quinta-feira, 22 de maio de 2025

DEDO PODRE

DEDO PODRE

Certa vez, em resposta a um comentário d’ela, escrevi: “Ela tem o dedo podre, o coração de pedra e o sexo seco.”

Foi a coisa mais dura que escrevi sobre alguém, em toda a minha vida.

Eu estava magoado após ela ter dito a quem quisesse ouvir que tinha o dedo podre para escolher homens. Eu não me fiz de desentendido. Incluí-me em sua afirmativa e lhe fiz essa descrição desfavorável, antes sentimental que anatômica -- Sim, o dedo podre, mas não só...  Era como se concordasse, porém esclarecendo ser seu dedo podre quem estragava tudo o que tocava. Não eram os homens que passavam por sua vida inservíveis — ou podres, como ela os qualificou — mas sim ela que os deteriorava com sua incapacidade de ser recíproca. Forçoso esclarecer que dar para receber nunca lhe foi primordial em relações amorosas, ao menos a meu ver.

De qualquer modo, a violência de meu juízo a seu respeito me chocou. Era despeito, obviamente. Enquanto lhe orbitei a existência, eu tolerara suas maneiras com a esperança de lhe inspirar afeição. Todavia, passados anos n’esse jogo insidioso de apostar cada vez mais alto apenas para confirmar que a sorte jamais me sorriria, eu me vi perdido em ressentimentos e ciúmes. Dei para falar muito mal do amor, sentimento que supunha sagrado, para, após, destilar todo esse fel que me subia à boca diante do fracasso de nossa vida a dois. 

Penso que descuidei de mim. Deixei a barba e o cabelo desleixados, bebendo excessivamente. Atravessei noites e noites em longas e solitárias caminhadas de canto a canto da cidade sem qualquer propósito senão investigar as obscuras motivações que nos lançaram um nos braços do outro. Aparentemente, recordando agora, era como cavasse um poço dentro de mim mesmo onde eu m’escondesse dos olhos de terceiros e seus julgamentos. Nada era conclusivo. Eu revirava hipóteses sem conseguir chegar a uma teoria que me servisse de verdade, precária e provisória que fosse, sobre o que havíamos vivido juntos. 

Talvez ela tivesse, de facto, o dedo podre — o que fazia de mim não mais que uma decepção. Talvez ela tivesse me apodrecido — o que fazia d’ela não mais que uma egoísta. Não sei se o leitor, ou leitora, me acompanha o desatino, mas ambas proposições me parecem hoje injustas. Aceitá-las seria desgostar tanto d’ela quanto de mim, algo que, ao fim e ao cabo de tudo, nós não merecemos. Mas, e a podridão do dedo? Outra figura infeliz de linguagem comum aos desapaixonados. Servira tão-somente para expressar algo que também eu sentia àquela época: Azar no amor. 

Fechadas as contas, ambos nos ofendemos. Dedo podre?... Coração de pedra?... Sexo seco?... Culpa-se quem não sente ou quem não faz sentir? Se o outro não atrai, afetiva ou sexualmente, tal insensibilidade é uma questão do casal, não de cada um por si. De minha parte, esse episódio resta como um momento de imaturidade emocional. Eu lamento ter escrito o que escrevi. 

Betim - 21 05 2025

quarta-feira, 21 de maio de 2025

NÃO ME TOQUES

NÃO ME TOQUES


Vai-te e me deixas; volta aos teus cuidados. 

Afasta-te de mim — tu que me amaste —

Fala que fui um vil e sou um traste;

Se vierem questionar, lembra passados…


Depois de tantos anos de desgaste,

Passe eu como errado entre os errados;

Outro a arfar sob os olhos elevados 

D’estes cuja honra têm em altiva haste.


Não negues a tua íris furta-cores

Luzir sobre boníssimos amores,

Por um que se conhece e após s’esquece.


Deixa-me retornar à escuridão 

— Tu que me foste amada — Na ilusão

De me lembrares só em tua prece.


Inhapim - 20 07 2011


quarta-feira, 14 de maio de 2025

INTERREGNO

INTERREGNO


D'agora até um ano esperarei

O necessário arder das emoções.

Decido não tomar mais decisões 

Incerto do que sei ou que não sei.


