domingo, 31 de maio de 2020

NOME ARTÍSTICO

NOME ARTÍSTICO

O nome com que assino uma obra de arte
Pretende dizer menos de mim que a obra.
Aquele escrito à mão que ao texto sobra
Praticamente ao poema fica à parte.

Escrevo-o como se fosse algum aparte,
De cuja vida ao fim nada se cobra.
Meu nome na minha obra se desdobra
E o que fica de bom que se reparte.

Esse traço autoral que se me evoca,
Um certo desprazer quase provoca,
Não por críticas, sim incompreensão.

Porque me lendo, creem me conhecer
Aqueles que me vêm mais maldizer
Ávidos de ódio e vã contradição.

Betim - 31 05 2020

sábado, 30 de maio de 2020

VEIA POÉTICA

VEIA POÉTICA

Bêbado, o poeta serve-se de agonia
Que lh'escorre da veia em hora incerta.
Deixa sangrar... À chaga mais aperta,
Enquanto a folha em versos se tingia.

Algo haverá de torpe na mania
De se meter o dedo em chaga aberta...
Contudo, desatada e descoberta,
Da veia os versos fluem em sangria...! 

Exangue, o poeta escreve em solidão.
Logo o vinho que bebe e lhe invalida
A folha que encharcada cai ao chão.

E os versos onde pôs a alma despida
Perde ainda que sangre o coração,
No afã de por sua arte dar a vida.

Betim - 20 03 1994 

SETE DE OUTUBRO

SETE DE OUTUBRO

Quando um poeta morre, nada acontece.

Não há comoção pelo desparecimento de quem mal aparecia.
Não há dor pela perda que quem jamais se quis um ganho.
Não há pêsames àqueles que mal lhe sabiam vivo antes, discreto que era.

Poetas morrem todos os dias, ninguém se dá conta.

Todos os dias a lâmina do mundo deixa em carne viva os seus pulsos,
cuja fina pele mal se regenera para os novos cortes...

Todos os dias o abutre de Zeus -- ou o álcool da caninha... -- lhe consome o fígado em frangalhos...

Oh, Prometeu inútil, de que serve teu fogo?!
A descoberta da maravilha não permite mais que alguma luz, visto
que o Universo permaneça em trevas indevassáveis.

O que é a poesia senão uma chama na escuridão imensa?

Pouco importa se um fósforo ou se uma supernova: Há matéria escura em demasia...
E o poeta está ali, segurando essa luz débil que lhe custa, simplesmente, tudo.

Sabei, vós outros, que hoje morreu um poeta.

Seu nome, sua vida e sua obra restem em paz.

Betim - 2019

TRANS-F(L)OR-MAR

TRANS-F(L)OR-MAR (gazal)

Era trans. Era flor. Era mar.
Em transição do ser para o estar.

Antes menino e depois menina.
Em corpo humano, alma feminina:

Garbo, delicadeza, glamour:
-- "Bien como te gustas, mon amour!"

Segue na avenida beira-mar...
Fazendo pista a quem transitar.

Anda seminua, à malmequer,
Em doce promessa de prazer.

Quem, travestida de sedução,
Vai rebolativa ao calçadão.

Em transf(l)ormação, vista n'aquela
Que se quis a mais forte e a mais bela.

Pois, flor, à luz dos faróis dos carros, 
Lá acende e apaga seus cigarros.

Quem, ou transformada ou transformista, 
De seu próprio corpo fez-se artista.

Para logo entrar na intimidade
Do que paga por sua amizade.

E após, brilhando feito diamante
À espera já do próximo amante...

Betim - 30 05 2020

sexta-feira, 29 de maio de 2020

CANTO NOVO

CANTO NOVO

—”Silenciai os vossos corações...
Ouvi-me todos, todos vós, ouvi!
Canto de quanto sei; quanto vivi,
Sim, em rima escrita sem refrões."
 
