na cabeça, saudades de quem amo;
Nos olhos, longe o sol resplandecia.

Betim - 10 12 1991

SERENATA

SERENATA

Meu olhar pelo teu tem procurado,
Tanto tua beleza em mim atua...
Sigo te procurando pela rua
Para te olhar e ver enamorado.

Deveras, eu pareço enfeitiçado...
E à noite, na luz pálida da lua,
Eu encontro a formosa forma tua,
Debruçada à janela do sobrado:

-- "Divina, escuta a voz de teu fiel!
A teus pés eu suspiro essa cantiga
Como súbito eu subisse até o céu..."

"Junto a ti, minha língua vã se abriga
E busca de teus lábios o troféu...
Eis, linda, quanto amor um peito obriga!"

Belo Horizonte - 12 12 1991

LUGAR-COMUM

LUGAR-COMUM 
Lugar algum 
Ou lugar nenhum? 
-- Eis a questão. 
Em algum lugar 
Ou em nenhum lugar? 
-- Eis a contradição... 
Lugar no teu mundo 
Ou teu mundo meu lugar. 
-- Eis a revelação! 
  
Julgas-me do teu lugar 
Ou julgado sou por teu lugar? 
-- Eis a inquisição. 
Sou solitário se sem lugar 
Ou sem lugar se sem ti? 
-- Eis a desolação. 
Estou em nenhum lugar 
Ou nenhum lugar só o teu? 
-- Eis a perdição. 
Belo Horizonte - 05 05 1992 


segunda-feira, 23 de março de 2020

EMBUSTE

EMBUSTE

Tu, com que sortilégios m'encantaste,
A ponto d'eu querer bem o meu mal?
Roubaste-me de mim todo, afinal,
Passados anos e anos de desgaste.

Tomar como tesouro um outro traste,
Decerto é algum carma espiritual.
Tu me sugaste tudo. No final,
Restou a vida cinza, sem contraste.

Eu sei que voltarás quando preciso,
Mas juro que estarei de sobreaviso
Para negar-me a ti o que restou.

Pois nem uma ilusão tão destrutiva
Haverá-de cegar, pondo à deriva
Meu amor que era pouco e se acabou.

Betim - 23 03 2020

CONFINAMENTO

CONFINAMENTO

Eu ora bocejo; ora m'espreguiço,
E tento não pensar no que receio.
Como pudesse estar de todo alheio
Ou senão bem distante de tudo isso.

Logo, porém, s'escuta o rebuliço
De vozes findando o meu recreio.
Nem mesmo a solidão que vão pleiteio
Parece m'evitar tal desserviço.

Assim, não há trabalho nem descanso,
Apenas uma espera desmedida,
Entremeada de dúvidas e ranço.

O tempo hoje faz mais parte da vida
E justo quando mais desesperanço
Eu conto ao coração cada batida.

Betim - 23 03 2020

domingo, 22 de março de 2020

MEIA IDADE

MEIA IDADE

Ali pelos quarenta, depois de a vida já ter dado errado, a gente percebe que coisas como carreira, relacionamento e status não nos levaram aonde pretendíamos. Ou melhor, suas promessas de felicidade e bem estar não se cumpriram. Chega uma hora em que se aceita que mesmo a realização de sonhos ou ideais não sejam mais o bastante.

Há uma certa melancolia no ar. Não é apenas a insatisfação de fundo a nos acompanhar feito uma melodia triste e lenta em cada coisas que fazemos ao longo do dia, mas a compreensão de que não somos tão bons quanto pensávamos e que isso sequer faz diferença. O mundo segue com ou sem a gente para aonde tem-de ir, como se fôssemos meros passageiros em sua trajetória espaço afora. Não mudamos o curso das coisas, apenas tentamos sobreviver, com muita dificuldade, a inundações, deslizamentos, erupções, sismos, tsunamis, carestias, revoluções, guerras, doenças e, agora, pandemias. Enfim, não é nada fácil existir…

Em todo caso, somos bilhões: Humanos. Não importa idade, gênero, etnia ou classe social todos atravessamos a existência com uma boa dose de inconsciência, aceitando o mundo que encontramos ao nascermos e transformando-o com nossas pegadas sobre a casca d'esse planeta singular que o Universo formou com a mesma indiferença que fez o desértico Marte ou gasoso Saturno. Aceitamos as coisas como são e tentamos mudar aquelas que abreviam os nossos dias. Por isso a transformação da natureza virgem em cidades e campos ou a edificação de habitats. Sim, tudo o que fazemos n'este mundo é transformá-los para podermos viver mais e melhor. Não sabemos bem por quê, mas é o que fazemos.

