quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

TABULATURA

TABULATURA


Pondo os dedos conforme é indicado

Por pautas no papel emudecido,

Às cordas faz vibrar em sustenido

Um choro de violão bem temperado.


Com efeito, é silêncio musicado

A escrita da canção vencendo o Olvido:

O som fazer-se no olho, não no ouvido… 

Visto o gozo das notas resguardado.


Toda a tábua preenchida de sinais

Até guardar d’acordes doces ais

Vertidos em capricho pelo artista.


Há-de reproduzi-las com carinho

Aquele que encontrar em seu caminho

O encanto de fazer-se violonista.


Betim - 27 12 2023


sábado, 23 de dezembro de 2023

INCOMPREENSÃO

INCOMPREENSÃO


Talvez, se tu calçasses meus sapatos

E buscasses andar por onde andei,

Aprenderias quanto agora sei

Ou quanto me furtei a vãos recatos…


Não me venhas com fúteis aparatos,

Sempre a condescender igual grão rei.

Tamanha liberdade jamais dei

A ti ou qualquer um d’estes ingratos.


Ide, todos e tu, para bem longe!

Outro velhaco em hábito de monge

Não há-de m’ensinar a ser humano.


De resto, enmimesmado com meus erros,

Caminho junto ao abismo quase aos berros,

Clamando contra os céus de tão mundano.


Confins - 16 12 2023


sábado, 2 de dezembro de 2023

PAS D'AMOUR

 PAS D'AMOUR


Mantenho os olhos tristes, mas honestos;

Pois já não romantizo as minhas quedas.

As coisas como são são mais azedas,

Contudo têm seus males manifestos.


Vivi me contentando com os restos,

Enquanto se fartavam d'horas ledas.

O azar levou-me as últimas moedas…

Eu hoje economizo até meus gestos!


Talvez, de tanto dar, quedei vazio

Ou permutei em vão co’o Grão-Vadio

Auroras por misérias perfumadas.


Vou, sem nenhum amor, seguindo em frente

E trilho a noite escura, tão-somente

Atento às pedras soltas pela estrada.


Betim - 01 12 2023


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

INEXPUGNÁVEL CORAÇÃO

INEXPUGNÁVEL CORAÇÃO


Hei-de estabelecer-me fortaleza,

Onde possa abrigar os sentimentos.

Rechaçar os assédios mais violentos;

Cercos de solidão e de tristeza…


De todo indiferente à correnteza,

Um maciço de gnaisse sem intentos,

Que irrompa contra os céus e os quatro ventos,

Altaneiro em sua íngreme dureza!


Península, a torrente à minha volta 

Afaste tanto o mal quanto a revolta,

Que abundam entre mentes cobiçosas.


E na escarpa do cume inacessível

Eu possa enfim sentir algum alívio

Distante das planícies populosas.


Betim - 01 12 2023


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

IDEIAS ESTAPAFÚRDIAS

IDEIAS ESTAPAFÚRDIAS 


Sonho um passado nunca acontecido

À luz d'algum futuro indesejado…

N'este ou n'aquele, tudo é enevoado

Como se vindo ou indo para o Olvido.


Penso de certo estorvo imaginado

Tornado em livramento pretendido:

Amor, um congraçar jamais vivido,

Como se vindo ou indo para o Fado.


Houve um tempo em que o sol brilhava forte

E me afastava as sombras já da morte…

Promessas de prazer e de alegria!


Mas não! Não era nada igual pensei…

Bradando ordens ao léu, deposto rei, 

Caminho entre a loucura e a fantasia.


Betim - 27 11 2023


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

AMÉM

AMÉM


E sim, estou de acordo. É como dizes.

Concordo inteiramente com tudo isto:

Vejo com os teus olhos quanto disto

Da verdade absoluta dos felizes.


Tão certo quanto lógico, aprendizes

Têm-de reconhecer algo benquisto.

Aceito sem pensar, logo, inexisto…

Tudo preto no branco, sem matizes.


Submeto-me à vontade dos mais sábios

Ao ecoar seus dizeres por meus lábios

De modo que respondam com certezas.


Mas guardo para mim e só comigo

A dúvida dos erros que persigo,

Mui pequeno diante de grandezas…


Esmeraldas - 18 11 2023


sexta-feira, 10 de novembro de 2023

NÃO TENHO PALAVRAS

NÃO TENHO PALAVRAS


Já não sei o que dizer ou o que pensar…

O que quer qu'eu vos diga, dirá pouco!

Tenho andado a pensar como um louco,

Mas desdenho das letras ao expressar.


As palavras parecem me faltar:

Justo quando preciso, fico rouco

E inaudível eu soo ao ouvido mouco,

Que sem nada entender finge escutar.


Ainda qu'eu dissesse do que penso,

Tudo pareceria algo pretenso,

Em face do que passo no meu canto.


Eu silencio, pois, estou cansado.

Este que vos falava está calado…

Prescinde da palavra o desencanto!


Betim - 09 11 2023












sexta-feira, 3 de novembro de 2023

O CAVALO DE SÃO JORGE

O CAVALO DE SÃO JORGE


Quadrúpede se monta e se roseta

A bem do santo nunca andar a pé…

Avancem contra as feras pela fé

Cavalo e cavaleiro em sanha inquieta!


No inferno, dança logo co'o capeta

Quem sabe que seu mal pouco não é.

Escornado eu defronte o cabaré,

Súbito a lua brilha na sarjeta:


Eis que n'uma peleja atemporal,

Investe o próprio bem por sobre o mal

E todo o sofrimento faz sentido.


Sem embargo, o cavalo é montaria.

Serve para servir à fidalguia,

Mas, no final da história, é esquecido.


Betim - 02 11 2023



terça-feira, 31 de outubro de 2023

SENTINELA

SENTINELA

Chega de me ocupar com fantasias!…

Desiludido já de conjecturas,

Sei aceitar do mundo as imposturas,

Tanto quanto da corja as arrelias.

Não troco por futuras alegrias

A lição das presentes desventuras,

Tampouco desconheço as amarguras

D’aqueles que destilam ironias.

À longura das horas acrescento

A lonjura das ruas que percorro,

Enquanto os outros sonham sem intento.

Nem as estrelas vêm em meu socorro;

Nem se reparte em dois o firmamento:

Passo… E de longe ladra algum cachorro.


Betim - 31 10 2023


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

IDIOTIA

IDIOTIA


Para muitos, um bom é um idiota

Que ajuda mesmo àquele que não deve

E escolhe ao frio cálculo a alma leve,

Enquanto o mundo gira e cambalhota…


Porém, tal perspectiva mais denota

Desdém pelo indulgente que se atreve 

A alguma compaixão, mesmo que breve,

Como fosse veneno a conta-gota.


Julgar n'um bem um mal é perversão,

Que não raro obscurece o coração

De quem espera o pior do ser humano.


Chamam-no de idiota por bondoso,

Mas forjam para si o indecoroso

Cinismo de ignorar o próprio dano.


Betim - 30 10 2023


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

UMBILICAL

UMBILICAL


Um vínculo de vida a gerar vida,

Onde transitam genes e destinos.

Dentro do ventre, os olhos pequeninos

Perscrutam a existência pressentida.


Enquanto isso, uma mãe enternecida

Tece gorros de lã co'os dedos finos.

Logo o céu de dourados vespertinos

Se lhe reluz na lágrima incontida.


Este cordão, porém, será cortado,

Restando mãe e filho lado a lado 

Para seguirem próximos caminhos.


Permaneça gravado este momento

Todo feito de enlevo e sentimento 

Em olhos transbordantes de carinhos.


Betim - 20 10 2023


quarta-feira, 18 de outubro de 2023

TRANSEUNTE

TRANSEUNTE


Eu era alguém passando por ali,

Como se testemunha involuntária 

D'aquela situação extraordinária,

Que os deuses escreveram para ti.