"Canto do que encontrei pelas canções,
Que em sonoras poesias me senti 
Sem serventia, pois, nunca servi, 
Senão ao turbilhão das emoções.” 

“Um canto novo, ouvi todos meu canto! 
Nada vos diz de novo nem de nada,
Pois soa entre a alegria e o desencanto.”

“Sim, em rima nunca antes cantada... 
De desencanto eu canto em meu recanto 
A vós uma canção desencantada.” 

Capitão Andrade - 15 05 1995 

quinta-feira, 28 de maio de 2020

ORÁCULOS

ORÁCULOS

A pena e a folha fremem pelo vento... 
Traduzindo em oráculos poesia,
À espera das palavras eu tremia. 
Todavia, firme era o pensamento.

Exsurgiam sant’elmos de talento 
Entre extremos arroubos de alegria. 
Tinham os versos luz de profecia 
E o manuscrito fé de documento. 

A um tempo verossímil e intuitiva, 
A escrita que me vem absurda à mente, 
Proclamava a mensagem persuasiva. 

A intenção de sentido criava o senso.
N'um verso aquém e além de quanto penso
Em todo ser que existe se se sente. 

Betim -13 01 1998

ATRAVÉS

ATRAVÉS

Passa por mim, mas nunca permanece...
Amor que não contenho nem limito!
Parece tão sublime; tão bonito,
E, ainda assim, no fim nada acontece.

Se o coração de si mesmo padece,
Em meio a sentimentos em conflito,
Por minh'alma translúcida ao infinito,
Feito cristal, luz pura me atravesse.

Transmuta em ouro a luz mais que perfeita: 
-- "Promessa de prazer onde há beleza, 
Amor, qual será tua natureza?"

"Ou, através da matéria rarefeita,
Ilumina os recônditos profundos
Até que nos reveles novos mundos...!"

Betim - 28 05 2020

quarta-feira, 27 de maio de 2020

PELE A PELE

PELE A PELE

A pele que me veste e te reveste
Limita esse meu ser de mais estar.
Devolve a minha mão ao te tocar
Desmedida a ternura que me deste...

Contenho e estou contido dentro deste
Invólucro de cores sem lugar...
Se suo com ardores de te amar,
Teu palor é quanto me quiseste...

Assim esses contornos de nós dois
Se roçam e remoçam pele a pele
Até a entrega lânguida depois.

De modo que do quanto se revele,
De quem fomos ou somos ou seremos,
Eis aqui nos carinhos mais extremos...!

Betim - 27 05 2020

terça-feira, 26 de maio de 2020

FLAMENCO

FLAMENCO

De acordo co'os acordes que me ouvis, 
Eu acordo co'as cordas do violão. 
E acovardo a dor do coração; 
N'um canto em cujo encanto sou feliz. 

Como incorpora o ritmo um aprendiz,
Que se cresce e se cria na canção,
Corpo e alma logo em mim concordarão
Às palmas da morena que a mim quis. 

Sabei: De cor o acorde que me acorda
E concorde à poesia se me afiança
A dor que o coração em vão aborda. 

Escutai-me, vós outros, na confiança 
De que deslize a voz em cada corda 
Às palmas da morena que a mim dança. 

Betim – 13 05 1993

ERRO DE CONTINUIDADE

ERRO DE CONTINUIDADE

Entre uma cena e outra, eu perdi o anel,
Enquanto nós seguíamos em frente
N'alguma outra tomada inconsequente
Com cada qual seguindo o seu papel.

De repente alguém faz um escarcéu
E alerta para o dedo não luzente:
Os anos se passaram simplesmente
N'aquela amarelinha em terra e céu...

Sorrimos... Eram muitas pontas soltas
Em mundos que já deram tantas voltas
E 'inda continuávamos em cena:

Falando amenidades descuidadas...
Personagens de cômicas jornadas,
Cuja história inverossímil se condena.