Enquanto isso, farei do acaso lei.

Nada de procurar explicações…

Tampouco hei-de guardar as convenções,

Dando-lhes a atenção que nunca dei.


Pode ser que hoje eu vá passarinhar.

Pois, dono de meu tempo e meu lugar,

Não quero senão luzes em meus olhos.


O sol, o céu, a tarde, a solidude…

Espero que a beleza se desnude,

Mesmo que em meio a cinzas e restolhos.


Betim - 13 05 2025

terça-feira, 13 de maio de 2025

LICEU

 LICEU


Palácio do saber, a minha escola

Fez de mim quem eu sou e quem não sou;

Quem, por artes e ofícios, m’ensinou

A poetar desde quando rapazola.


Esse mal de escrever ninguém curou.

Embora julguem algo meia-sola,

O exercício da pena não descola

D’este homem que a vida me tornou.


Faço, defronte ao prédio, reverência 

Ao lembrar minha breve experiência

Pelos seus corredores juvenis.


Eu lhe deixo este poema como ex-voto,

Escrito à mão no avesso em minha foto,

De que ali, poeta e moço, fui feliz. 


Belo Horizonte - 06 01 2000 


sábado, 10 de maio de 2025

O INAVIDO

 O INAVIDO 


Jamais! Nunca houve e, não, nunca foi visto.

Como pode ser contra a realidade

Tudo quanto da mente nos evade

Para além do saber d’aquilo ou d’isto?


Não importa se penso ou mesmo existo;

Se nem o Omnividente à claridade

Houve por bem mostrar, onde a verdade

Senão nos vãos dos sonhos eu conquisto?


A morte como modo necessário 

De se dar à consciência o temerário 

Conhecimento do que é e o que foi antes.


Findo o mistério; tudo revelado,

O mundo surgirá desencantado

Às íris dos meus olhos delirantes.


Betim - 20 10 2010



ESTRADAS BRANCAS

 ESTRADAS BRANCAS


Clara noite de lua nos cristais

Do caminho espraiado pelo vale.

À trilha esbranquiçada, mal resvale

Cada passo deixado para trás.


Não cante a minha boca mais meus ais…

Em face da beleza, tudo cale!

Esta visão de sonho apenas fale,

Na fé que enluarado eu ande em paz.


Além, pelo horizonte, as amplas serras

Fazem maior a noite n’estas terras,

Já sem temer das penhas as carrancas.


Eu sigo sem saber aonde vou

Pelo encanto de ver que agora sou

Aquele que caminha estradas brancas.


Tabuleiro - 16 06 2024


quarta-feira, 7 de maio de 2025

INTERVALO

INTERVALO


Entre o epílogo e o prólogo, atravesso

Todos os movimentos da consciência.

Viver é desmedida ambivalência

De ser quem se é e ainda o seu avesso.


Se tenho sido só desde o começo,

Não fiz senão do encontro uma excelência,

Apesar da mais notória incompetência

Em caminhar tropeço após tropeço.


Eu sigo a narrativa sem negar

Que as várias trajectórias e os olhares,

São só pelo prazer de m’expressar.


E, sábio que não sou, arrisco azares:

— “Importa antes o durante com seu drama,

Que dar moral à história que se trama”.


Betim - 07 05 2025


DOIS DE JANEIRO

DOIS  DE JANEIRO


Há um imenso vazio na manhã,

quando a mente não se alinha ao quotidiano.


Atravesso a rua, entro pela portaria, subo as escadas, sento em frente à tela…

Trabalho sem saber se será útil o que faço. Desconfio.


Pareço ser, mas não sou.


Celebrei as novidades da vida e a cabeça ainda

parece latejar de excessos. Desatino.


Saúdo a todos, pergunto pelos seus, mas

minha mente continua vendo nuvens

no alto de remotíssimas montanhas, eu não entendo.


O sonho atravessa a realidade.


Estou aqui, mas também lá, entendes?

Eu, tampouco.


Betim - 2025


terça-feira, 6 de maio de 2025

O DESCASADO

 O DESCASADO


Eu volto da cidade para casa

Sem saber, todavia, onde é meu lar.

Da janela do trem, a hora a passar

Arde céus nos meus olhos em brasa.