Em face de teus ais me comovi,

Embora tão anônimo quanto pária:

Tu, no centro de tudo, uma incendiária

Indiferente a quanto vi e ouvi.


Porém, longe o bastante de teu drama

Pude te perceber a vária chama

Que te faiscava os olhos os ardendo!


A um tempo lindo e triste era te ver

Em busca de ti mesma p'ra saber 

De que loucura estás enlouquecendo…


Betim - 17 10 2023


segunda-feira, 16 de outubro de 2023

DE MAL A PIOR

DE MAL A PIOR


No fundo do poço, abre-se o alçapão… 

Afinal, desgraça pouca é bobagem!

Quis um lugar ao sol, perdi a viagem

E agora estou eu cá na escuridão.


Perdidos de vez o ímpeto e a razão,

Pouco resta senão outra miragem

Volátil na desértica paisagem,

Enquanto cato os cacos pelo chão.


Findo o êxito, há somente consequências:

Eu olho o espelho sem condescendências

Para a pessoa estúpida que encaro.


Aliás, minha franqueza é minha fraqueza.

A cada revés a única certeza

É que falei demais ao mais ignaro.


Nova Lima - 14 10 2023



quarta-feira, 11 de outubro de 2023

VAPOR DE SÓDIO

VAPOR DE SÓDIO


Mil lâmpadas nos altos do espigão

Raiando alaranjadas em contraste

Co’o breu da noite funda onde o guindaste

Ronca na cava audaz mineração.


Audaz, porque nocturna imensidão

Sujeita a antropocênico desgaste,

Que já surpreende veios por arraste,

Mas remove montanhas a explosão…


Tal fábrica atravessa a madrugada,

Enquanto a cerração iluminada

Faz-se paisagem quase surreal.


De sorte que o vapor energizado

Tornava tudo ali algo sonhado,

Como sob uma luz transcendental.


Betim - 01 10 2023



terça-feira, 3 de outubro de 2023

EPÍGRAFE

EPÍGRAFE


Faço minhas palavras tuas, poeta,

Pois que sentiste tal como me sinto:

Encaro a folha em branco, não desminto,

De coração aflito e mente inquieta.


D’aquilo que minh’alma está repleta

Escrevo após te ler claro e distinto.

Porém, não te penetro o labirinto

Sem encontrar de novo o que me afeta.


Hoje —  tanto quanto ontem ou amanhã —

Padeço, hora após hora, o desalento

Que te atravessa todo o pensamento.


E vivo, ou sobrevivo, à dor mal-sã

Comovido p’la só melancolia,

Que me deixaste, poeta, na poesia.


Belo Horizonte - 02 10 2023


sábado, 30 de setembro de 2023

PÉRIPLO

PÉRIPLO


Ora aqui; ora lá; ora acolá…

Tenho andado por todos os lugares!

Subo becos e desço bulevares

A conhecer um pouco de quanto há.


Hoje vivo somente o agora-já,

Às voltas com poentes ou luares,

E desdenho afinal de meus azares,

Errante no deserto sem maná.


Se não tem mais estrada, abro caminho.

Certo que cada vez mais me avizinho

De mim em todo chão por onde passo.


De modo que eu estando em movimento

Mantenha-me presente no momento,

Até que caia exausto de cansaço.


Belo Horizonte - 30 09 2023





quarta-feira, 27 de setembro de 2023

DESCONTROLE

DESCONTROLE


O inútil ao desagradável

Quem s’enfurece fácil une…

É sofrer d’um mal evitável,

Que no fim a si mesmo pune.


Inútil, pois, parece imune

A cobra a seu veneno odiável…

Quem s’enfurece fácil une

O inútil ao desagradável!


Desagradável, pois, notável

E agudamente, ao ouvido zune

Outro remorso inenarrável…

Quem s’enfurece fácil une

O inútil ao desagradável!


Betim - 25 09 2023


domingo, 24 de setembro de 2023

MATEIRO

MATEIRO


Eu, muito antes do sol, começo o dia

Em meio à cerração pela cumeada.

E sigo, mato adentro, outra jornada

Conhecendo os sertões em travessia.


Tiro o que precisar da mataria

Atrás de muito pouco ou quase nada.

Nos recônditos sós, fora de estrada,

Sei atalhar veredas na ousadia.


Do distante ao inóspito local,

Dei rumo à minha vida sem saber...

Onde, mais que existir, sobreviver.


Mas mais me refestelo no final.

Qual dizia moleque, lá no pé:

"Um bicho de goiaba, goiaba é!"


Nova Lima - 17 09 2023


quinta-feira, 21 de setembro de 2023

TORRENCIAL

TORRENCIAL


Abandonemo-nos um no outro, como

Os cipós que s'enroscam pelas frondes

E surpreendem o céu, o sol e o pomo,

Que por entre mil folhas tu m'escondes.


Pelo sim pelo não, cuidados tomo…

A depender dos ecos que respondes,

Nuvens vêm se arrumar n'um mar de plomo,

A surrealizar sem quandos nem ondes.


Se tão densa atmosfera nos envolve,

A tensão sob a pele se resolve

Em precipitação estrepitosa.


Dois corpos ao sabor dos elementos

Sejamos, afinal, em tais momentos

De paixão extremada e vigorosa.


Betim - 20 09 2023













terça-feira, 19 de setembro de 2023

EM DESAGRADO

EM DESAGRADO


Passo por escombros de cidades

Fundadas por velhos utopistas.

De carro, na avenida de seis pistas,

Zuno no entardecer perplexidades…


Através de distintas realidades,

Ressignifico a vida sem conquistas,

Juntando minhas rimas pessimistas

À luz de mais e mais desigualdades.


Veem-me civilizado, engravatado,

Embora passe a vida em desagrado:

Outro poeta n’um mundo sem poesia.


Eu guio, devagar e indiferente,

Por via de tão-só seguir em frente,

Mas sob um céu lilás de fantasia.


Belo Horizonte - 17 08 2023


terça-feira, 22 de agosto de 2023

HORAS MORTAS

HORAS MORTAS


Horas há em que até a angústia passa.

Horas que ando pensando no passado...

Atravessava a noite n'este estado,

Olhando a escuridão pela vidraça.


A noite morre sem que o dia nasça,

Dentro d'um coração espedaçado...

Sem que dormisse tenho madrugado,

Enquanto o ser de tudo o mais s'espaça.


Há horas, uma absoluta nulidade...

Em meio a reflexões amarguradas,

O passado não passa... A mente evade.


Ruas vazias; luzes apagadas...

Outra noite d'extrema soledade

No rastro de ilusões cheias de nadas.