A noção de que todos lutamos por uma vida melhor está relacionada a tudo que temos feito na vida, não obstante se furte a qualquer racionalização. Ter mais não nos faz mais felizes do que ter menos. Dá um certo desânimo perceber que mesmo trabalhando todos os dias não viveremos melhor os próximos dez anos do que os dez últimos. Ao contrário, sem as ilusões que acalentamos de viver grandes experiências e realizar grandes coisas, o que resta é o quotidiano atravessado por infortúnios de quem se aproxima da velhice. Por via de regra, o ser de meia idade é um cínico que ri do amor, se protege do sexo e defende o governo. Sim, chegou a idade de ser bombeiro sem ter sido incendiário… Eu, de meu lado, aceito que seja assim. É um mistério, muito anterior a mim, esse buscar sobreviver a qualquer custo mesmo que não faça sentido. Eu me sinto desinteressado demais pelas pessoas para acreditar que esteja n'elas minha esperança. Não, não fico na expectativa de amores, orgias ou batalhas. Não me quero mais escravo da libido ou da adrenalina para suportar, prazenteiramente, o vazio da vida. Tudo me divirta, mas nada me possua.

A própria ideia de meia idade já expressa um padrão existencial no qual a vida consciente -- para a maioria, ao menos -- e projetasse até dos oito aos oitenta anos. Antes, a primeira infância com sua dependência extrema e identidade rarefeita. Embora impúbere, a constituição do Eu profundo que ensaia decisões e preferências estabelece o sentido de quem somos. Meia idade, portanto, é supor que se tem pela frente ao menos o tempo que já se viveu, descontados aqueles anos em que nós não éramos nós, sim o filho ou filha d'alguém. Quando ser filho se torna secundário, aquele que se é aflora com seu turbilhão de vontades e gostos pessoais até estabelecer uma identidade pela qual se é reconhecido. Sem embargo, chegar à meia idade é ser capaz de avaliar a caminhada feita e, a partir d'isso, avistar na distância o caminho à frente.

Se dissemos que a vida deu errado é porque todas as vidas dão errado. Ninguém chegou aonde pretendia quando planejou, lá no passado, o seu futuro. Mesmo que tenha conseguido muitas realizações, depois de vivenciar o sucesso, percebe-o relativo; insuficiente. O grande amor compartilhado se esvanece… O sucesso profissional torna-se um fim em si mesmo, escravizando… A sexualidade desprotegida leva ao anarquismo pessoal insustentável. Ali pelos quarenta anos tudo o que se quer é sossego! O grande amor é uma grande decepção? Dane-se! A carreira é uma corrida de cavalo atrás da cenoura? Que seja! Entregar-se a muitos é a maneira mais perfeita de não se possuir a si? Que a solidão nos traga a paz e o autoconhecimento! Repito: a vida já deu errado. Agora, o que me interessa são os lilases do entardecer e a lua surgindo sobre o mar. Não tenho dó de mim nem de ninguém. Usufruo da vida com a calma de Diógenes, passando ao largo dos deístas e seu pietismo opressor. Homem de meia idade, chego a um momento de perplexidade de quanto vivi. Na verdade, chamar isso de meia idade é quase um eufemismo optimista, dando a entender de que ainda há um segundo tempo para recomeçar tentando outras possibilidades. Eufemismos, como sabemos, suavizam civilizadamente os imponderáveis da vida... Não há segundo tempo, sim um incerto número de anos ao longo dos quais precisamos parar de seguir roteiros escritos por mãos alheias e procurarmos entender de que realmente precisamos para viver.

Consciente, não caio na armadilha de contar com os anos que virão como se fossem meus. Não, o futuro que me for concedido não me assegura possuir outros quarenta anos para existir. Vinte, dez, cinco, dois ou um ao menos. Não estou na meia idade porque tantos aos quarenta e poucos alcançaram a metade dos anos de suas vidas. Estou na meia idade porque já não me parece razoável olhar para frente com o mesmo olhar de entusiasmo e interesse que olhava quando tinha vinte e poucos anos. A vida, o que quer que tenha sido, já aconteceu.