De novo sem destino e sem lugar,

Não ligo se o comboio mais se atrasa.

Apenas que a memória um tanto rasa

Me deixe inutilmente de lembrar.


Distrai este horizonte em movimento.

Tudo muda, momento após momento, 

Até que nada seja mais como antes.


Percebo-me, afinal, um passageiro.

Na ilusão de ser só-mas-verdadeiro,

Como errados, erráticos e errantes…


Belo Horizonte - 11 12 2010


segunda-feira, 5 de maio de 2025

PARTILHA

PARTILHA


Nós nem sequer fomos felizes,

Para sofrermos tanto assim.

Feridas viram cicatrizes…

Isto não é bom nem é ruim.


Todos se desgostam no fim

E andam pelo mundo sem raízes. 

Para sofrermos tanto assim,

Nós nem sequer fomos felizes!


Todos lamentam seus deslizes,

Gastando em vão o seu latim

Entre advogados e juízes...

Para sofrermos tanto assim,

Nós nem sequer fomos felizes!


Betim - 20 04 2025


sexta-feira, 2 de maio de 2025

MUNDOS E FUNDOS

 MUNDOS E FUNDOS


Disse ele que fazia e acontecia,

Mesmo que contra tudo e contra todos.

Homem de muitas falas de denodos,

Sem ter noção de si, aborrecia.


Muito maior do que era parecia,

Ou melhor, fez-nos crer com mil engodos.

Ser capaz de tirar ouro dos lodos,

Quando dos tolos mais s’enriquecia.  


Pergunto-me, afinal, a quantas anda

Seu castelo de cartas admirável

Fundado só n’um nome indevassável.


Resultando em fortuna miseranda

De títulos mais podres que defuntos!

Disse ele que fazia… E fomos juntos…


Betim - 02 05 2025


ÀS GARGALHADAS

ÀS GARGALHADAS


O riso da menina longe ecoa

Pelo imenso palácio da memória...

Mulher feita, sorri face à vitória

Da infância sobre o tempo e sua c'roa.


Ouve e se vê: Insólita pessoa!

— Uma vidinha nada meritória.

Contudo, ainda crê que sua história

Fará lembrar alguma coisa boa.


Aquela gargalhada sem vergonha,

Foi que fez a ela, mãe, se ver na filha 

E entender da alegria a maravilha.


Talvez já não se veja tão tristonha

Tendo tanta alegria ora à retina.

Ouve e se vê: Ainda uma menina...


Betim - 22 08 2011 

ALGAZARRA

ALGAZARRA


A alegria ruidosa dos meninos 

Martela em meus ouvidos embotados.

Às gargalhadas, vêm muito agitados

Cercar-me os solitários desatinos.


Correm os seus brinquedos vespertinos,

Soltando exclamações pelos gramados,

A ponto d’eu deixar quaisquer cuidados,

Em face do festim dos pequeninos.


Deixo as letras e os números do dia

E m’entrego à fruição da fantasia,

Que aquela meninada m’ensinava.


Por dentro, corro e grito brincadeiras

Quase a esquecer de vez minhas canseiras,

Certo de qu’eu também ameninava.


Betim - 16 10 2009


sexta-feira, 25 de abril de 2025

REFLEXOS

REFLEXOS


Veem d'onde se vem e aonde se vai.

De resto, sempre foi pelo poder

E à luz do que se deve ser ou ter:

Fidalguia do pai do pai do pai…


Indiferente já porque se trai,

A vidas em suspenso, diz: — ”A  ver…”

A bem da sanidade, deve crer

Que ao fim no esquecimento tudo cai.


“Se quanto consegui não me define,

Tampouco o meu fracasso diz de mim.”

— Filosofa ao encarar-se na vitrine.


Veem o que querem ver ou algo assim,

Mas segue sem que a angústia desatine.

No mais, não lhe parece bom nem ruim. 


Betim - 24 04 2025


terça-feira, 22 de abril de 2025

PROSCRITO

PROSCRITO


Se não surpreende a fúria dos perversos,

Tampouco a ingratidão dos infelizes.

Reste, de tudo, apenas cicatrizes

E ecos a distanciar uns ais dispersos.


Cumpra-se: Fora o poeta mais seus versos!