Sapucaia do Norte - 28 02 1993

sábado, 5 de agosto de 2023

ISTO É HISTÓRIA MAL CONTADA

ISTO É HISTÓRIA MAL CONTADA


Escrever, literariamente, é inventar. Sobretudo em poesia, onde a musicalidade do verso contrasta com a coloquialidade da fala e com a objetividade da prosa. Dentre os tipos de textos, as narrativas se impõem como os de maior interesse, haja vista que entretêm e informam ao mesmo tempo. Sem embargo, é no lirismo poético que o esforço de interpretação é levado ao limite, para além da hermenêutica jurídica e mesmo da teológica. Ler poesia, com sensibilidade e atenção, é sempre se surpreender com a capacidade de transmitir mensagens que o texto poético apresenta. Não raro, devo confessar, certos textos só adquiriram profundidade aos meus olhos depois de muitos anos de escritos. Acredito, de certo modo, que o poeta seja um achador de palavras cujo significado é elaborado — mais do que por suas próprias intenções de sentido — pelas extrapolações e projeções dos seus leitores. Com efeito, lemos hoje em Pessoa ou Drummond coisas que eles sequer cogitaram expressar exactamente porque nossa leitura, carregada de valores que lhes seriam estranhos, lança sobre suas letras nossas visões. Estamos fadados a ler mais no presente do que pretendera o passado. Voltando à tese d'este texto — a saber, de que haja uma história mal contada em toda poesia, mesmo quando esta não pareça tentar contar nenhuma história — entendo que o sucesso comercial dos romances e coletâneas de contos em contraste com a irrelevância do lançamento de publicações poéticas na indústria editorial se deve sobretudo ao facto de que a leitura de poemas jamais será conclusiva ou inconteste quanto a de boas narrativas em prosa. Entendo que seja frustrante para o leitor contemporâneo que, por não poder taxar os poetas e seus poemas de ininteligíveis, acabou por taxar assim toda a poesia. Quase ninguém nos dias que correm se dá ao trabalho de ler poesia e muito menos de pagar para lê-la. Logo, n'uma sociedade de consumo como a nossa, é como se a poesia não existisse enquanto produto da indústria cultural. As narrativas, por outro lado, vendem e são comentadas pela mídia de massa… Histórias extravagantes são adaptadas para o audiovisual em ritmo célere para o entretenimento ávido de maratonistas de filmes e séries… Roteiros e mais roteiros sendo produzidos para toda sorte de universo utópico ou distópico nos quais a imaginação dos autores é sempre desafiada a proporcionar efeitos quase de dependência química ou de manipulação neurológica entre seu público. De facto, diante das imagens espetaculares produzidas a partir das narrativas de mais sucesso do mercado editorial, por que alguém ainda se debruça sobre versos que n'uma primeira leitura soam antes como um enigma do que qualquer outra coisa? Estará a produção de poemas fadada a desaparecer, dada a dificuldade do público em ler quando pode simplesmente ver? Oras, a recente crise da indústria musical, incapaz de impedir que as pessoas tivessem acesso gratuitamente às produções dos artistas pop, talvez seja um indicativo de que mesmo os gigantes do capitalismo têm pés de barro. Depois do choro e ranger de dentes inicial, muito do que é produzido hoje em dia passou a transitar entre as redes sociais sem que o público pagasse uma fração do que pagava há dez ou vinte anos atrás por um produto fonográfico. Talvez a produção editorial, assim como a musical de massa, esteja em transformação, desenvolvendo formatos praticamente sem custo para o público, mas, mesmo assim, reconhecidamente importantes para o desenvolvimento da intelectualidade e da sensibilidade. Embora possa parecer uma história mal contada, a poesia ainda pode contribuir com nossa época com seu jogo raro de achar palavras capazes de dizer coisas sem se preocupar em facilitar a vida do leitor e muito menos ansiando um contrato milionário de uso de direitos autorais para adaptação da obra. Poesia é barata de produzir e difícil de entender, n'isso está sua resposta para a crise artística do nosso tempo. 


Belo Horizonte - 05 08 2023


AMAR ODIAR

 AMAR ODIAR (fado)


Muito mais que querer bem,

Há quem ame odiar:

Dos prós e contras d’alguém

Ou d’algum lugar

Não faz nunca nada além

De menosprezar.


Se desconfiar é seu mote

Ser só, sua sina…

Quem sempre à espera do bote,

Ardis imagina.

Em tudo espera o chicote

Da língua ferina.


Parece-lhe bom ser mau;

Cínico, talvez.

Vendo pior o mundo real

Por estupidez

E o amor etcetera e tal…

Como outro revés.


Diz-se, porém, precavido

D'alheios deslizes,

Pois tem o peito ferido

De más cicatrizes.

Mas só faz ecoar gemido

Dos mais infelizes…


Muito mais que querer bem,

Há quem ame odiar!...

Dos prós e contras d’alguém

Ou d’algum lugar

Não faz nunca nada além

De menosprezar.


Betim - 20 07 2023


terça-feira, 1 de agosto de 2023

ESPECIARIAS

ESPECIARIAS


Andaram meio mundo por pimenta,

Pondo cruzes de pedra no caminho.

Nem Neptuno e seu vórtice marinho

Lhe impediram a rota longa e lenta.


E logo qualquer erva fedorenta

Que deixasse nas carnes um gostinho

Valia mais do que o ouro do vizinho,

Com barcas e mais barcas na tormenta.


Noz-moscada, açafrão, cravo, canela…

Tanto sabor na língua se revela,

Que apenas degustar dava prazer.


De facto, melhorando quase tudo

Um tempero vai bem e, sobretudo,

Junta à fome a vontade de comer.


Belo Horizonte - 31 07 2023


AO CAIR DA NOITE

AO CAIR DA NOITE


Sobre as águas do rio, os ingazeiros

Avançam suas copas entre as margens 

No afã de espalharem n'outras vargens

Sombrias os seus galhos sobranceiros.


Nada obstante, os lumes derradeiros

Vão apagando o verde das almargens

Ao obscurecer na noite as contramargens,

Que então se ocultam d'olhos passageiros.


Húmida, a mata à borda do caminho

Bafeja o seu frescor bem de mansinho

Em minhas faces tépidas e exaustas.


Paro e reparo o dia indo-se embora,

Ao pé da serra imensa que descora,

A ouvir dos juritis canções infaustas.


Juatuba - 13 06 2023


segunda-feira, 31 de julho de 2023

EU DE VÓS, MINHA SENHORA

EU DE VÓS, MINHA SENHORA


Eu de vós, minha senhora,

Tenho amiúde lembrado

Ao ver nas ervas do prado

Vossos olhos dia afora,

Tão verde luz o relvado…


Muito tenho me admirado,

Enquanto a campina flora,

Ver-vos em cada corola

De auriverde celebrado

A pupila sonhadora!...


Tão verde luz desde a aurora

O vale onde tenho andado,

Que me lembro amiudado

Dos vossos olhos outrora

Reluzindo do meu lado…


Eu de vós, minha senhora,

Tenho amiúde lembrado

Ao ver nas ervas do prado

Vossos olhos dia afora,

Tão verde luz o relvado…!


Betim - 31 07 2023


domingo, 30 de julho de 2023

ANFIGURI

ANFIGURI


Eu me fiz de desentendido

Para não perder o sossego.

Fingi que sequer tinha ouvido

Aquele papo de pelego.


Vociferando um descarrego,

Falou um monte… Sem sentido!

Para não perder o sossego,

Eu me fiz de desentendido.


Repetia o já desmentido:

Que nem cego guiando cego,

Cita o homiziado… O fugido!

Para não perder o sossego,

Eu me fiz de desentendido.


Belo Horizonte - 20 02 2023


SABÁTICO

SABÁTICO


Deixou o burro na sombra…

Deitou o lombo na rede…

A todos súbito assombra

Seu guarda-pó na parede.


Senhor de seu tempo, adrede,

Uma vida ávida escombra:

Deitou o lombo na rede…

Deixou o burro na sombra…


Senhor de seu tempo, à alfombra,

Um vinho a matar-lhe a sede;

Um pão a fartar-lhe a lombra.

Deitou o lombo na rede…

Deixou o burro na sombra…


Betim - 29 07 2023


sexta-feira, 28 de julho de 2023

LAMENTAÇÕES

LAMENTAÇÕES


Farto de dias, como Jó,

Viveu e morreu nosso irmão…

Quem veio do pó volta ao pó,

Coberto torrão por torrão.


Outra vida vivida só,

Rogai!… Pelo sim; pelo não.

Farto de dias, como Jó,

Viveu e morreu nosso irmão…


Outra vida passada em vão

Rogai!... Sem receio nem dó.

Pela ampulheta, o último grão!

Farto de dias, como Jó,

Viveu e morreu nosso irmão…


Betim - 28 07 2023


AMIGADA

AMIGADA


Amancebou-se mais eu

Na última casa da rua:

Sem cortinado ou dossel

Meu catre era a alcova sua.