Betim - 20 05 2020

segunda-feira, 25 de maio de 2020

ÀS SOMBRAS

ÀS SOMBRAS 
 
Sombra da torre sobre o espelho-rio. 
Entre as brumas espalha-se, nevoento, 
O luar sobre as ruínas do convento 
Onde em sombras me assombra um calafrio. 

Sem embargo, esse luar de desvario, 
Aterra a torre à noite em desalento: 
Enquanto almas sem paz uivam no vento.
Sinto medo, porém, do medo rio. 

Sombra da torre sobre o rio ao luar. 
Em desvario, cala o frio o medo, 
Onde obscuro segredo a se ocultar. 

Talvez assombrações sem desenredo 
Século afora para mais penar...
Lua de prata à noite que enveredo. 

Sapucaia do Norte - 08 12 1994 

FARÓIS NA ESTRADA

FARÓIS NA ESTRADA

Aceito a solidão como caminho
E até a escuridão como paisagem.
Não há qualquer destino n'essa viagem,
Na qual eu de mim mesmo me avizinho.

Ser livre é sobretudo estar sozinho
E viver co'o que cabe na bagagem.
Não há nem covardia nem coragem
Em seguir sempre mas devagarinho.

Aprendi não haver felicidade
Em amores, fortunas ou carreiras...
Tampouco em qualquer credulidade.

Abandonado às minhas vãs canseiras,
Usufruo da existência, da saudade
E trafego através de sós fronteiras.

Betim - 25 05 2020



RONDA NOCTURNA

RONDA NOCTURNA 
 
Se por vias escuras e vazias 
Andasse noite adentro, solitário, 
Haveria -- muito além do imaginário -- 
O eco audaz de saudosas fantasias. 
 
Haveria a memória de outros dias, 
Retrazidas à luz de extraordinário 
Efeito sobre as horas que, ao contrário, 
Passavam em quietudes fugidias. 
 
Vejo e não vejo o que agora é aqui... 
Tudo desaparece ante o que vi 
E que torno a ver como se ao olhar. 
 
Sem óbice algum, ando a recordar 
Tanto quanto ora recordo a andar 
Entre as sombras onde vivo e vivi. 

Betim – 10 05 2014 

INÚTIL

INÚTIL

De que me serve amá-la se inservível?…
Como, por estresse, o aço resta dúctil,
Assim também o amor acaba inútil
Tensionado bem mais do que o admissível.

Enquanto o amor se mostra incompatível 
 --  Com dois a discutir por algo fútil - - 
Costuma a melindrar, sutil e sútil,
Qual colcha de retalhos implausível.

Ou ela não me ama ou não se quer amada.
Tampouco importa a página virada
Em face do que anseia em seu porvir.

Mas, seja como for, nada mais vale…
Apenas não se espere qu'eu me cale:
Inútil ou não, ela vai me ouvir!

Betim - 01 09 2008

sábado, 23 de maio de 2020

SOB OS LENÇÓIS

SOB OS LENÇÓIS (vilanela) 

Pelas brancas manhãs, as nossas peles 
Teimam em se roçar sob os lençóis, 
Visto se ocultar amores n'eles... 
 
Desejosa antes d'estes que d'aqueles, 
Navegavam teus dedos entre atóis... 
Pelas brancas manhãs, as nossas peles. 
 
A mim, já não importa o quanto veles, 
Sabendo nos teus olhos dois faróis, 
Visto se ocultar amores n'eles. 
 
Porém, maravilhosa te reveles 
Negando a despertar co'os rouxinóis, 
Pelas brancas manhãs, as nossas peles. 

Lasso, baixo meus lábios imbeles... 
Borrachos de xerezes espanhóis, 
Visto se ocultar amores n'eles. 

Assim como s'espraia o mar em fróis, 
Visto se ocultar amores n'eles,
Resplandeçam co'a luz de dois mil sois,
Pelas brancas manhãs, as nossas peles. 