Tampouco confundo meia idade com maturidade ou amadurecer. Se assim fosse, não haveria tantos coetâneos meus desesperados em parecer e agir como se vinte anos tivessem. Deveras, ter visto quatro décadas de transformações políticas, sociais e morais não capacita ninguém a ter-se como mais prudente do que os mais jovens. Ademais, não somos frutas ou coisa parecida para termos condutas mais razoáveis a essa altura da vida. Sem consciência de si ou do mundo, não faz diferença se se tem vinte ou quarenta anos: Apenas vivem para cumprir etapas dadas por outros

Meia idade ou idade média, meu momento é um segundo momento. Nada impede que minha história acabe abrupta; sem qualquer explicação. Enquanto estou vivo, todavia, procuro me divertir entre letras, minhas e alheias, na alegria de que não estou n'um certame intelectual ou coisa que o valha. Sou mediano e sou o primeiro a admiti-lo. Não cresci entre preceptores aprendendo línguas mortas e tampouco rodei pelas universidades e academias da velha Europa. Não emulei a autoconfiança yankee alavancada por montanhas de dinheiro e desprezo pela erudição. Sou mediano, mas não no meio do que quer que seja. Não sou mais que um brasileirinho fuleiro a escrever em língua portuguesa arrazoados sobre estar vivo com quarenta e poucos anos no início do Terceiro Milênio. Afinal, d'isso eu entendo algo.

Pensando bem, meia idade é apenas a idade em que o tanque de combustível da vida se encontra pela metade. Nada assegura que o auto vai durar até o tanque secar e interromper essa viagem de lugar nenhum para nenhum lugar. Não há interrupção, pois sequer havia destino desde o início. Ao morrermos, abandonamos nosso corpo-carro à beira da estrada enquanto outros carros passam indiferentes pela estrada. Não é -- e jamais foi -- estar no meio do itinerário da vida. Se este texto tem alguma utilidade pública é esclarecer isso: Não tomes como teus os anos que ainda não viveste. Meia idade não é o meio do caminho, apenas algo mais perto do fim do que o início.

Aceito meu tempo, minha idade e minha perspectiva.

Betim - 22 03 2020

sábado, 21 de março de 2020

HELENA

HELENA

Aprendi a guardar teu nome 
Para jamais o confundir de novo

Aprendi a repetir teu nome
Para ouvi-lo como se fosse música
                    como se fosse vida
                    como se fosse amor

A própria definição do amor

Belo Horizonte - 21 08 1991

SOBERANIA

SOBERANIA

Com o Príncipe a História principia,
Evocando dos céus o seu poder.
E o povo, feito massa a se bater,
É moldado por sua fantasia...

E as crônicas de cada dinastia
Repetem com monótono escrever
As ascensões e quedas a saber
E através dos milênios quanto havia:

-- "A trajetória de todo o governante
Começa na esperança sobre o Infante
E termina em atroz desilusão."

"Quando o povo, contudo, se desperta
A cabeça coroada fique alerta,
Que a História encontrou sua Razão!"

Betim - 21 03 2020

PARA TI

PARA TI

Vou pegar uma estrela co'a mão
[pr'a te dar.

Com ela vou arrancar-te lágrimas
[de teus olhos.

D'elas, eu me farei um diamante
[em meu peito.

Então, hei-de entregar-me inteiro
[para ti.

Belo Horizonte - 10 10 1991

segunda-feira, 16 de março de 2020

CACO DE VIDRO

CACO DE VIDRO

Passo a passo passando o pé descalço:
Pé de moleque sobre o asfalto quente.
E o sangue corre grosso do inocente
Depois de vacilar um passo em falso.

No meio do caminho era um percalço,
Onde a ponta cortante e transparente
Rasgava a carne funda indiferente
De quem atrás de dádivas no encalço...

Decerto alguém, por pura pilantragem,
Fez quebrar as garrafas de caninha
Depois da madrugada em beberagem..

Tenso, o menino já não se continha.
Mas sempre vem alguém na malandragem:
-- "E quem mandou não ver onde caminha?!..."

Belo Horizonte - 15 03 2020





sexta-feira, 13 de março de 2020

A UM METRO

A UM METRO

Em tempos de Covid19, as pessoas se obrigam a mudar suas maneiras n'um processo quase de reeducação. Proibidos os abraços efusivos, os beijinhos fraternos e até os apertos de mãos firmes, civilidade se tornou algo sempre a um metro de distância. Quase d'um dia para o outro, a cada encontro humano, vem a dúvida: Como cumprimentar o outro?

As notícias que nos rodeiam são, de facto, catastróficas. Com 77 pacientes diagnosticados no Brasil - atualizado às 16h20 da tarde desta 5ª feira (12.mar.2020) pelo Ministério da Saúde - e projecções que indicam milhares de contaminações nas próximas semanas, eventos e viagens planejados há meses são cancelados em todos para cantos ao passo que expedientes de trabalho e aulas passam a ser cumpridos no domicílio, à distância.