Sem dote, grinalda e véu,

Faz seus votos toda nua.

Amancebou-se mais eu

Na última casa da rua…


Na carestia mais crua,

Sem certidão nem anel,

Pede amor, recebe a lua! 

Amancebou-se mais eu

Na última casa da rua…


Betim - 20 09 2022


sábado, 22 de julho de 2023

VOLÚVEL

 VOLÚVEL 


O que queria tanto já não quero,

Agora qu’eu o tenho em minhas mãos.

Satisfeito o desejo, dias vãos…

Cujo tédio das horas mal tolero!


Eu vou d’ansiedade ao desespero

Buscar outros quereres, mesmo in-sãos.

Enquanto na ampulheta caem os grãos,

Entrego-me aos delírios do exagero.


— “Talvez sim; talvez não…” — eu me respondo

Em face das verdades que eu escondo

Por trás de mais e mais extravagâncias.


Mas, todo esse viver irreflectido,

Quer que a carência à vida dê sentido:

É entre mim e minhas circunstâncias.


Belo Horizonte - 15 07 2023


sexta-feira, 21 de julho de 2023

SILHUETAS

SILHUETAS


De perfil, contra a luz do sol poente,

Não mais que duas sombras abraçadas

Em face d'amplidão, onde douradas

Nuvens no céu lilás em gradiente.


Contrastam com o fundo esplandecente

Nossas formas vazias destacadas

A fazer de ilusões enamoradas

Um pôster de casal bem comovente.


O contorno dos corpos, todavia,

Adquire tons de doce nostalgia

À medida que os anos vão passando.


Assim, com essa foto na parede,

Esqueço todo mal que me sucede,

Olhando para nós de quando em quando.


Moeda - 07 07 2021

AO PÉ DO OUVIDO

AO PÉ DO OUVIDO


Se eu sussurrar um verso em teus ouvidos

Para após me beijares com ternura,

Penso as rimas valerem-me a procura

Onde no peito os sonhos são vividos.


A língua rebuscasse entre gemidos

A harmonia dos sons co'a formosura...

Logo eu cederia a esta loucura

De m'entregar ao gozo dos sentidos!


Então — somente então — tudo o que sinto

Arrancará do idioma uma grandeza

Capaz de enaltecer tua beleza.


Muito embora ao final seja indistinto

Falar ou acarinhar com minha boca

Enquanto a tua orelha me provoca...


Belo Horizonte - 12 08 1996  


VERSOS D'ALCOVA

VERSOS D'ALCOVA

 

Ainda em meio ao banho, por espelhos,

Te observava os reflexos no azulejo.

Desnuda-se a beleza n’um lampejo:

Curvas d’ombros, seios, nádegas, joelhos...


Mas, se paixões desdenham de conselhos,

Baldo é ditar razões contra o desejo…!

Ao toque de meus dedos, suave arpejo,

Deixaste nossos corpos já parelhos.

 

Logo não serei mais do que a loucura

De, ávido, m’embriagar da formosura

De tuas nuas curvas femininas. 

 

Após, abandonado sobre a alcova,

Com teus olhos nos meus eu me comova,

Revendo o teu prazer pelas retinas.

 

Belo Horizonte – 02 02 1992


quinta-feira, 20 de julho de 2023

NEVES ETERNAS

NEVES ETERNAS


O topo alcantilado da montanha,

Visto desde as estepes quase infindas,

Vem dar ao aventureiro boas-vindas

E após sua jornada ele acompanha.


Parte em caminhada assim tamanha

Em meio aos sós "aondes?..." ou aos "aindas!..."

Buscando as panorâmicas mais lindas,

Qual tesouros que ao léu a si apanha.


Alheio às incertezas do inaudito,

Nosso herói tomará o longo aclive

E um destino que temos por maldito.


Alcance a morte quem ousado vive,

Mas no topo estará ainda escrito

Junto a seu nome e a data: "Aqui estive".


Belo Horizonte – 10 01 2005  


quarta-feira, 19 de julho de 2023

PRAZERES

PRAZERES

Súbitos subterfúgios a mim ocorrem
Face à tua impassível compostura:
 — Talvez, se eu te lembrasse com ternura
Quão breve as rosas murcham e após morrem…

— Das areias do Tempo que escorrem
Céleres na ampulheta que o figura…
 — Das damas de afamada formosura,
Cujos nomes nas lápides já borrem!…

— Ou que, enfim, se uma chama em nós se apaga,
Um outro ardor no peito logo abunda,
Cicatrizando ao amante a sua chaga!

Mas, tu que de prazeres és fecunda,
Não deixes passar a época propícia…
Desperte o teu calor minha carícia!

Betim — 12 12 2010

LEITURAS

 LEITURAS


Se eu me outrar pelos eus em mim profundos,

Talvez co'a mesma mão distintas letras

Escreva como houvesse almas penetras,

Vagando indiferentes entre mundos.


E quanto a ti, leitor? Que erros rotundos

No ritmo de meus versos cronometras?...

Atentamente, as sílabas soletras

Ao visitar-me sonhos vagabundos?!


O estilete por vezes muda o estilo

Da pena que se afina entre conflitos,

Expressos com o espírito intraquilo.


Mas é o teu olhar sobre os escritos,

Que os tornarão leituras!... Nobre asilo

Onde poemas repousam infinitos.


Belo Horizonte - 19 07 2023


segunda-feira, 10 de julho de 2023

A QUE ME DEIXA

A QUE ME DEIXA


Uma mulher despede-se n'um sonho.

Dizia ela me amar, porém partia.

E eu, tomado de estúpida apatia,

Segui de longe seu olhar tristonho. 


Desperto a devaneio tão bisonho,

Cercando cada imagem que fugia: 

O porte senhoril, a graça esguia...

Dos gestos o donaire recomponho.


Não fixei de seu rosto coisa alguma;

Sequer lembro d'um nome a ter chamado:

Ou todas as mulheres; ou nenhuma.

 

Uma mulher n'um dia enevoado:

Lembrança que à memória desarruma...

Aquela que me deixa em meu passado.


Belo Horizonte - 07 09 1997

sábado, 8 de julho de 2023

EGIPTOLOGIA

EGIPTOLOGIA

Como uma lagartixa no cimento,

Deixou quentar ao sol as suas partes:

Uma estátua improvável para as artes,

Ensimesmada em seu padecimento.

O achado pousa sobre o pavimento,

Ao largo de monturos de descartes.

E há celeuma de hipóteses e apartes

Diante da antiguidade do momento…

Esqueçam sob a terra por milênios 

Depois tragam às lentes d’alguns gênios

E logo vai parar n'algum museu.

Mas muito mais do que o ouro da nobreza

A luz do artista egípcio traz acesa

Na pose inusitada que escolheu.

Betim - 07 07 2023









quinta-feira, 6 de julho de 2023

SONHAMENTO

SONHAMENTO


Isso da gente sonhar é coisa fina,

Onde os desejos brincam de existir

Nas voltas do já-ido co’o porvir,

Que rearranjam a trama cerebrina.


Uma outra realidade se imagina

D'olhos fechados na hora de dormir:

O sonho adentra o sono a produzir

Cenas como que envoltas em neblina.


Meio memória; meio fantasia,

A vida diferente acontecia

Ou apenas se fazia sem limites.


E ao despertar se vê que cada sonho,

Mais que algo singular ou até risonho,

Nos faz conosco mesmos por fim quites.


Betim - 05 07 2023


quarta-feira, 5 de julho de 2023

ANTIRROMÂNTICO

 ANTIRROMÂNTICO


A vida é muito mais do que um romance

Escrito para o amor nos dar alento.