Betim - 20 05 2020 

sexta-feira, 22 de maio de 2020

AO ACASO

AO ACASO

Àquilo que define a sorte e o azar
Sem mais indiferença que sentido,
Elevo o meu olhar agradecido
Na falta d'outro deus para adorar.

Se às possibilidades tem lugar
Tudo pelo Universo conhecido,
O que eu sou ou podia ter eu sido
São dados que ninguém soube jogar. 

Uma mão invisível titereia 
Essa tragicomédia sem roteiro
Onde se vivencia o corriqueiro.

Pois, sem deixar pegadas pela areia.
Leva de nada até lugar nenhum
A estrada que têm todos em comum.

Betim -  22 05 2020

OCULAR

OCULAR

Como um caco de vidro a me riscar
Por dentro da minha órbita direita,
Eis o mínimo cisco que sujeita
Toda a minha atenção a tal lugar. 

Corpo estranho no meu globo ocular
Que junto ao cristalino então se ajeita
E ali me parasita sempre à espreita...
Dir-se-ia observando-me observar.

Ao verme que roerá as carnes frias 
De meu breve cadáver sob a laje
Saúdo em meio a traves e miopias.

E enquanto inopinado o serzinho age,
A despeito do horror e da má sorte,
Eu olho para dentro e vejo a morte.

Betim - 21 05 2020





quinta-feira, 21 de maio de 2020

SOB O PÓRTICO

SOB O PÓRTICO

Observo do vestíbulo o arco gótico, 
Sobre-elevando ogivas a alturas vãs,
Como se não para homens, sim titãs
Que viessem n'um cortejo apoteótico.

Do mais extravagante ao mais exótico,
Cruzes santas e gárgulas pagãs
Ornam os capitéis d'onde malsãs
Testemunham outro óbito despótico... 

Há algo que repugna e atrai no crime 
E as cabeças roladas a um só gesto 
Não falam apinhadas sobre o vime.

Hoje, esse átrio silente é só seu resto,
Onde tão desolado que sublime, 
Eis-me aqui sob o pórtico funesto!

Belo Horizonte - 12 10 1999 

terça-feira, 19 de maio de 2020

ÉDIPO, REI

ÉDIPO, REI

Há-que se vazar, cego, as próprias vistas
Aquele cuja culpa imensurável!...
O Fado fez de mim o Inescusável
E reduziu a pó minhas conquistas.

Se falo é para o bem dos idealistas:
-- "Duvidai da fortuna d'um notável!"...
A vida é aforisma impenetrável,
Que resta ao escrutínio de sofistas.

Vago agora por uma noite eterna,
Onde as glórias se mostram relativas
Ao largo de palavras compassivas. 

E ao vão das horas mortas me governa
Só a ânsia d'haver pela má jornada
A terra de meu túmulo sagrada.

Belo Horizonte - 15 05 1998

ANGÚSTIA

ANGÚSTIA

Certas palavras não podem ser ditas  
Sem que a verdade d’elas logo irrompa.  
Prescindem de ouropéis e toda pompa  
Quando um maior sentido as faz aflitas.  

E aquele que ousar ver suas desditas  
Espalhadas aos ventos feito trompa, 
Aceite — antes que o tempo lhe corrompa — 
O marasmo das noites infinitas...  

Assim essa palavra impronunciável   
— Onde fazem caber todo o terror —  
Vem quando a hora se faz insuportável.  

E, na ânsia que atravessa o perdedor,  
Funde-se ao sentimento, que inefável,  
É este instante mudo de torpor... 

Belo Horizonte - 19 05 1998  

segunda-feira, 18 de maio de 2020

DE BANDEJA

DE BANDEJA

Romântico ou não,
Lá vai dado de bandeja
O meu coração...
Lá vai por quem mais deseja
Ter toda a atenção
Da boca que não me beija.

Amigo que s'esconde
O enamorado que te é.
Sem quando nem onde
Ama somente por fé.
Mas, perdendo o bonde,
Já desce a ladeira a pé...