Erva daninha arrancada co’as raízes, 

Sirva de precedente a outros juízes,

Em paga de argumentos controversos…


Onde Judas perdeu as suas botas

Ou no fundo das mais profundas grotas,

Ei-lo lá, sorumbático e esquisito.


Em vão tentam dobrar o desvalido.

Ao fim, nem a distância nem o Olvido

Hão-de apagar o seu nome maldito.


Betim - 18 04 2025







quarta-feira, 16 de abril de 2025

A PERDER DE VISTA

A PERDER DE VISTA

No alto da grande serra, a imensidão.
Olho e vejo as montanhas na distância
E deixo o olhar perder-se pela errância
De quanto há de aventura ou solidão.

Perto demais do céu e preso ao chão,
Percebo sentir tal desimportância,
A ponto d’eu me ver sem arrogância,
Em face da vastíssima extensão.

Por artes de berliques e berloques,
Vim dar n’estas alturas desoladas
Até descortinar todo o horizonte.

Céus e terras azulam-se desfoques.
Miragens na miopia aquareladas,
Em tudo quanto vi além-defronte.

Brumadinho - 13 04 2025

sexta-feira, 11 de abril de 2025

SONOLÊNCIA

SONOLÊNCIA

D’olhos pesados, mal distingo o dia

A alvorecer por frestas de persiana.

Vem claridade ardendo-me a pestana,

Sem que inteiro desperte, todavia.

Tateio até o banho, cuspo à pia

E vejo a água sumir na porcelana.

Enquanto a mente enfim se desengana,

De quanto o sonho nutre a fantasia.

N’uma semiconsciência bocejante,

Preparo o meu café com pão dormido,

Mas sigo contra as luzes, relutante.

Ainda assim, o sol que ora invalido

Há-de me acompanhar, instante a instante.

E eis-me em péssimo humor amanhecido…

Betim - 10 04 2025


terça-feira, 8 de abril de 2025

INFECTOCONTAGIOSO

INFECTOCONTAGIOSO


Não me toques; retorna aos teus cuidados. 

Afasta-te de mim — tu que me amaste…

Fala que fui um vil e sou um traste;

Se vierem questionar, lembra passados…


Depois de tantos anos de desgaste,

Passe eu como errado entre os errados

Outro a viver senão de maus olhados

D’estes cuja honra têm em altiva haste.


Não negues a tua íris furta-cores

Luzir sobre boníssimos amores,

Por um que se conhece e após s’esquece.


Deixa-me retornar à escuridão 

— Tu que me foste amada… Na ilusão

De me lembrares só em tua prece.


Inhapim - 20 07 2011


POR GENTILEZA

POR GENTILEZA


Aquela que me tem no pensamento

Me olha com olhos ternos amiúde,

Como se me sondasse a solitude

Em resposta um pudico atrevimento.


Eu lhe saúdo e guardo o seu assento,

Talvez a parecer-lhe menos rude.

Mas tal proximidade não a ilude,

Enquanto inacessível me apresento.


Ela olha e nada vê de meu desejo

Mesmo que se pergunte como a vejo

Em sua primavera encantadora.


E, a pretexto de vaga polidez,

Posso tê-la comigo uma outra vez,

Quase perto demais por mais uma hora.


Belo Horizonte - 20 11 2005


quarta-feira, 2 de abril de 2025

GRAFOMANIA

GRAFOMANIA

Por hábito ou distúrbio, tenho escrito

Essas frases que alguns chamam de versos.

Proponho pensamentos controversos,

Tentando fazer soar algo bonito…


Vez ou outra, eu especulo do infinito,

Enquanto crio em vão vãos universos.

Ou caio em mim no afã por ais dispersos,

Em face do que já desacredito.


Eu faço caber letras mal traçadas

Dentro de minhas horas perturbadas,

Ao preencher o vazio de existir.


Mas não cuido se agrado a quem me lê.

Apenas deixo ao vulgo sem porquê

Algo para pensar e até sorrir.


Belo Horizonte - 01 04 2025



DISRUPTO

DISRUPTO


Outra embira pocou. Na travessia…

Foi um-deus-nos-acuda estrada afora.

O tempo e o pensamento, ainda agora,

Não veem senão total desalegria.