Importa antes sentir que o sentimento 

E manter a alegria sempre ao alcance.


Desejo que a paixão em paz descanse

P’ra que possa gozar sem sofrimento.

Deixai de idealizar o encantamento

Vós que olhais o mundo de relance!


Sob pena de soar pouco literário,

Prefiro ver as coisas como são 

A viver n’algum limbo imaginário.


Aviso aos dependentes de emoção:

Deixai de ler meus versos ao contrário

Vós que buscais do amor sua ilusão!


Betim - 04 07 2023


domingo, 2 de julho de 2023

CELESTE

CELESTE


Moça d'olhos azuis; sorriso aberto…

Como se na terra um pouco do céu

Me permitisse Deus — embora incréu — 

Haver um anjo Seu no mundo incerto.


Talvez o céu quisesse estar mais perto

E aqui viesse ficar sem escarcéu

Na pupilas de quem sorrindo ao léu

Me iluminava o dia enfim desperto.


Ou senão porque o azul nos olhos d'ela

Um pouco do divino se revela,

Como se Deus brilhasse em seu sorriso.


Decerto, tanto azul nos olhos seus 

Parecem vir do céu ou vir de Deus,

Como se fosse um pouco o paraíso.


Belo Horizonte - 01 07 2023



sexta-feira, 30 de junho de 2023

IDÍLICO

IDÍLICO


Como não amar essas tardes quietas,

Em que o sol se demora sobre os montes?...

Vou prolongando o olhar nos horizontes,

N’um divagar de ideias incompletas.


Solidária aos lamentos vãos dos poetas,

A brisa murmurante pelas fontes

Me faz sonhar de ninfas ais insontes

A zunir entre abelhas, borboletas…


Na quentura que o sol de inverno traz,

Tenho à Natura deuses encontrado,

Por bosques e riachos, serenado.


Arcádias alterosas… Minha paz…!

Regozijo-me só de andar ao léu,

E pastoreio as nuvens pelo céu.


Betim - 29 06 2023








quarta-feira, 28 de junho de 2023

CORDEL MONETÁRIO

CORDEL MONETÁRIO


Ouvidos de mercador

Escutam quando convém:

Fale o freguês com desdém 

Do produto ou seu valor

E o vendeiro, sonso ou pior,

Fingindo que nada escuta,

Força cara de paisagem…

Se pechincham por vantagem,

Ignore qualquer disputa

Quem vive de porcentagem!


Eis um homem muito humano…

Atento às necessidades 

— E sobretudo às vontades! —

Dos que buscam, salvo engano,

O interesse quotidiano.

Vem como quem não quer nada,

Sondar alheios desejos

Com regalos e gracejos

Enquanto varria a entrada

Ou esfregava os azulejos.


Pelo sim; pelo não, solta

Um sorriso obsequioso,

De que, gaiato, faz gozo

A quem lhe sorri de volta,

Mostrando-se curioso.

Logo um mundo de vantagens

Desfila diante dos olhos

Do incauto posto de antolhos

Qual cavalos de carruagens

Ao pastar entre restolhos.


Não perde por esperar…

Com verde colhe maduro

No sentimento inseguro,

Que faz o mundo girar

E viver só no futuro.

Mas, ironias à parte,

A oculta mão do mercado,

Desde o varejo ao atacado,

É quem reduz engenho e arte

Ao vil metal dourado!


Betim - 28 06 2023


domingo, 18 de junho de 2023

À LUZ DE LAMPARINA

À LUZ DE LAMPARINA


Luz, de fio a pavio, à escrivaninha,

Enquanto a pena corre no papel,

Aquela débil chama, cujo cordel

Queimando lentamente cada linha.


Na noite mais escura e mais sozinha,

Tinha a mente febril; peito em tropel…

Escreve — sem patrão e sem troféu —

Rimas tantas quantas lhe convinha.


Arde no seu olhar a mesma luz,

Que pela escuridão a mão conduz,

N’essa ânsia de traçar letra após letra.


De sorte que ilumina o mundo inteiro

Tal luminar à guisa de candeeiro,

Quando a escrita com arte mais penetra.


Betim - 18 06 2023


CÉU DE CHUMBO

CÉU DE CHUMBO


Tem dia que parece noite… Quando

O sol some por trás da tempestade!

Muda a face da terra a obscuridade 

D'um forro de nuvens avançando…


O vento, antes revolto e depois brando,

Uiva um lamento vão de insanidade 

A encher de desalento e soledade 

Os cafundós baldios por onde ando…


Quase a me desabar sobre a cabeça,

Rogo ao céu que deveras anoiteça

E tudo não passar d'uma hora incómoda.


Baldo é, pois, a plumbífera atmosfera

Ganha ares de tragédia e de quimera

À medida que cobre toda a abóboda...


Betim - 16 06 2023


sexta-feira, 16 de junho de 2023

TEMPESTADE

TEMPESTADE


Porque o vento veio antes da tormenta

Quando minha janela estava aberta...

A chuva tropical e a noite incerta

Caíram sobre aquela hora agourenta.


Lá fora, a ventania logo aumenta

E sua ultraviolência me desperta.

Assomo ao parapeito mais alerta

Ao que cada relâmpago acrescenta.


Às escuras, embora 'inda se veja,

Quando em quando, o contorno da cidade

Mais as serras por onde a luz evade.


E, enquanto venta, chove, e relampeja,

A noite passa alheia de que esteja

Assombrado de sua intensidade.


Betim - 17 01 2011


terça-feira, 13 de junho de 2023

A CARA A TAPA

A CARA A TAPA


Reconheço que tenho errado. Eu sei…

Culpando todo mundo quando nada

Que faço tem a ver com a jornada,

Que em quiméricos mapas me tracei.


Ande como um mendigo ou como um rei

A direcção que tomo é sempre a errada.

Descaminhos... Qualquer que seja a estrada

Passa longe demais do que sonhei!


Não mais que um vagabundo tenho sido,

Que alhures vaga mundo entristecido

Em vez de se buscar uma saída.


Porventura não tenho outro horizonte,

Senão o de seguir, monte após monte,

Esconjurado a errar por toda vida?!


Betim - 13 06 2023


terça-feira, 6 de junho de 2023

A TÍTULO DE POETA

A TÍTULO DE POETA


Isso que o poeta fala não s'escreve,

Senão em rimas duras de se ler…

Fala do que ninguém ousa dizer

E põe letras onde outro não se atreve.


Tendo a língua pesada e a pena leve,

Expressa o que melhor lhe parecer,

Depois chama de poema o que entender

Capaz de extravasar quanto conteve.


Isso que o poeta fala não se diz,

Senão no escuro e só para si mesmo,

Embora a parecer palavras a esmo…


A título de poeta, esse infeliz

Fale e escreva de tudo, sem porém,

Depois chame de poema o que convém!


Betim - 05 06 2023


domingo, 4 de junho de 2023

PASSAMENTO

PASSAMENTO 


Há vida após a morte de quem se ama?

No dia em que morreres, meu amor,

Só peço que me mate a imensa dor

De já não me aquecer a tua chama.


À vida, com efeito, resta o drama

De existir sem sentido e sem valor.

Quem fica, fica d'esta para pior!

Falta que de saudade o povo chama…

 

Mas se eu ao teu final sobreviver,

Venha-me logo a morte por não ver

Um mundo sem a luz de teu sorriso.


No amor, feliz de quem morre primeiro!

Quem fica, fica a errar sem paradeiro

Desertos sem inferno ou paraíso.


Belo Horizonte - 26 05 2023


ANIMÁLCULOS

ANIMÁLCULOS


A pequenez moral sequer carece

De pôr lentes de aumento p'ra ser vista.

Bastam olhos a ver como o egoísta

Com sua própria sombra se parece.