Está bem servido
O carinho temeroso...
O beijo proibido...
O abraço desejoso...
Ao gesto perdido
A quedar embaraçoso!

Está sobre a mesa
A sobrar em tua festa
A velha tristeza
Que no peito 'inda me resta:
Servi-te a sobremesa,
Mas te desceu indigesta...

Romântico ou não,
Lá vai dado de bandeja
O meu coração...
Lá vai por quem se deseja
Ter toda a atenção
Da boca que não me beija.

Betim - 04 05 2020

sexta-feira, 15 de maio de 2020

O QUE EU PUDE TE DAR

O QUE EU PUDE TE DAR

Não falo de amor nem de sentimento
-- Coisas porque sem preço, sem valor --
Eu falo do que fiz em teu favor;
O que eu pude te dar 'té o momento.

Não falo em louvor; merecimento...
Tampouco do teu pouco despudor!
Contigo vão meus sonhos, por favor, 
Deixa-me ao menos meu ressentimento...!

Vai, leva o que te dei (é pouco, eu sei!)
E tudo quanto fui sendo só teu:
Não serás mais rainha nem eu rei.

Se o que compartilhamos se perdeu,
Reste-me a mim ao menos quem serei...
Deixe-me a mim ao menos quem sou eu!

Betim - 15 05 2020

quarta-feira, 13 de maio de 2020

O SOM DOS CACOS

O SOM DOS CACOS

Lembro-me de que estava muito escuro
Na sala que adentrei inopinado,
Ao assomar à janela do sobrado
E ver quem esperava junto ao muro.

Por tatear no vazio, algo inseguro,
Topei com algum vaso ali deixado:
Em mil pedaços cai, espedaçado,
Deixando nos meus pés um bom monturo…

Longe, toda a família mais se abala
Não pelo vaso  -- bem dos velhacos…  -- 
Antes pelo escarcéu do som dos cacos.

Céleres, todos vêm até a sala
E veem a formidável confusão
Dos cacos espalhados pelo chão...

Betim - 13 02 2020

segunda-feira, 11 de maio de 2020

VISTAS GROSSAS

VISTAS GROSSAS

Vejo, mas finjo que não.
Olho, mas foco o vazio.
Para o lado o olhar desvio;
Para cima ou para o chão
Para não ver um vadio...!

Sua simples existência 
Me causa tal destempero,
Que, à beira já do entrevero,
Simular-lhe a falsa ausência 
É tudo quanto tolero.

Sim, olho para não ver
E evitar o que aborrece.
Pois, mais males se padece
Em ver o que não se quer
Do que quem se desconhece.

Enquanto fala eu caminho;
Como não fosse comigo,
E eu indiferente sigo
Na graça de estar sozinho
Mesmo ao lado do inimigo. 

Vistas grossas pois nubladas
De lágrimas não vertidas...
Muito embora parecidas,
Ambas perdidas miradas:
Muros entre nossas vidas.

Betim - 09 05 2020









sábado, 9 de maio de 2020

HAVEREMOS

HAVEREMOS

Quando o tempo apagar os nossos erros
E as culpas caducarem lado a lado...
Pois, com menos futuro que passado
Caminharmos de volta dos desterros.

Depois de silenciarmos tristes berros,
Limpando dor e lágrimas ao agrado,
Sintamos o momento já chegado,
Antes que lamentemos em enterros...

Deveras, nobilíssimos sorrisos
Saberão nos dizer enquanto mudos
Os lábios permanecem indecisos.

Depostas as espadas e os escudos,
Ao largo de quaisquer parvos juízos,
Haveremos um ao outro enfim, desnudos.

Betim - 09 05 2020

ÀQUELA BELA

ÀQUELA BELA

Tens que tua beleza me hipnotiza,
Qual roedor ante o bote da coral...!
E penso que és um bem sendo-me um mal,
Mesmo quando o mortal logo se avisa.

Há em tua presença incerta brisa,
Que me comove ao modo d'um sinal:
Desejar-te me é quase natural
Tanto quanto de ar ou água se precisa...