Corta o fio da meada quem havia-

De perder o arrazoado, muito embora

O curso do discurso desde outrora

Em face da tropeira alegoria.


E não desconversaram: Rompimento.

O que entendera eu coisa de momento,

Se mostrou a cumeada da montanha.


Outra embira pocou. Na caminhada…

D’ali foram sozinhos pela estrada,

Cada qual com a própria história estranha.


Mateus Leme - 28 03 2025


terça-feira, 1 de abril de 2025

BANANA-OURO S/A

BANANA-OURO S/A


Antes, compram a preço de banana;

Depois, vendem a preço d'ouro fino.

Verdadeira mentira, sô menino,

A ríspida arrogância d'um bacana.


De primeiro, faz crer que não s' engana;

No afinal, faz pensar que foi destino.

Mas, de vera, era tudo um desatino,

O perde-ganha vil de gente insana.


Esperanças à parte, s'especula...

Mas tanto faz a fome quanto a gula:

Uma hora todo mundo quer comer.


"Olha a banana!" - gritam no pregão

Verdade, sô menino, era ilusão:

Não há nada a ganhar, só a perder.


Betim - 20 03 2025 

DILEMA

DILEMA

Entre aquilo que quero e o que preciso,
Encontro a escuridão da encruzilhada.
Por desoras, o nada além do nada
Cogito filosófico e indeciso:

Pondero prós e contras; desrealizo
Planos d'uma existência iluminada.
Farei quanto m'exige a hora passada,
Mesmo tendo-de andar de sobreaviso.

A escolher, dois sentidos lado a lado.
Qualquer que seja o rumo, por fim, dado,
Ainda haverá perda e desalento.

Ou isto ou aquilo? Ainda hesito...
Tanta insatisfação que acredito 
Já não ser eu senão o meu lamento.

Betim - 15 03 2025

quarta-feira, 26 de março de 2025

PEQUENEZAS

PEQUENEZAS


No poste um joão-de-barro que argamassa 

As paredes da casa onde seu ninho

Faz cobrir, de pouquinho com pouquinho,

Até que a rude abóbada s’espaça.


Nas alturas, vivendo sem vizinho,

Vê o povo indo e vindo pela praça,

Enquanto atarefado a tarde passa

Com seu mínimo lar de passarinho.


Embora parecesse quase nada,

Já era alguma coisa aquilo tudo:

Acompanhei-lhe as obras da morada.


E quando dou por mim, o olhar desnudo

Não me contém a lágrima furtada

À ânsia d’um passarinho tão miúdo.


Betim - 24 03 2025

sexta-feira, 21 de março de 2025

MONJOLO

MONJOLO


Grão por grão no batido do pilão,

Enquanto a bica escorre calha afora.

Espigas esfarinham desde a aurora

Para o festim das aves do grotão.


As águas descem fartas no rincão

Sob um gentil dossel de passiflora.

Mas logo o olhar bucólico descora,

Seguindo o vai-e-vem do travessão. 


Tanto o motoperpétuo movimento 

Parece ensimesmar esse momento

Em névoas de voraz melancolia,


Que até sua beleza decadente,

Capaz de enternecer-me de repente,

Não é senão vontade de poesia.


Esmeraldas - 05 03 2025


quarta-feira, 12 de março de 2025

DESEDUCAÇÃO

DESEDUCAÇÃO


Chega uma hora que convém desaprender.

Esquecer regras, nomes, convenções…

Talvez até soltar uns palavrões

Ou, em muda solidão, me compreender.


Sem ter nada a ganhar nem a perder,

Procuro caminhar sem ilusões,

Certo de não fazer mais concessões

A quem só me provoca desprazer.


Não cuido do que obrigam os bons modos.

Ao inferno o mundo e seus pudores todos!

Sou um selvagem mal catequizado.


Mas declaro a quem possa interessar:

— “Melhor ser um simplório sem lugar

Que outro filho-da-mãe bem educado.”


Betim - 10 03 2025


sexta-feira, 7 de março de 2025

DISTRAÇÕES

DISTRAÇÕES


Monto um quebra-cabeça de zil peças,

Indiferente à imagem que se forma.

A vida sem sentido se conforma,

Desde que para o Eterno haja promessas.