Entre vidas minúsculas, floresce

Essa maldade vã pela conquista,

Que s’exibe com ares de arrivista

Orgulhoso de quanto desconhece.


Só por meio de planos desonestos

Vai, sociopatamente, ser no mundo

Este germe em tragédias tão fecundo.


Pois, como animaizinhos inquietos

Pululam aos zilhões — não sem perigo,

Parasita ele quem lhes der abrigo. 


Betim - 04 06 2023


segunda-feira, 29 de maio de 2023

ESPELHO D'ÁGUA

ESPELHO D'ÁGUA


“É belo!...” — Penso ao ver como s’espelha

O narciso que n’água se debruça

Ao vento, em divertida escaramuça,

Qual figurasse alguma lenda velha.


Alvo leque à corola bem vermelha,

Cujo contraste forte mais aguça

O olhar contemplativo que esmiúça

Tanto o reflexo à flor se lhe assemelha.


Indiferente a quanto não possuo,

Percebo-me riquíssimo, pois vejo

A imagem da beleza e do desejo.


Seja a revelação de que usufruo 

Por um momento tudo o que preciso,

No garrido admirar-se do narciso...


Betim - 19 02 2015


sexta-feira, 26 de maio de 2023

QUAL É?!

 QUAL É?!


A gente se fala amanhã…

A gente se vê qualquer hora…

Digo e nem escuto — que afã! —

Falo da boca para fora!...


Digo e nem escuto se agora 

Te parece soar coisa sã

A gente se vê a qualquer hora…

A gente se fala amanhã.


Digo e nem escuto — quão vã... —

E a conversa mais se demora

Ao longo de toda a manhã.

A gente se vê a qualquer hora…

A gente se fala amanhã…


Belo Horizonte - 25 05 2023


MEXERICAL

MEXERICAL


Paraopeba acima, diz que tem

Um lugar onde colhem mexericas.

Extensas plantações por terras ricas

Com galhas carregadas a quem vem.


É tanta fruta boa que ninguém

Se importa das rapinas impudicas,

Que os raros visitantes d’estas bicas

Em face do pomar mal se contêm!


Por estradas de chão empoeiradas,

Atravessam, afoitos, mil jornadas

Na fé de que os espera tal fartura.


Chegando lá, o esforço faz mais lindo

O pomar ao viajante ao ver, bem-vindo,

Prêmio quase tão bom quanto a aventura.


Brumadinho - 22 04 2023


segunda-feira, 22 de maio de 2023

POEIRA CÓSMICA

 POEIRA CÓSMICA


Após voltar ao pó, volta p'ro mundo

Todo aquele que um dia n'ele andou.

Volta para tornar-se algo fecundo 

Ao longo do caminho em que passou.


As cinzas espalhadas n'um segundo

Contavam d'outra história que acabou,

Mas os mortos se calam do profundo

Desidério que Deus lhes segredou.


O vento que levanta longe o pó

Silva a sua monótona elegia

E deixa a solidão 'inda mais só…


Existência que no ar se dissolvia 

Onde a luz zodiacal mostra tão-só

Uma nuvem de poeira ao fim do dia.


Belo Horizonte - 19 05 2023


sexta-feira, 12 de maio de 2023

FLEUGMA

FLEUGMA


Em resposta aos reveses d’estes dias,

Reservo-me um silêncio indevassável.

Se passo por fleugmático ou notável,

São antes distrações que fidalguias.


Mesmo poetas têm lá suas manias…

Não me afecto, a pretexto de sociável,

Tampouco ouço algo além do tolerável

Sem revirar nos olhos arrelias.


Nada obstante, mantenho quase alheia

A face ao vai-e-vem das emoções;

Todo um desdém vazio de expressões:


É que agora no olhar se me clareia,

Senão alguma argúcia edificante,

O verso que me absorve n’este instante.


Betim - 10 05 2023


terça-feira, 9 de maio de 2023

COM ÍMPETO

COM ÍMPETO 


Haverá a hora em qu’eu não haverei.

Até lá, sigo entregue a estas paixões

Que, escritas, pretendem-se ficções 

Vividas do que sou e do que sei.


Revejo toda a estrada onde passei,

Ao longo de alterosas vastidões,

Pois me busco ao galgar as solidões,

Todo em cada pegada que deixei.


Ainda me murmura o vento frio

Uma ária de aventura e desafio,

Enquanto m’equilibro junto ao espaço:


— "O horizonte é o prêmio do esforçado".

De vera, o mais bonito é conquistado

Às custas de suor e de cansaço!


Brumadinho - 22 04 2023


terça-feira, 2 de maio de 2023

ENTRE ASPAS

ENTRE ASPAS


Por ironia, falo o que não disse;

Ou melhor, do que não ouso dizer…

Como com subterfúgios pretender

Sugerir algo mais pela espertice.


Tanto o que disse quanto o que desdisse

Se completam n’aquilo que eu quiser.

E quem me ler, entenda o que puder

Ou esqueça como alguma esquisitice.


Metaforicamente ou algo assim

Faço parecer bom o que era ruim

E o que já era ruim parecer pior.


Mas tudo faz sentido no final.

Acrescento à palavra esse sinal

E ela haverá-de ser tudo o que for.


Betim - 02 05 2023


segunda-feira, 1 de maio de 2023

ESTE AMOR

ESTE AMOR


Penso que te amo como não amasse

Ou como não sentisse isto que sinto.

E finjo não amar, ou melhor, minto

No engano de que tudo logo passe.


Mas mesmo que no peito m'o calasse,

Ver-se-ia por meus olhos, indistinto!

Ao invés d'isto, vagueio em labirinto,

Topando a todo instante novo impasse.


Porque te amo a despeito de que me ames…

E ignorando dos sábios os ditames,

Eu em lamentações tenho vivido.


Contudo, eu amo. Eu te amo sem razão,

Sem esperança e até sem ilusão

De que um dia este amor faça sentido.


Betim - 24 03 2015 

quinta-feira, 27 de abril de 2023

ENVEREDADO

ENVEREDADO


Passando buritis e macaúvas,

Se anda por sobre os seixos d’um riachinho,

Que d’entre matagais se faz caminho,

Livre das lavapés e das saúvas!


Se pelas cabeceiras descem chuvas,

Escorria mais cheio e mais daninho.

Por sertões, logo logo me avizinho

D’onde Judas perdeu botas e luvas.


Então eu caminhava pelas águas

Certo de me perder de minhas mágoas

Por uma estrada para a solidão.


Mas mais do que alegria ou que tristeza,

Ali senti imensa a Natureza

Enfim me assossegar o coração.


Brumadinho - 22 04 2023


quarta-feira, 26 de abril de 2023

PELO QUE SEI

PELO QUE SEI


Embora ignore muito e saiba pouco,

Eu d’esse muito pouco faço tudo.

Quanto a saber de Deus, já não me iludo;

Nem O pretendo lógico, tampouco.


Desconfio de mim igual o louco

Que a medo do que diz se faz de mudo.

Não tenho qualquer mérito, contudo,

Tal como não me aumento, não me apouco.


Mais sábio não é quem tudo responde,

Sim aquele que sabe que s’esconde

A verdade bem fundo aos corações.


Quem pensa saber tudo, nada sabe.

Na cabeça da gente Deus não cabe…

E tudo o que sei d’Ele são clarões.


Betim - 26 04 2023


domingo, 23 de abril de 2023

OS AREAIS DO RIO DOCE

 OS AREAIS DO RIO DOCE


Aparecem ilhotas d’areia clara

Pelo meio do rio quando é seca

E o sol, como se diz na fala jeca,

Esturricava o chão da coivara.


Lá da estrada de ferro as avistara

Chamando a meninada mais sapeca

A pular n’água feito perereca, 

N’um recreio sem cuidados e sem vara…


“Aproveita teu dia!” — pareciam

Dizer esses areais que apareciam

Repletos de crianças e mulheres.