Mas se eu um dia achar um som bonito
Seja algo que te fale algo d'amor
E signifique mais do que infinito.

À morte, o som mais belo é de pavor...
Tens que tua beleza é o olhar fito,
Qual coral ante os olhos do roedor.

Betim - 09 05 2020

sexta-feira, 8 de maio de 2020

EM MEADOS DE ABRIL

EM MEADOS DE ABRIL

Estávamos em casa confinados,
À espera do que fosse acontecer...
A um metro ou mais passamos a viver
Todo o tempo uns dos outros afastados.

Foram dias sombrios, desolados:
Onde não adoecer e esmorecer...
Não desaparecer... Não perecer...
Eram os nossos únicos cuidados.

Entre quatro paredes longamente,
Tendo só incertezas pela frente,
Passamos, reticentes, o mês todo.

Atentos ao avançar da pandemia,
Sabendo que mais dia menos dia,
Iríamos sofrer do mesmo modo...
  
Betim - 08 05 2020

quinta-feira, 7 de maio de 2020

LONJURAS

LONJURAS

Para além dos azuis dos serros frios
Onde as tardes declinam em céus claros,
Eu caminho na poeira sem amparos
A rever nos confins sertões vazios.

Nos longes, os penedos luzidios
Apontam para os altos seus reparos,
Como sempre alertando os mais amaros
Da beleza de poentes tão sombrios.

Eu fujo para longe das cobiças
E afasto o burburinho das cidades
Em jornadas vadias e insubmissas.

Nos recantos eu busco liberdades
Que me negam as muitas injustiças
N'esse pleno usufruir das soledades.

Betim - 07 05 2020

terça-feira, 5 de maio de 2020

EM OBRAS

EM OBRAS Estranha estrada a dar-me ofício aos ossos Esta que no final manda-me às favas! Em obras, todavia, deixo oitavas Inacabadas face a embargos nossos... Minha vida são épicos destroços, Feito escória do chão vinda das cavas. Eu nos livros livre escrevo escravas As letras em seus muitos alvoroços. O leito carroçável e a sarjeta Do trecho interrompido a canetadas Na frase onde tropeça todo poeta Se m'espalha na poeira das estradas, Sou quem se consome a alma inquieta: Um-mestre-de-obras-primas-quase-nadas. Betim - 18 08 1999

domingo, 3 de maio de 2020

O POEMA PERDIDO

POEMA PERDIDO  

Retoma à folha em branco o teu sentido 

E escreve. Torna àquele instante que herda 
De palavras e idéias sua perda: 
Rebusca em ti o poema perdido.

Recordas? A memória um tanto lerda
Vai seguindo as pegadas desde o havido,
Além das armadilhas vãs do Olvido, 
Sem ignorar, porém, o abismo à esquerda.

Voa, condoeiro, mais alto que o condor: 
Parábolas, hipérboles, elipses... 
Descritas voltas p'las esferas tríplices 

Do ser a superar-se outro ao compor...! 

É imperativo: 'inda que alterado, 
Debruça-te sobre ti, reencontrado. 

Belo Horizonte -19 01 1999 

POETAR

POETAR

Escrevo-me poesia a duras penas
De todo mundo e de ninguém; de mim.
Encontrar às palavras algum fim,
Que sirva ao coração nas horas plenas.

Belas mentiras n'almas tão serenas
Dizem os versos sem som e sem sim
Que baldo canto, mas ainda assim,
Encantar o outro com fictícias cenas.

Se houver algum sentido na minha ética
Onde o próprio poetar se legitima,
Não careço de sistemas nem de poética.

Mas há no postulado pouco acima
A constatação última, algo hermética:
Ter que amores mais co'as dores rima...

Belo Horizonte - 15 07 1997

TEATRO DE RUA

TEATRO DE RUA

Se há páginas em branco pela rua,
A minha pena pode transformá-las:
No vir-a-ser de mais papeis e falas
Alçar uma verdade e pô-la nua…!