Talvez a vanidade seja a norma

E me venha a calhar pôr em travessas

Paisagens e pessoas tais como essas,

Ainda que em exígua plataforma…


O interessante — dizem — é distrair-me;

Manter a mente sã e o intento firme,

Em face dos senões da meia idade..


De modo que, querendo ou não, eu vença

Novos jogos sem outra recompensa

Além de suportar a realidade.


Belo Horizonte - 06 03 2025


quinta-feira, 6 de março de 2025

DOMINGUEIRAS

DOMINGUEIRAS No coreto da praça a banda toca Marchas dos carnavais de antigamente. Lampejos do passado no presente, Que à vida provinciana ora evoca. Algo d’aquele tempo traz em troca De saudades passando pela mente, Como andasse de costas para frente Até onde a memória nos coloca. Ingênuas alegrias, dias idos… As canções se confundem nos ouvidos, Enquanto sensações ou sentimentos. Olho e já não sei nem o que é que vejo: Lembranças entremeadas de desejo, Na tarde musical de meus momentos. Ouro Preto - 02 03 2025


terça-feira, 4 de março de 2025

LAMENTAÇÕES

LAMENTAÇÕES


Urjo co'o sem sentido dos acasos,

Indo aonde não sei nem saberei.

N’esse mundo de Deus; sem lei nem grei,

Só tive das pessoas seus descasos.


Poeta, trilhei abismos de parnasos

E nada senão luzes encontrei.

Assim durmo mendigo e acordo rei,

Iludido igual luar em poços rasos.


Talvez ao me construir torres de sonho

Arriscasse a má sorte e o olhar tristonho,

Aprumando pilar a incerto soclo.


Não duvido da queda ou do sinistro

Tantas as crises vãs que administro.

No fim, esta é a vida do caboclo…


Ouro Preto - 02 03 2025


terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

CASARÃO

CASARÃO


Junto do parapeito da janela,

Miro e remiro o largo citadino.

Há n’esse meu mirar algo menino,

Que mais dentro que fora se revela.


Miro e remiro a velha cidadela,

Enquanto ao parapeito escuto o sino.

Há n’esse meu mirar um desatino,

Cujo encanto profundo me desvela.


A lua sai detrás da serrania

E logo a rua toda parecia

Banhada em fantasia enevoada.


Há n’esse meu mirar um bom proveito:

Eu, da janela, junto ao parapeito,

Miro e remiro a noite enluarada.


Betim - 25 02 2025


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

LONJURAS

LONJURAS


Eu, quando dou por mim, olho as montanhas.

Penso nas caminhadas por veredas,

Que me levem por mais paragens ledas

Ou conhecer além terras estranhas.


Tento entender as marchas e outras manhas

D'aqueles que superam sóis ou quedas,

Sempre com mais ardor do que moedas,

Diante de imensidões tais e tamanhas.


Eu sou eu mais minhas circunstâncias,

Mas hei-de conhecer pelas errâncias

Quem sou em desventuras e aventuras.


Ando para me ver onde antes vi

E estar no que disseram logo ali…

Eu, quando dou por mim, olho as lonjuras.


Betim - 16 02 2025


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

ÀS ORDENS

 ÀS ORDENS


Estar disponível ao outro, submisso, é próprio do viver em sociedade, tendo outros ao lado e, sobretudo, acima.

Estar disponível a si mesmo, incondutado, é próprio do viver recluso, longe de tudo e de todos.


Oh Liberdade... Teu verdadeiro preço é a solidão!


Betim - 19 02 2025

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

DESREALIZAÇÃO

DESREALIZAÇÃO


Olho em volta e nada é como seria

Ou como deveria… Não me sinto

Parte do que me cerca: Fogo extinto

Em terra calcinada e baldia.


Nada mais cá me serve de valia

E desconfio até do que desminto.

O mundo se tornou algo distinto

Por sob cinzas de vã melancolia.


Eu vejo o que foi feito ser desfeito…

Perco o preciso em face do perfeito

Com risco de não ter nada no fim.


Passo por lacunar ou intransigente,

Pois ando para trás para ir em frente,

Aceitando que tudo é mesmo assim.