No desejo de praias fluviais

— Que hoje estão e amanhã não estão mais… —

Há todo o Paraíso e seus prazeres.


Naque - 22 07 2015


POAIAS

POAIAS


Diz-que n’estes rincões de matas claras

Buscavam sertanistas por poaias

Munidos de facões e de azagaias,

Entre terras inóspitas, avaras…


Ervas de garrafada; das mais caras,

Tidas por panaceia n’outras praias.

Urgiam boticários e outras laias

Suas acções eméticas e amaras.


Escambos de cachaças por raízes

Deixaram mais histórias infelizes

No encontro entre gentios e poaieiros


Foi assim que em sertões do rio Doce

A cura dos achaques se nos trouxe

A febre da ganância por dinheiros.


Caratinga - 24 07 2015


quarta-feira, 19 de abril de 2023

EMBEVECIDO

EMBEVECIDO

Parecia que nem parecia eu.

Antes um outro olhando da vidraça

Essa mulher belíssima que passa,

Deixando feito estrela o brilho seu…

Por um instante o tempo se perdeu

De minha mente imersa em luz e graça.

Enquanto, lentamente, ela s’espaça

De quanto meu olhar já conheceu.

Ainda boquiaberto só por vê-la,

Demoro-me parado na janela 

Como a tentasse reter pelas retinas

Oxalá eu consiga ter em breve

A graça de minh’alma tão mais leve

À luz de suas formas femininas.

Betim - 19 04 2023












OLHOS MENINOS

OLHOS MENINOS

Ver era tudo ser grande e confuso.

As pessoas, as coisas, a cidade…

Andava então co’os pés em liberdade:

Descalço pois moleque; pois cafuzo.

Lembro gírias d’antanho, hoje em desuso:

Mil tabuísmos ditos sem maldade!

Linguagem era, enfim, vivacidade

Quase sempre limítrofe do abuso.

Eu, sem saber de nada, tudo intuía.

E até minha noção de fantasia

Perscrutava por sombras de mistério.

Ver era tudo ser sem ser de facto.

De brincadeira, sonho ainda intacto

O gude que lancei pelo Sidéreo!

Betim - 19 04 2023

MILIMÉTRICO

MILIMÉTRICO


Paquímetro na mão, meço a bitola

D’uma rosca sem fim helicoidal,

Que há-de girar, precisa e funcional,

Para abrir e fechar a portinhola.


Muitas artes e ofícios desde a escola,

Traçando em projeção ortogonal…

Mas tinha-de dar certo no final,

Senão não era nem uma gaiola!


O aço, tão exigente quanto o verso,

Não tolera o desvio controverso

Quando tem-de ser posto em movimento.


Pois soa, ao ser medido, harmonioso:

Faz deslizar no encaixe industrioso,

Um sopro de razão e sentimento.


Betim - 18 04 2023








domingo, 16 de abril de 2023

CARRO DE BOIS

CARRO DE BOIS


Chia em meio às lembranças dos grotões,

Quando passo por onde ele passava.

Em toada lenta, é quanto carregava

Que fez de mim quem sou n’estes sertões.


Passou o tempo vão das ilusões,

Do qual minh’alma só se fez escrava:

N’uma carreira louca me apressava

Correndo o abecedário das Nações!


Hoje, de volta ao meu torrão natal,

Eu sinto aquele dia tal-e-qual,

Como se nada houvesse aqui mudado.


De facto, a bordo d’um carro de bois,

Até o tempo aqui passa depois,

Sem saber se presente ou se passado.


Sobrália - 22 12 2020


quinta-feira, 13 de abril de 2023

POR ENTRE DENTES

POR ENTRE DENTES


Devolvo-lhe a ironia com veneno,

Triturando seus ais por entre dentes.

Como pensasse em voz alguns repentes,

Despistados no olhar quase sereno.


Injustiças do grande co’o pequeno

Eu rumino com lábios insolentes:

– “Se tudo muito ruim aos excelentes,

Regozijo nenhum se lhes é pleno…”


Não há como agradar desagradáveis,

Tampouco s’esperar mais polidez

D’aquele que, mandando, nada fez!


Concluo em termos bem pouco amigáveis:

– “De toda a humanidade desprovido,

Se sente que nasceu a ser servido…”


Betim - 12 04 2023


terça-feira, 11 de abril de 2023

DIAS E NOITES

 DIAS E NOITES


Varação de florestas, serras, grotas…

Dias e noites indo para lá,

Sem mapas nem caminhos. Sem um ah!

A evitar gentes ímpias ou devotas.


Busca zonas tórridas e ignotas

Nos perdidos sertões do já-não-há;

Passa o raio que o parta e o jatobá,

Por onde perdeu Judas suas botas.


Para chegar à terra mais vazia,

Dias e noites sós em travessia,

Na esperança d’ali viver em paz.


Debalde: Pelo olhar, aquele vulto

Há-de pôr o seu peito n’um tumulto

Até onde no escuro o nada jaz.


Betim - 10 04 2023


quarta-feira, 5 de abril de 2023

DAS TRILHAS

DAS TRILHAS


1.

Amar ser quem se é,

como estar onde se está.

— Eis felicidade!


2.

Uma estrada ao sol.

Caminho para a distância

sorrindo sozinho.


3.

À curva do aclive

paisagem se descortina:

Céus e terras azuis.


4.

Passo a passo além.

É também dentro de mim 

que o sol brilha forte!


5.

Prêmio de andarilho, 

um sítio só e aprazível.

Sombra e água fresca.


6.

Chegando à cachoeira,

Os calos por sob as botas…

Alívio a pés e almas.


Itabirito - 15 03 2023


quinta-feira, 30 de março de 2023

ELOQUÊNCIA

ELOQUÊNCIA 


Espevitasse o poeta a sua verve,

Como se um fogo dentro se lhe ardendo,

Ver-se-ia das palavras o estupendo 

Fulgor que, embora belo, a nada serve.


De facto, à sua voz o sangue ferve.

Onde um som harmonioso, em havendo,

Traga significados por adendo,

‘Inda que intenção poética conserve.


Pois, aos olhos do poeta letras d’ouro

Reluzem belamente no tesouro

Do vernáculo lírico que o inspira.


Escreve pelo amor de lhes dar sons

Que ecoem nas tribunas por seus dons,

Fazendo sentir como ele sentira.


Betim - 28 03 2023








ÀS MÁS LÍNGUAS

ÀS MÁS LÍNGUAS


A quem vive a falar de como vivo

E lamenta meus versos tão-somente,

Diria que concordo plenamente,

Mas pulhas não carecem de incentivo…


Hão-de maldizer com ou sem motivo

Qualquer um que toparem pela frente.

Não resta ser senão indiferente

A todo o farfalhar provocativo.


Buscando-se algum dito espirituoso,

Encontram na maldade tanto gozo,

Que se arvoram gigantes ao pequeno.


Deixa estar, pois, falando como falam,

No burburinho súbito se calam

Malferidas com seu próprio veneno!


Juatuba - 27 03 2023


quinta-feira, 16 de março de 2023

NASCER-DO-SOL

NASCER-DO-SOL

Se amanheceres junto com o dia,

Verás banhados d’ouro os edifícios…!

De facto, há mais beleza nos inícios 

Cheios de novidade e fantasia.


Não se trata de vã alegoria,

Entre boas virtudes e maus vícios,

Mas sim de atravessar sem artifícios 

Paisagens luminosas com alegria.


Madrugando sem rumo por estradas,

Buscarás nas distâncias alvoradas

Rajadas onde quer que o vento passe.


É tudo tão sublime e tão fugaz,

Que não ouso chamar senão de paz

Este tranquilo instante em que o sol nasce.