Para além do circense se situa,
Quando trupes caminham entre galas,
Fazem do quotidiano nobres salas;
E da praça, outro palco onde se atua.

A existência é uma comédia de erros,
Cujos actos irrompem já patéticos
Após fechar a cena ainda aos berros.

Máscaras têm diálogos frenéticos,
E, enquanto o poeta azula pelos serros,
Jogam na rua seus textos herméticos.

Contagem - 12 11 1999

TEATRO DO MUNDO

TEATRO DO MUNDO

Sobre a arena há o espírito perene
Dos sonhos de toda a Humanidade
Como algo que atravessa cada idade
Ou realidade que Além se nos ordene.

Faz-se a luz! No proscênio Melpomene
Do espetáculo lívida se evade.
E, na celebração da liberdade,
Eu, pessoa sob máscaras, m'encene.

Seja teatro o mundo onde uma consciência
Dramática apresente novas miras,
Que se inspiram concordes à experiência.

No interlúdio da acção, ressoem liras!…
Visto as histórias serem, em essência,
Meias verdades, pois, belas mentiras.

Betim - 21 05 1998

sábado, 2 de maio de 2020

RASCUNHOS

RASCUNHOS

Se em ti há algo morto ou adormecido
Como se fragmentado em toda parte.Ou a vida bem diverso foi tornar-te, D'aquele que querias tu ter sido.


Busca os rascunhos que hás esquecido,Até te reencontrares em tua arte. Psicologia alguma há-de curar-te,
Enquanto não tiveres um sentido.
Recria a cada página esse mundo E, à polifonia em movimento, Faz mais alto ressoar teu Eu profundo. 
E tendo de ti mesmo entendimento
Verás a vida toda n'um segundo
Dando a teu manuscrito acabamento.a
Belo Horizonte - 16 08 1998 

sexta-feira, 1 de maio de 2020

DESTEMPERO

DESTEMPERO

Ninguém me julgaria o destempero
Fosse eu ainda um homem mais ameno.
Clamando aos quatro cantos no sereno,
Eu bebo muito mais do que tolero...

Se dos outros eu pouco ou nada espero,
É porque tenho marcas de pequeno.
Ácido, em minha boca igual veneno,
Eis o esplêndido fel que vitupero!

Cético das alheias alegrias,
Eu gargalho de suas fantasias
Onde há tão-só engano, não verdade.

Se há muito evito temas comedidos,
Faço versos a gritos parecidos
Imerso n'uma dúbia insanidade,

Belo Horizonte - 18 04 1998 

CISMAS

CISMAS

Algo tem-de aliviar a minha dor...
A angústia inenarrável do momento,
Que queda sobre mim sem mais intento
Co’a fúria d’um arcanjo vingador...!

Embora nada tenha a meu favor,
Meus males vêm sangrar-me sem contento,
Restar-me-á tão-só clamar ao vento
Um desencanto a mais de sonhador.

Sonhos?! Sei me perder idéias e ideais...
Verdades eu me nego em vãos sofismas
De pensamentos tristes e demais.

Ansioso, passo as horas entre cismas
Incapaz de qualquer desejo mais
Minh’alma sobre a noite atra se abisma.

Betim - 12 05 1996




SUJEITO OCULTO

SUJEITO OCULTO

Subentendido em toda e qualquer foto
Está aquele que nunca aparecia…
Ei-lo não no que o quadro evidencia,
Mas sim atrás da lente mais remoto.

Ele faz o sorriso mais garoto
Se nos brotar às faces de alegria.
E após eternamente companhia
Mesmo permanecendo quase ignoto

Aquele que regista um instantâneo
Faz-nos brilhar lampejos de saudade
N'algum gesto talvez pouco espontâneo.

Visto que retratista de verdade,
Ao revelar o olhar contemporâneo,
Entre na foto pela qualidade!…

Betim - 01 05 2020