Betim - 14 02 2025


quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

LUNÁTICOS, INSANOS OU MELANCÓLICOS

LUNÁTICOS, INSANOS OU MELANCÓLICOS


Em meio a loucos, quem andará são?

Caminho pelo pátio do instituto

Sentindo-me vazio e diminuto

Face àquela angustiante solidão.


Não há agora guardas no portão,

Tampouco grades contra o dissoluto,

Apenas um silêncio resoluto

Atravessa a profunda escuridão:


Por corredores, salas e porões,

Quando na própria mente tais prisões

A segregar uns e outros dos demais.


Em meio a loucos, quem andará bem?

Pareço um mentecapto ora eu também,

Enmimesmado e longe dos normais.


Betim - 24 01 2025


terça-feira, 21 de janeiro de 2025

BORBOLETAS AZUIS

BORBOLETAS AZUIS


Vêm do meio da mata nos saudar

Conforme avançávamos na trilha.

A um só tempo milagre e maravilha,

O azul de suas asas a voejar!


Como se cor que voa ou luz que brilha,

Era de imenso céu ou fundo mar.

Além, nós lhe seguimos o bailar

Onde a beleza em flores se partilha.


Admirados de vê-las e perdê-las,

Enquanto a travessia continua

Lembramos como azuis e como belas.


Ao chegar, caminhando pela rua,

Levaremos do azul das asas d'elas

Uma felicidade nua e crua.


Esmeraldas - 18 01 2025


domingo, 12 de janeiro de 2025

PEDRA DE RAIO

PEDRA DE RAIO

Que estrela cai do céu e rasga o chão?

Uma pedra voadora; ou mais, cadente.

Surge no breu da noite de repente

E luz de canto a canto o seu clarão.


A rocha extraterrestre reluzente

N’um raio a s’espalhar na imensidão…

Foi quase apocalíptica visão,

Como se a própria morte simplesmente.


N’algum lugar alguém há-de encontrar

Qualquer bloco ou fragmento que restar

D’aquele instantâneo assustador.


Então nos lembraremos que o Universo

Ao seu modo aleatório e até disperso

Pode mandar-nos d’esta p’ra melhor.

 

Belo Horizonte - 20 05 2023


sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

COMO NÃO?

 COMO NÃO?


Devo dizer que não. É necessário.

Mais do que isso, eu penso: Imperativo!

Às vezes, afirmar-se é negativo,

Mas responde ao loquaz autoritário.


Eu lhe nego e renego se redivivo

Um sentimento ruim de solitário.

No final, resta o pasmo involuntário

De quem recebe o não e seu motivo.


Ainda que não fosse um despropósito,

Não sou fardo a guardarem no depósito,

Mas, contra o feiticeiro, o seu feitiço!


Devo dizer que não. Sim, acontece.

Mas, compreendido ou não, cá me parece,

Como andasse em terreno movediço…


Betim - 26 12 2024


domingo, 5 de janeiro de 2025

AFORÍSTICO

AFORÍSTICO

Em havendo ou não vida após a morte,
A consciência em mim cá se me diz:
“Quem busca ao fim do dia estar feliz
Intente ser mais sábio que mais forte”.

"Detém sabedoria, por raiz,
Não o que mais saber se lhe comporte,
Sim o que saboreia em sua sorte
Total serenidade face a hostis".

Ignoro quem seja Deus ou como seja,
Mas gosto de sonhar qu’Ele deseja
Saber todas as coisas que sabemos".

"Duvida; desconfia dos doutores
Que entre infernos e céus sonham horrores
Em tudo o que, afinal, desconhecemos".

Betim - 24 12 2024

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

GOTA A GOTA

GOTA A GOTA


Tamborilava a chuva no telhado 

Enquanto começava a clarear

Co'os olhos s’entreabrindo devagar,

Ressentidos do sono abandonado…


Era ainda um silêncio atravessado

Pelas gotas da calha a transbordar

Por sobre ideias fora de lugar 

E todo aquele alvor de lado a lado.


Imerso n’uma espécie de entressono,

Seguia o batucar hipnotizante,

Livre de desencanto ou desengano


Fora não se sentir senão errante

Na semiconsciência do abandono,

Em quase tudo ao nada semelhante.


Betim - 12 12 2024