Betim - 16 03 2023

terça-feira, 14 de março de 2023

EVANESCER

EVANESCER


Eu não estou me sentindo bem…

Eu não estou me sentindo…

Eu não estou me…

Eu não estou…

Eu não…

Eu…


Betim - 14 03 2023

domingo, 5 de março de 2023

PELO GARGALO

PELO GARGALO


De repente olho dentro da garrafa 

E o líquido brilhante me surpreende.

Vendedor, eu reparo em que me vende…

E estico igual pescoço de girafa!


Contra a parede sinto que me abafa 

N’aquela persuasão de quem empreende

E chama de tesouro quanto entende,

Cercando feito peixe na tarrafa.


Embriaguez tem a ver com sedução.

O álcool acelerando o coração 

Expulsa todo o senso de ridículo:


Uma mulher olhando de soslaio…

Coloco outra bagunça no balaio

E mais uma tragédia no currículo.


Betim - 03 03 2023


domingo, 26 de fevereiro de 2023

ANTENUPCIAL

ANTENUPCIAL


Eu, apesar de amar, venho primeiro 

Buscar-te garantias que, no fim

De nós, ainda reste para mim

Senão o amor, ao menos o dinheiro!


Indo do interessante ao interesseiro,

Há-que se pôr um “mas” antes do “sim”.

Visto que as pessoas mudam, assim,

Prove-se o sentimento verdadeiro.


Tu, no final das contas, com louvor,

Confirmas em cartório o nosso amor

Nos termos d’um contrato rubricado.


Em vão… D’olhar vazio e bolsos cheios

Terei antes rancores do que anseios

Para me consolar se abandonado.


Nova Lima - 10 02 2023


PITONISA

 PITONISA


Segreda às pedras tuas sós verdades,

Enquanto a lua apenas acontece...

Ou senão a poesia -- oferta e prece --

Revelará dos deuses as vontades.


Não obstante, entre enigmas e obviedades,

Hás-de contar somente algo que expresse

O destino que todo homem padece

Iludido com suas liberdades.


Tu, sacerdotisa do profundo,

Assentada no umbigo d'este mundo

Poetizas os desastres do porvir.


De vapores por fim entorpecida,

Teus versos profetizam morte e vida

Dos quais tantos em vão tentam fugir...


Belo Horizonte - 06 07 2002

MONTANHISTA

MONTANHISTA


À minha volta já não vejo terra

Mais alta que a debaixo dos meus pés!

Lançada a sorte, esqueço haver revés,

Ao longo do abismo onde a trilha encerra.


Aqui, do alto mirante, a mirada erra

Por vales neblinados e através 

Das nuvens arrumadas lés a lés

O sol nascendo lá detrás da serra.


Ao chamado das íngremes jornadas,

Lucidamente varo madrugadas

E contemplo no céu luzes estranhas.


E a quem acaso possa interessar,

Sabei nas grimpas meu comum lugar:

Fiz morada nos cumes das montanhas.


Igarapé - 25 02 2023

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

ENTRETENIMENTO

ENTRETENIMENTO


Gasto a vida a ocupar-me em distrações

Como se, ao dar leveza ao quotidiano,

Lograsse anestesiar-me, salvo engano,

No afã de ver verdade nas ficções.


Se de letras advogo as opiniões,

Não ignoro de imagens quão mundano

O apelo a consumir-nos, não sem dano,

Em meio a fantasias e ilusões.


Passo as noites sem sair de minha casa,

Ainda que minh’alma tenha em brasa,

N'um desejo maior de humanidades.


Porque apenas descansar para o trabalho 

Não me faz da existência quanto valho,

Sim, tão só, me alienar necessidades.


Betim - 20 01 2023


terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A TODA

A TODA


Veloz, como se o tempo fosse pouco

E devesse viver anos em dias!…

Demais, como estivesse meio louco,

Às voltas com prazeres e alegrias.


Se não tinha mais dúvidas, tampouco

Se ilude com as suas fantasias.

À incompreensão alheia, o ouvido mouco

E um coração a encher de melodias…!


Poeta?! Tem dimensão de eternidade 

Nas efemérides vãs d’essa saudade

De ser tudo apesar de não ser nada.


A toda, pelo tempo que lhe resta,

A própria realidade ele contesta,

Girando na espiral alucinada.


Betim - 17 01 2023





sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

PLUVIOSO

PLUVIOSO


Nas águas, fico insípido após dias

Passados entre a espera e o desalento.

E o Sul, sempre a nublar o firmamento,

Estende à imensidão melancolias.


Atravesso sem reis ou suas folias

Outro entardecer húmido e cinzento…

A ver a arrumação que fez o vento

Precipitar enfim horas sombrias.


Mas guardando os enfeites do Natal

N’um lento e solitário ritual,

Penso que a chuva leva embora tudo.


Eu deixo uma guirlanda na enxurrada,

Levando as boas festas para o nada,

Na esperança do céu se abrir desnudo. 


Betim - 06 01 2023


domingo, 8 de janeiro de 2023

CIANOTIPIA

CIANOTIPIA


Porque por tons de azul a realidade

Ficava mais bonita no papel:

Azul da cor do mar; da cor do céu,

E o objeto se revela à claridade!


N’uma monocromática verdade,

A imagem retratada sem pincel

Ou sem câmara escura, mais fiel

Onde a sua translúcida saudade.


Porque gravada à luz a Natureza 

Reveste-se de ciência e de beleza

Nas páginas do livro precioso.


Seja, desde o claríssimo ciano

Até o azul profundo do oceano,

Memória sob um sol maravilhoso!


Betim - 08 01 2023


sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

LGBTFILIA (e você com isso?!…)

LGBTFILIA (e você com isso?!…)


Eu gosto de gente que se ama;

que proclama aos quatro ventos seu amor.

Gosto de gente que se gosta

e aposta no prazer, nunca na dor.


Não gosto de quem não gosta

ou de quem se desgosta para odiar.

Aposto que nem resposta

tem dentro do seu peito para dar:


R - "E você com isso?!…

E -  Se o desejo d'ela é ter ela!"

F - "E você com isso?!…

R -  Se o desejo d'ele é ser ela!"

Ã - "E você com isso?!…

O -  Se não se quer ele nem ela!"


Falo de atração e amor,

em lugar do que for prejulgamento.

Não de aversão e rancor

ou qualquer forma ruim de pensamento.


Deve ser falta de assunto

fazer da vida alheia um reboliço.

Dá gosto ver quem ama junto

e mais ninguém tem nada a ver com isso…


Betim - 05 01 2023

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

O FOOTING

O FOOTING


Mas era um tal de dar voltas à praça, 

Que, étoile, recebia bulevares

E avenidas de todos os lugares,

N’um tempo em que sonhar era de graça…


Em flerte, a mocidade se congraça

Junto das topiarias da Raul Soares,

Pelo circular lento dos andares

De quem então s’encontra e se abraça.


Tudo muito romântico não fosse

Logo a noite avançar aos que vadiam

N’outro serão devasso-porém-doce,


Nos cabarets e dancings das esquinas,

Onde aqueles bons moços se perdiam,

Depois de apaixonarem às meninas…


Belo Horizonte - 17 12 2022


domingo, 1 de janeiro de 2023

POETICIDADE

POETICIDADE 


Enquanto qualidade do que poético,

— Além-Literatura ou qualquer Arte —

Está a percepção que se comparte

Alhures no deslumbre, em facto, estético!


Porém, se me permitem um aparte, 

Tal encanto é saber peripatético 

A surpreender o crente como o cético

Das voltas do poetar em toda parte.


O poético está antes no momento 

Do que na escrita ou até no pensamento,

Visto ser um encontro a traduzir.


De modo que há poesia sem escrita

Em quanto extraordinário se acredita!

Só carece de letras p’ro porvir…


Betim - 31 12 2022