Sob o signo do medo, vivemos em hesitação. Visitar ou não os pais idosos? Implorar que eles deixem de ir à missa sob o argumento de que até o papa está gripado e, indisposto, ficou na cama?… Parece, no final das contas um péssimo bom conselho. Todos já estávamos excessivamente emparedados, seja pela falta de dinheiro da actual conjuntura; seja pela radicalização dos debates ideológicos… D'um modo ou de outro, já andávamos meio distantes antes do vírus tornar isso uma obrigação.

A pandemia de Covid19 declarada ontem pela Organização Mundial de Saúde nos encontra - nós, brasileiros -  n'um momento de extrema fragilidade: Em geral, estamos mais pobres e divididos do que há dois anos atrás. E, agora, o vírus chega em nosso quintal (palavras do ministro da saúde) subvertendo as posições à esquerda é à direita a ponto de as tornar irrelevantes. As trincheiras ideológicas escavadas são subitamente inundadas pela necessidade de isolamento físico. De modo significativo, tanto as manifestações marcadas por bolsonaristas para o dia 15/03 quanto àquelas promovidas por antibolsonaristas para 18/03 foram desautorizadas por seus organizadores evocando razões de saúde pública. As notícias mais recentes dão conta que nada mais nada menos que membros da comitiva do presidente em visita oficial aos Estados Unidos testaram positivo para o Covid19 ao regressarem. Bolsonaro, após afirmar que a pandemia era uma "fantasia" da imprensa, rendeu-se ao facto de que ele mesmo poderia estar doente e pronunciou-se contra aglomerações humanas, sobretudo aquelas convocadas por ele mesmo em favor de seu governo.


Fiquem em suas casas! - dizem as autoridades sanitárias - ainda que não deixem pão em nossas portas… É preciso sair para trabalhar e estudar todos os dias evitando hábitos que antes faziam parte do quotidiano. Atravessamos um período de reclusão em eterno questionamento se era preciso mesmo tratarmos uma simples gripe com tanto receio ou se, ao contrário, deveríamos nos enclausurarmos em quarentenas radicais sem compartilhar sequer copos e talheres com os demais membros da família. É muito difícil aceitar esse momento, mas todos sabemos que tão-logo as pessoas comecem a adoecer gravemente, o pânico instalado se encarregará do resto.

Ressalte-se que, diferente do que se vê em China, Itália, Irã e Coreia do Sul, as pessoas ainda não têm morrido por aqui. Não falta quem duvide da importância do Covid19 citando dados da dengue ou do sarampo para reivindicar uma normalidade cada vez mais distante. Não importa o quanto se deseje minimizar o que estamos vivendo, a proximidade cada vez maior do vírus nos afasta cada vez mais de quem está perto. Afinal, ninguém quer trazer a virose para si ou para seus. Não é mesmo?

N'um tempo em que as mínimas coisas têm sido politizadas, aparece uma doença que não respeita as fronteiras das nações e muito menos as convicções pessoais. Lá e cá adoecem, sem distinção. Não obstante, a necessidade de conseguir dinheiro empurra assalariados com máscaras para as ruas. Quem puder realmente ficar em casa deverá se acostumar com a solidão, enquanto quem não pode viverá em constante vigilância para evitar o contágio.

Mesas são afastadas. Cadeiras, empurradas. Salas vazias, cheias de ausentes. Cumprimentos que ficam no ar. Gestos… Vigiando as mãos. Sem contacto.

Belo Horizonte - 13 03 2020

QUEM NÃO?

QUEM NÃO?

Senão santo, bento;
Senão bento, tonto;
Senão tonto, nada...

Senão tonto, tanto;
Senão tanto, contra;
Senão contra, nada...

Senão contra, mestre;
Senão mestre, triste;
Senão triste, nada...

Senão triste, traste;
Senão traste, casto;
Senão casto, nada...

Senão casto, pasto;
Senão pasto, útil;
Senão útil, nada...

Senão útil, fútil;
Senão fútil, fácil;
Senão fácil, nada...

Senão nada, quando?
Senão nada, onde?
Senão nada, nunca...!

Betim - 11 03 2020

EU E TODO MUNDO

EU E TODO MUNDO

Ninguém é feliz.
Tudo é desencanto
Face ao próprio pranto.
Ou como o outro diz:
-- "Cada um no seu canto
Que chore seu tanto!"

Bilhões de chorões
P'los confins do mundo.
Mirando o profundo,
É como o outro em senões:
-- "Cada um lá no fundo
Nasce moribundo!"

Ricos, pobres, todos...
Vivemos morrendo.
Eu só não entendo
Os tempos e os modos!
-- "Cada um vive sendo
Ao avesso estupendo!...

Se faz o que quer;
Se diz o que pensa;
Não faz diferença
Se homem ou mulher:
-- "Cada um se convença
Ser a vida imensa...

Mas só fica o nada,
Sem sentido algum...
E o lugar-comum
É a encruzilhada:
-- "Cada um é cada um;
Ninguém é nenhum.

Logo o olho arregala
Face à dor que aflora
De dentro p'ra fora
Ou como o outro fala:
-- "Cada um tem sua hora...
Se um ri o outro chora!...

Betim - 11 03 2020





À OTOMANA

À OTOMANA

Espaçoso, relaxo na poltrona,
Enquanto bebem pela biblioteca.
No meu colo, SONETOS mais me obceca
Do que a gente graúda d'esta zona.

Tão logo a mente aos versos se abandona,
Eu folgo igual paxá p'ra lá de Meca...
A língua de ressaca se resseca
À medida que Antero me emociona:

-- Sapatos novos moeram os meus pés.
Por isso, os elevando de través
Eu me sento à otomana a noite toda...--

Explico sem que alguém me perguntasse,
Voltando para o livro em pleno impasse,
Indiferente a quem se incomoda.

Belo Horizonte - 09 03 2020

segunda-feira, 9 de março de 2020

LONGA EXPOSIÇÃO

LONGA EXPOSIÇÃO

Ela ficou ali, parada, contra a parede. Parecia ensimesmada, imersa em pensamentos tão profundos que nada no mundo a poderia tirar d'aquele transe. Era uma figura nítida: calma-mas-arguta, dir-se-ia. Só contra o fundo opaco, seu rosto se destacava com uma juventude elegante de moça que se quer mulher feita, evitando adereços que a mostrassem como as garotas de sua idade, muito pelo contrário! A elegância a que se obrigava n'aquela tarde exibia mais a pessoa viajada e vivida que ela se desejava do que quem realmente era.

Eu, confesso, fiquei observando-a longamente. Ela não se mexia; eu tampouco. De certa maneira, meus olhos se lhe tornaram duas objetivas abertas em longa exposição para, reunidas, lhe captaram a imagem n'um instantâneo d'alguns minutos. Sim, eu lhe fotografava como se fotografa as estrelas à noite! Isto é, sem pestanejar nem mudar de foco.

Completamente obcecado por sua beleza muda, eu lhe registava o rosto e o corpo inteiro: Vestia um conjunto champanha, esvoaçante, que caia negligente sobre seu corpo para lhe receber aquele e ali as saliências de suas formas. Além d'um cinto dourado, permitira-se adereços verticais como brincos de filigranas pingentes em conjunto com um colar idêntico a pender sobre o decote profundo. Tinha um corpo pequeno, mas com curvas generosas que agradeciam a brisa do verão tropical que vinha fresca ao fim do dia. Seu rosto, todavia, parecia concentrar uma calma contida de quem luta interiormente com graves resoluções. Estava maquiada, obviamente, mas o vermelho dos lábios finos e o negro do delineado do olhos castanhos eram traços finos, desenhados, não pintura. Com efeito parecia desenhado, não pintado.

Quando finalmente saímos d'aquele transe, do nada, ela me olhou diretamente, surpreendendo-me. N'uma fração de segundos ela percebeu que eu a observava e me encarou. Eu sustentei o olhar, apesar de avexado em ser descoberto, e esperei. Ela explodiu n'um sorriso aberto e espontâneo e imediatamente se virou, caminhando em direcção ao pórtico de entrada do edifício. Eu a vi abrindo a porta de vidro e desaparecer na rua da metrópole alvoraçada com o vai-e-vem de pessoas e autos no fim do expediente.

Nunca mais a vi, mas em minhas retinas ficaram gravadas o negativo de sua solitária  -- e uma inadvertida! -- longa exposição.

Betim - 08 03 2020

sábado, 7 de março de 2020

COMPADRIO

COMPADRIO

Tipo: -- "Eu te leio desde que me leias!"...
De que se vale a lira lisonjeira
Na troca de elogios costumeira,
Senão passar por belas rimas feias?

E todo aquele aplauso que grangeias
Fica como fictícia baboseira...
Mas se t'esqueço sobre a cabeceira
É mais por vozes minhas do que alheias.

Sim: -- "Eu t'escrevo desde que m'escrevas..."!
E, à pretexto de crítica admirada,
Louvo tua obra d'entre obras coevas.

No fim das contas, tudo o mesmo nada...!
Lamento até que às letras tu te atrevas
E finjamos, os dois, tal presepada!...

Betim - 05 03 2020